Novamente acompanhando meu filho para um congresso de dermatologia, agora em Lisboa, revi alguns lugares que me fascinaram pouco tempo atrás quando estive na capital de Portugal. Como sempre acontece, o interesse se dividiu entre as obras históricas e as contemporâneas, e o tempo, geralmente curto, não permitia hesitações. Revimos o Mosteiro dos Jerónimos e seu claustro, de arquitetura manoelina, erigidos na época do descobrimento do Brasil, os arcos do aqueduto, a Torre e Palácio de Belém que fazem contraponto com o moderno Centro Cultural, projetado por Vittorio Gregotti, na mesma região; o bairro do Chiado, urbanizado por Álvaro Siza e as obras projetadas por ele para a Expo 98, na costa mais larga do rio Tejo – o Pavilhão de Portugal e sua estilizada vela de barco em concreto, em vão livre, cobrindo o átrio –, inúmeras e belas igrejas e conventos, tudo admirável. Também a Estação Oriente, localizada em frente a esse parque, obra inconfundível de Calatrava, e o Museu Calouste Gulbekian, com notável exposição de arte, inclusive a coleção de peças raras de Lalique, de quem o magnata armênio era amigo; a casa que abriga essas obras de arte, é um edifício moderno, em meio a um jardim arborizado; vale também uma visita demorada.
Seguimos para a cidade do Porto, onde eu pretendia visitar obras de Álvaro Siza, Souto Moura, Fernando Távora. O mau tempo, chuva e fortes ventos nos restringiram a rápidas visitas ao rio Douro, suas sete pontes e margens com um casario sem nenhuma conservação e armazéns de vinho, do Porto, claro; à Fundação Serralves em art déco, em contraste com a alvura e discrição do anexo Museu de Artes Contemporânea, desenhado por Siza Vieira, a Faculdade de Arquitetura. Infelizmente, o tempo curto e ruim nos obrigou a voltar, sem conhecer Matosinhos, Braga e tantas outras importantes paisagens e construções. Nossa volta, depois de Coimbra, Aveiro, entre outras pequenas cidades, terminou em Évora, um encanto de cidade medieval totalmente murada, que nos reteve por mais tempo.
Mas, ao chegarmos no Porto, no final da avenida Boavista em que se encontrava nosso hotel, vimos na esquina um inesperado (para mim) poliedro que abriga a Casa da Música, projeto de Rem Koolhaas, pousado entre colinas artificiais. Voltei na manhã seguinte para uma visita guiada, já que não se pode entrar em suas dependências de outra maneira. A inauguração do edifício deveria fazer parte das comemorações da cidade do Porto como Capital Europeia da Cultura em 1991 (NE), mas a construção só foi concluída em 2005. Passamos o dia todo lá, assistimos através da vidraça um ensaio de orquestra, foi inesquecível.
A casa da Música, assim como o Museu de Roma, projeto de Zaha Hadid, e como a Ópera de Oslo, descritas aqui em outras ocasiões (1), merece uma vela. O edifício, relativamente pequeno e despretensioso, com alta tecnologia, obviamente com todos os detalhes pensados em função do som, foi, por sua excelência comparado à Filarmônica de Berlim. A complexidade da obra se resolveu graças à engenharia da empresa inglesa Ove Arup, com a participação do escritório local Afassociados.
Mas houve reação da crítica e da população do Porto. Por que essa forma estranha, desenhada por um estrangeiro, na cidade de arquitetos portugueses celebrizados internacionalmente? Segundo dizem, Siza não quis participar do concurso, mas fez parte do júri. Na Casa da Música, construída onde havia a Rotunda da Boavista, a pedra local deu lugar ao concreto e a música foi eleita para soar dentro desse meteorito; graças a ela, o Porto “se transformou na primeira cidade portuguesa de arquiteturismo” (2), conforme escreveu Carlos Magno, em maio de 2007, prefaciando a pequena publicação comemorativa da Casa, cuja programação diversificada promove concertos de música clássica e contemporânea, formação artística e atividades interativas para seus frequentadores.
Todo assimétrico, o edifício em concreto aparente, vidro, alumínio e madeira confunde um pouco os visitantes. O hall de entrada, com pé-direito de 30 metros, conduz a sete níveis acima e a mais três no subsolo. A escadaria, com guarda-corpos de vidro, vai desvendando os planos de concreto e, aos poucos, as salas revestidas de alumínio escovado no chão e perfurado nas paredes, fechadas por vidros em alguns momentos, ou forradas de azulejos portugueses e veludo como na sala “de visitas”.
Em 22 mil m2 de área construída, estão dois auditórios, dez salas de ensaios e estúdios de gravação, espaço de cybermúsica (comunicação/internet), restaurante e três cafés. A sala principal, com 1.300 lugares, é fechada por duas paredes de vidro duplo, ondulado, em função da acústica; as demais são revestidas de painéis de madeira com desenhos nas cores prateada e dourada e, em uma delas, foi fixado um órgão barroco. Através das partes envidraçadas, o auditório comunica-se visualmente com outros espaços; já, as poltronas fixas, contam com iluminação para leitura e controle de ar condicionado. Vários foyers envidraçados e voltados para paisagem de casas antigas, ligam ambientes, cada qual com detalhes e cores vibrantes, alguns com móveis que reproduzem o mobiliário clássico português, assim como painéis de azulejos com reprodução original, tudo surpreendente. O auditório menor, de 350 lugares, é mais flexível; com piso plano, cadeiras não fixas, a cor vermelha predomina como nos teatros italianos. No último piso, foi planejado um terceiro espaço para espetáculos com 250 lugares; o teto de vidro se abre para o céu, configurando um terraço.
Da estrutura, formada por quatro paredes maciças de concreto, que vão da base até a cobertura, são visíveis vigas reforçadas de concreto que cruzam o prédio; E, quebrando a rigidez da forma, calotas na parte externa (atração dos skaytistas), abrigam outras funções, arrematando a principal sala de concertos do Porto.
nota
NE
Conforme assinala o leitor Tiago Lopes Dias, em comentário abaixo feito via facebook, a cidade do Porto foi Capital Europeia da Cultura em 2001 e não em 1991, como afirmado no texto.
1
Ver: SABBAG, Haifa Yazigi. MAXXI – Museo Nazionale dele Arti del XXI Secolo. Em compasso com a história. Arquiteturismo, São Paulo, n. 05.053.03, Vitruvius, jul. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/05.053/3977>; SABBAG, Haifa Yazigi. Na rota da Escandinávia, a Ópera de Oslo. Arquiteturismo, São Paulo, n. 04.045.04, Vitruvius, nov. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/04.045/3662>.
2
MAGNO, Carlos. Casa da Música. Porto, Mecenas da Casa da Música: BPI, maio 2007.
sobre a autora
Haifa Yazigi Sabbag é jornalista formada pela ECA/USP, ex-editora da revista AU – Arquitetura e Urbanismo e da revista AC – Arquitetura e Crítica, do Portal Vitruvius. Autora dos livros JKMF – Julio Kassoy e Mario Franco, e Rocco Associados – residências unifamiliares, ambos da editora C4.