O Estado do Rio Grande do Sul possui alguns exemplares arquitetônicos de grande interesse espalhados por seu território. Entre os municípios gaúchos estão o de Ilópolis, no Alto do Vale do Taquari, localizado há aproximadamente 196km de Porto Alegre, e o de São Miguel das Missões, localizado há aproximadamente 485km da capital gaúcha.
Nosso interesse nos dois municípios começou no final do mês de junho do ano corrente depois de recebermos uma bolsa de estudos para um curso na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, na capital gaúcha. Logo fomos verificar as nossas possibilidades para conhecer de perto dois projetos exemplares de intervenção arquitetônica em estruturas pré-existentes: a realizada por Lúcio Costa, no ano de 1941 (projeto de 1937), nas ruínas jesuítas em São Miguel das Missões; e o Museu do Pão, projetado e construído no ano de 2006, no pequeno município de Ilópolis, pela dupla de arquitetos paulistas Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, sócios no escritório Brasil Arquitetura.
Como passaríamos uma semana inteira em Porto Alegre dedicando-nos exclusivamente às pesquisas, nos planejamos para chegarmos na semana anterior com a finalidade de viajarmos pelo estado do Rio Grande do Sul e podermos conferir de perto as duas pequenas e singulares construções idealizadas, projetadas e por sua vez construídas pelos seus respectivos arquitetos.
Como admiradores do trabalho da dupla de profissionais paulistas, já conhecíamos o projeto do Museu do Pão através de suas publicações – entre elas Museu do Pão: caminho dos moinhos, com autoria da Associação dos Amigos dos Moinhos do Vale do Taquari (1); Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz: Brasil Arquitetura, publicado pela Cosac Naify (2); e o colossal Atlas da Arquitetura Contemporânea Mundial publicado pela Phaidon (3).
O projeto de Lúcio Costa nós conhecíamos através dos livros canônicos que tratam do panorama da arquitetura brasileira moderna, em especial os de autoria de Henrique Middlin (4), Yves Bruand (5), e Hugo Segawa (6).
Logo nossa viagem começou, ou pelo menos seu planejamento. Ainda em São Paulo, procuramos o arquiteto Marcelo Ferraz que muito gentilmente intermediou nosso primeiro contato com a administradora do museu, quem nos receberia alguns dias depois. Seu nome, Marizangêla.
Tudo pronto, hora de viajar!
Saímos de São Paulo com destino a Porto Alegre. Na capital gaúcha alugamos um carro e seguimos viagem em direção a Ilópolis, tendo nas mãos um GPS e o e-mail impresso com as orientações dadas pela Marizangêla. Mesmo assim nos perdemos. Nada conhecíamos da região e para nossa surpresa, nem todos os funcionários dos postos de gasolina onde paramos para pedir informações conheciam nosso destino. O que nos salvou? Um simples e funcional mapa de papel. Esse sim nos levou ao lugar certo!
Entre idas e vindas nas diferentes estradas até encontrar o caminho certo, a cada quilômetro nos deparávamos com uma surpreendente e charmosa casa de madeira construída sobre uma base de pedras ou suspensa do chão por pequenos pontos de apoio. Distantes umas das outras, as casas sempre coloridas se destacavam na paisagem bucólica.
No meio do caminho, mais uma surpresa. Um dos rios que corta a região transbordou devido às fortes chuvas ocorridas poucos dias antes da nossa chegada. Uma parte da estrada estava alagada e alguns poucos policiais rodoviários estavam presentes para instruir os motoristas.
Na dúvida se conseguiríamos atravessar, preferimos parar o carro junto de outros que ali estavam e esperamos para ver aqueles que se arriscavam. Alguns instantes depois decidimos tentar. Passamos com cuidado e a viagem seguiu seu caminho.
Mais alguns quilômetros e já avistávamos placas com indicações dos municípios de Anta Gorda, Arvorezinha, Putinga, entre outros que juntamente com Ilópolis formam o chamado Caminhos dos Moinhos. Estávamos muito perto do nosso destino.
Uma quinta-feira do mês de julho. Nenhuma alma nas ruas de paralelepípedos por causa da fina garoa que durou o dia todo. As chaminés das casas não paravam de expelir uma fumaça acinzentada vinda do fogão à lenha que esquentava o interior das casas naquele inverno. Assim se apresentava a cidade de Ilópolis, com uma imagem pacata e sóbria.
Não demorou muito e notamos implantados em um lote de esquina, na frente de um pequeno córrego, os dois volumes paralelepípedos que compõem o complexo do Museu do Pão. De forma muito discreta e sutil, os dois volumes abraçam o antigo Moinho Colognense. Novo e antigo se fundem e se apresentam aos visitantes em uma respeitosa simbiose. Aos moradores, se reincorporam a cada dia à suas vidas cotidianas.
Nenhum grande letreiro luminoso. Nenhuma placa metálica que nos chamasse a atenção para a identificação do museu. Mesmo assim o reconhecemos pela baixa altura dos dois volumes novos edificados em forma de “caixa” de concreto armado aparente, vidro e painéis de madeira que correm nas fachadas laterais de um dos volumes. Junto deles a antiga construção restaurada com quatro andares em madeira, tendo sua frente ligada ao solo por uma base de pedras e seu fundo, por apoios pontuais. Para receber a implantação dos novos volumes o terreno não precisou alterar seu declive natural.
A história do pão e sua trajetória de grão até sua forma final em alimento posto em nossa mesa são contadas dentro da “caixa” transparente delimitada por chão e teto em lajes de concreto armado aparente, ligadas entre si por três pilares em forma de “árvore”, que já são identificados do lado de fora. O acesso a essa “caixa” se dá pelo mesmo nível da rua e essa se ajusta ao declive do terreno estando sutilmente suspensa do chão e ligadas à ele por pequenos pontos de apoio.
Seguindo o trajeto pelo interior do edifício, uma passarela de madeira conecta a “caixa” transparente à “caixa” opaca construída em concreto armado aparente, onde funciona a Oficina de Panificação. Visualmente pesada, a construção de maneira estereotômica, parece ter nascido do chão e dessa maneira se ajustou ao terreno. Ainda no mesmo percurso, o volume opaco se conecta ao Moinho Colognense, onde estão preservados o maquinário em pleno funcionamento e a antiga bodega agora mobiliada com mesas e cadeiras da marcenaria Baraúna – vinculada ao escritório Brasil Arquitetura.
O trajeto contrário também é possível e além disso cada volume, inclusive o do moinho, pode ser acessado de maneira direta sem que seja necessário transitar pelo interior de qualquer outro. Sendo assim, ao mesmo tempo em que esses estão conectados entre si, apresentando uma unidade compositiva e funcional, são independentes. Ambigüidade que oferece maior qualidade e complexidade ao projeto.
Pé na estrada de novo... O novo destino? O Museu das Missões em São Miguel das Missões.
Ainda no mesmo dia, percorremos mais estradas até chegarmos na pequena cidade de São Miguel das Missões. Quando chegamos, já estava tarde. Decidimos, então, procurar uma pousada para dormirmos naquele momento de forma que no dia seguinte estaríamos descansados e prontos para explorar o museu projetado e construído por Lúcio Costa entre as ruínas jesuítas.
No dia seguinte, depois de um restaurador café da manhã e com as malas no carro, seguimos nosso roteiro em direção ao Museu das Missões, projetado e construído em 1949.
Nossa primeira impressão do museu e das ruínas se deu pela janela do carro. Estávamos diante de uma construção que muito nos emocionou. Logo estacionamos o carro e caminhamos até a bilheteria que acabara de abrir. Dessa já avistávamos a modesta e muito respeitosa intervenção de Lúcio Costa.
Em seguida percorremos o caminho marcado no gramado por outros visitantes que ali haviam passado até chegarmos na escada de pedras que marca a entrada do pequeno museu construído por Costa. Ao lado do pavilhão, a também moderna Casa do Zelador em forma de caixa fechada, que parece ser totalmente “cega” para quem a observa do lado de fora. Logo entramos para conferir os painéis que estavam expostos lá dentro e o luminoso pátio interno para o qual os ambientes se voltam.
Assim, pudemos conferir pessoalmente o museu, que até então conhecíamos somente através dos livros. Sendo formado por duas caixas, uma ao lado da outra, compostas predominantemente por dois diferentes materiais que possuem propriedades distintas entre si,e que por sua vez carregam idéias antagônicas. Vidro e pedra foram utilizados na construção das duas caixas, porém, o que difere uma da outra é a quantidade de cada material e a maneira como esses estão organizados, permitindo leituras distintas da construção e composição de cada volume. Assim, cada detalhe construtivo ou compositivo solucionado por Costa valeu a pena ser observado.
No pavilhão fora utilizado predominantemente o vidro que delimita o espaço interno onde estão expostas as peças religiosas entalhadas em madeira encontradas no local. Paredes, ora transparentes, por onde permeiam a paisagem, ora reflexivas da paisagem à sua volta, estão recuadas debaixo de uma cobertura de telhas que as protege. Embaixo da mesma cobertura, uma galeria formada pelo espaço entre as paredes de vidro e as colunas construídas através do empilhamento de pedras e madeira. Assim, planos e elementos pontuais estão organizados e apoiados sobre um podium, e juntamente com as propriedades do material predominante, compõem uma arquitetura tectônica.
Em contrapartida, a Casa do Zelador trata-se de uma composição arquitetônica estereotômica, quando lida como uma caixa inteiramente fechada, “cega”, que parece ter nascido do solo, uma vez que está ligada diretamente a ele. O volume duro e sólido inteiramente construído em pedra com textura e característica opaca teve seu meio subtraído, formando-se assim o vazio central que se configuraria em um pátio por onde a iluminação e a ventilação penetrariam o volume que restou.
Ambiguidade que oferece maior qualidade e complexidade ao projeto. Idéia que já havia sido construída por Costa 57 anos antes da construção do Museu do Pão, em Ilópolis. Assim o projeto de Costa nos parece tão contemporâneo quanto o realizado pela dupla Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, do Brasil Arquitetura.
E por fim pudemos explorar as ruínas preservadas que estão localizadas na parte de trás do Museu. E logo notamos a preocupação de Costa ao implantar os dois volumes no terreno onde já havia as ruínas, de maneira com que novo e antigo convivessem em harmonia. Isso fora mais uma vez percebido quando nos afastamos em linha reta das construções na direção Sul e conferimos que o novo pavilhão não fora implantado no mesmo eixo que a antiga igreja, de forma que todas as construções podem ser vistas no mesmo alinhamento da paisagem sem que uma se sobressaia sobre a outra.
Roteiro cumprido! Chegava a hora de retornar a Porto Alegre!
notas
1
ASSOCIAÇÃO AMIGOS DO MOINHO DO VALE DO TAQUARI (Org.). Museu do Pão: caminho dos moinhos. Rio Grande do Sul, 2008.
2
FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo. Brasil Arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2005.
3
PHAIDON (Org.). The Phaidon Atlas of 21st Century Contemporary World Architecture. Estados Unidos: Phaidon Press, 1998.
4
MINDLIN, Henrique E. Arquitetura moderna no Brasil. 2ª edição. Rio de Janeiro, Aeroplano/Iphan, 2000.
5
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1981.
6
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil 1900-1990. 2ª edição. São Paulo, Edusp, 2002.
referências bibliográficas
CAMPO BAEZA, Alberto. Aprendiendo a pensar.Buenos Aires, Nobuko, 2008.
_______. La Idea construída. Buenos Aires, Libéria Técnica, sd.
_______. Pensar com lãs manos. Buenos Aires, Nobuko, 2009.
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Precisões brasileiras sobre um estado passado da arquitetura e urbanismo modernos a partir dos projetos e obras de Lúcio Costa, Oscar Niemmeyer, MMM Roberto, Affonso Reidy, Jorge Moreira & Cia.,1936-45. Universidade de Paris VIII – Vincennes – Saint Denis. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo), 2002.
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Projeto arquitetônico disciplina em crise, disciplina em renovação. São Paulo, Projeto Editores Associados, 1986.
FRAMPTON, Kenneth. Studies in Tectonic Culture: The Poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. Cambridge, MIT, 1995.