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architectourism ISSN 1982-9930

Vista panorâmica de Jaffa, Israel. Foto Victor Hugo Mori

abstracts

português
De origem controversa, o calçamento em pedra portuguesa com ondas em preto e branco presente na praia de Copacabana estabelece vínculos possíveis entre Rio de Janeiro, Lisboa, Manaus e Conímbriga.


how to quote

TABACOW, José. Pedra portuguesa. Ascensão e queda de uma tradição. Arquiteturismo, São Paulo, ano 06, n. 065.01, Vitruvius, jul. 2012 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/06.065/4431>.


Enquanto uma chuva fina e persistente confinava o fotógrafo Luiz Claudio Marigo e sua esposa Cecília a um quarto de hotel em Manaus, eu lia um interessante artigo de Chico Homem de Melo sobre o tradicional desenho de piso que cobre grande parte dos passeios de São Paulo (1). No texto, afinal, se fazia justiça à obscura autora daquele simpático mapa geometrizado de São Paulo, revelando sua identidade: Mirthes dos Santos Pinto. Troquei algumas mensagens com o editor do Vitruvius, Abílio Guerra, e com o autor do artigo. Por alguma razão agora esquecida, juntou-se também ao grupo o arquiteto carioca Augusto Ivan de Freitas Pinheiro.

Mosaico romano em Conímbriga, a partir do século II a.C.
Foto Andreas Trepte/www.photo-natur.dev [Wikimedia Commons]

O assunto virou um destes raros e agradáveis bate-papos digitais que, muito ocasionalmente, a internet nos proporciona. E acabou por se estender aos desenhos em mosaico português da avenida Atlântica, mandados executar, em sua primeira versão, na gestão do prefeito Pereira Passos, em 1906 (2). Sobre os desenhos há algumas informações interessantes, notadamente por serem contraditórias. A começar pela de Roberto Burle Marx, que dizia terem as famosas ondas em pedra portuguesa nascido em Lisboa, para marcar o local até onde chegaram as águas de um tsunami devastador, que destruiu a cidade no terremoto de 1755 (3). Não encontrei, registrada em bibliografia, qualquer alusão a esta possível origem. Dizia ainda o paisagista que o mosaico de pedra portuguesa é uma tradição provavelmente derivada do mosaico romano. Em Conímbriga, o testemunho é eloquente.

A esta altura, o leitor deve estar se perguntando: “Sim, mas que diabos tem a ver com isso o fotógrafo e sua mulher, confinados pela chuva a um quarto de hotel em Manaus?” Peço, a você que me lê, um pouco de paciência. Já, já, vamos juntar as peças deste interessante quebra-cabeças.

Desenho das ondas na praça São Sebastião, em Manaus/AM. Em primeiro plano o monumento à abertura do porto. Ao fundo, o Theatro Amazonas
Foto Luiz Cláudio Marigo

Recuemos até 1883: o Gabinete Português de Engenharia e Arquitetura é o vencedor do concurso de projetos para o Theatro Amazonas, em Manaus. Na praça São Sebastião, à sua frente, os arquitetos utilizam as mesmas ondas que cobrem o piso do Largo do Rossio, em Lisboa desde 1849, seguindo um desenho de Eusébio Furtado (4).

Mosaico português com ondas, Largo do Rossio, Lisboa
Foto Ceinturion [Wikimedia Commons]

Assim, 94 anos haviam passado desde a catástrofe sísmica. Embora ainda viável, a hipótese de Burle Marx vai ficando remota pelo tempo que decorreu. As ondas reproduzidas em Manaus são idênticas àquelas de Copacabana. É quase certo que ambos os desenhos vieram de Portugal. Quais foram os primeiros a serem construídos?

Agradeço sua paciência até aqui. Voltemos ao fotógrafo e sua mulher, ainda confinados pela chuva, em Manaus. Eles haviam ido para realizar fotografia de campo, e as condições climáticas impediam-nos de sair havia vários dias. O casal já tinha visto todos os filmes que se exibiam nos cinemas locais. Museus e livrarias tinham sido esquadrinhados. E a chuva não cedia. No auge do desespero, eles disparam um e-mail aos amigos: “Por favor, enviem mensagens interessantes, notícias, piadas, adivinhas, fofocas, palavras cruzadas, receitas culinárias para homens recentemente descasados, correntes para ajudar alguma menininha moribunda da Bósnia que quer receber dois milhões de assinaturas pela internet antes de se ir, alertas sobre ladrões de fígados humanos que são vendidos clandestinamente em bancos de órgãos para transplantes... mandem qualquer coisa!”

Era a situação perfeita para colocá-los a meu serviço. E aproveitei: “Vocês podem tentar descobrir quando foi feito o piso de pedras portuguesas em torno do Theatro Amazonas”? Pronto! Eu havia feito minha boa ação daquele dia! Os dois, novamente sentindo-se cidadãos úteis e produtivos, saem felizes à cata da informação: fazem contato então com uma historiadora local, que sugere dar busca numa determinada repartição pública. Seguem a pista sem resultados mas, persistentes, finalmente encontram nas bancas de sebo da praça Heliodoro Balbi um documento inquestionável, com informações detalhadas: o contrato para o cidadão Antônio Augusto Duarte executar o "calçamento undoso (5) da praça, em torno do monumento" que foi publicado no Diário Oficial do Estado do Amazonas!

No convento dos Carmelitas, em Buçaco, Portugal, construído em 1632, encontram-se as primeiras referências a um desenho undoso. Precursoras das do Rossio, estas formas têm geometria mais simples, em que os arcos são concêntricos, resultando em ondas com l
Croquis José Tabacow

Para complicar um pouco mais, descobrem que, “é senso comum por aqui que as calçadas da Praça São Sebastião representam o encontro das águas do Negro e do Solimões”.

O monumento no centro da praça (1904), em torno do qual está a calçada, é uma alusão à abertura do porto de Manaus ao comércio internacional, o que reforça esta interpretação” (6). A interpretação pode não ser verdade, mas a apropriação popular é tão encaixada, tão inteligente, que seria ótimo se o fosse!

Contrato de 1899 para assentamento do piso com desenho de ondas, na praça São Sebastião, em Manaus
Foto Luiz Claudio Marigo [MONTEIRO, Mário Ypiranga. História do Monumento da Praça de São Sebastião]

O contrato é dado por cumprido no início de 1901, cerca de seis anos antes das calçadas de Copacabana! Agora sabemos que o piso de Manaus veio antes. Mas surge uma nova dúvida: o desenho de Copacabana veio de Lisboa diretamente, ou teria feito uma escala na pluviosa Amazônia? Ficarei devendo a resposta ao perseverante leitor que até aqui chegou. Se quiser, fique à vontade para aprofundar esta complicada história de tantas interpretações. Que, aliás, não acabam por aqui: consultando o livro “Lisboa das Calçadas” (7), descubro uma nova explicação para o desenho que, lá, é denominado “mar largo”: ele simboliza o generoso mar que permitiu ao Portugal das navegações a glória dos descobrimentos. Não é interessante que o desenho undoso esteja dos dois lados do Atlântico, como que se estendendo por sobre o mar, entre o Rossio e Copacabana?

Encontro das águas dos rios Negro e Solimões, formando o Amazonas, aqui com aproximadamente 4km de largura
Foto Luiz Cláudio Marigo

* * *

Esta história poderia continuar indefinidamente. Mas este não é nosso objetivo. O propósito é devolver a dignidade a uma técnica e uma arte que está sendo cada vez mais desprezada e, embora tradicional e forte identificadora de cidades importantes, vem merecendo desprezo em detrimento de pisos industriais, notadamente os de cimento do tipo paver (blocretes) e assemelhados.

Numa época em que o automóvel, via de regra, ainda parece receber muito mais atenção do que o homem, vale recordar a evolução por que passou a própria avenida Atlântica que, na origem, “só possuía quatro metros de largura, servindo apenas para pedestres. Pudera, em 1906 tínhamos apenas 153 automóveis na cidade” (8). Sucessivas alterações de traçado alargaram-na de acordo com as tendências do momento, em especial o aumento da frota urbana de veículos. No presente, embora o calçadão junto aos edifícios tenha uma largura (de rara generosidade) com 22m, a pista de asfalto no lado do mar é fechada nos finais de semana, para compensar um pouco mais os pedestres, ávidos daquele espaço que lhes foi sendo sorrateiramente sonegado pelas crescentes necessidades viárias das cidades.

Estrutura geométrica do calçamento em onda
Croquis José Tabacow

Os desenhos, neste calçadão e no canteiro central, são de concepção abstrata, não tendo havido, por parte dos autores do projeto (9), qualquer intenção figurativa. Tampouco “O desenho abstrato foi imaginado para ser percebido de avião (10). Na calçada da praia o padrão das ondas (11) foi obviamente mantido como marca registrada, muito mais conhecido de Copacabana que da praça São Sebastião, em Manaus ou mesmo que os do modelo original, no Rossio de Lisboa (12).

Desenho das ondas, aflorando como leit-motiv em meio à abstração geral
Foto Luiz Cláudio Marigo

E mais, o desenho das ondas ressurge como leitmotiv (13) em fragmentos das abstrações geométricas nos outros passeios, notadamente no calçadão junto aos edifícios. Merece ainda menção a preocupação de Burle Marx em assegurar uma vinculação forte entre os desenhos do piso e os acessos (portarias e entradas de garagens) dos edifícios. Para tanto, solicitou um exaustivo levantamento da posição destes acessos. Entretanto, grande parte dos vínculos se perdeu com as modificações havidas (grades, muros, etc.) nos mais de 40 anos de existência da “nova” avenida Atlântica.

Vinculação dos desenhos de piso com os acessos à arquitetura. Observar problemas de manutenção
Foto José Tabacow


Burle Marx foi um entusiasmado promotor do uso do mosaico português, em seus projetos de paisagismo. Além do calçadão da avenida Atlântica, merecem citação especial os desenhos em mosaico do Paço Municipal de Santo André. Este projeto, segundo o autor, teve seu paisagismo definido de acordo com alguns princípios filosóficos dos jardins barrocos franceses: a rígida geometria estabelecida nos desenhos de canteiros e pisos, assim como a decisão de isolar o conjunto da paisagem do entorno talvez sejam os que mais nos remetem a Versailles ou a Vaux-le-Vicomte. Ao considerar a então caótica paisagem urbana indigna de se relacionar com o jardim, Burle Marx não poderia prever que seu desenho de um padrão geométrico de piso, pensado especificamente para aquele espaço, extravasaria pelos passeios vizinhos, em razão da entusiástica acolhida por parte da Prefeitura, que dele decidiu fazer a marca registrada do Município. Tal e qual o mapa de Mirthes dos Santos Pinto e a composição undosa de Euzébio Furtado, esta foi mais uma geometria que transbordaria para muito além e seus limites originais.

Paço Municipal de Santo André, jardim de Roberto Burle Marx
Foto Nelson Kon

Como foi dito, a técnica da pedra portuguesa encontra, hoje, resistências e repúdio por parte das prefeituras, que se preocupam com a manutenção e com possíveis desconfortos. A alegação é que este pavimento não se presta ao deslocamento por cadeiras de rodas, o que não é verdade. Invocam-se também as dificuldades para mulheres com sapatos de saltos altos, supostas dificuldades de manutenção e outros argumentos falaciosos ou casuísticos. Será que uma prática iniciada há mais de cinco séculos, e que exibe os testemunhos aqui vistos de Conímbriga, do Rossio e de tantos outros lugares, ainda em perfeito estado até hoje é tão inadequada? Ou será que os que negam as qualidades do mosaico estão apenas confessando a incompetência em nossa época?

Cabrera e Nunes (14) nos contam que “a calçada-portuguesa, tal como a conhecemos actualmente, foi ensaiada pela primeira vez (1842), na parada do Batalhão de Caçadores 5, por iniciativa do então Governador de Armas do Castelo de São Jorge, Tenente-General Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado (1777-1861). Realizou-se uma pavimentação usando pequenas pedras de formas mais ou menos regulares, brancas e negras”. E, mais adiante: “O sucesso obtido na obra feita em Caçadores 5, valeu a Cândido Pinheiro Furtado, o apoio da Câmara de Lisboa, na concessão das verbas necessárias à pavimentação de toda a placa central do Rossio, uma extensão de 8.712m2. (...) o desenho escolhido para a decoração da praça foi um padrão ondulado em preto e branco que passará a ser designado por mar largo”.

Seis exemplos de "assinaturas" encontradas nos pisos de Portugal
Croquis José Tabacow

Esses foram os germes iniciais de uma técnica que produziu legítimas obras de arte, algumas delas assinadas. Em Portugal – e talvez também no Brasil – alguns calceteiros, cônscios o valor de seu trabalho e da importância cultural daquelas realizações, inserem pequenos sinais, pessoais, verdadeiras “assinaturas” a atestar, orgulhosos, suas participações pessoais.

A técnica da calcetaria, que já foi tradição e orgulho, está sendo melancolicamente proscrita e renegada, substituída pelas simples vantagens do imediatismo ou, o que é pior, pelas imediatas vantagens do simplismo. Algo de que nossa época deve se lastimar!

notas

1
HOMEM DE MELO, Chico. Crônica de um ícone paulista. Minha Cidade, São Paulo, n. 07.075.02, Vitruvius, out. 2006 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/07.075/1937>.

2
Há referências a diversas outras datas, todas da primeira década do século XX.

3
BURLE MARX, Roberto. Comunicação pessoal.

4
MATOS, Ernesto (org.). Lisboa das calçadas. Colecção Olhar Lisboa, n. 2. Lisboa, C.M. Livraria Municipal, 2004.

5
Undoso significa ondeante, ou que tem ondas...undoso, do Lat. Undosu, adj., ondeante.

6
MARIGO, Luiz Cláudio. Comunicação pessoal.

7
MATOS, Ernesto (org.). Op. cit.

8
Jornal de Copacabana <www.jornalcopacabana.com.br>.

9
Roberto Burle Marx, tendo os arquitetos paisagistas Haruyoshi Ono e José Tabacow como arquitetos colaboradores.

10
Jornal de Copacabana <www.jornalcopacabana.com.br>.

11
Os projetistas optaram por manter a mesma relação de proporção entre a largura da antiga calçada da praia e as ondas que, nesta nova, cresceram cerca de três vezes.

12
A construção do desenho contém apenas um elemento geométrico, o semicírculo. Todos os raios são iguais e os centros alinhados (linhas horizontais). Dentro deste critério, a única deformação possível é uma variação na distância d, que muda a relação fundo/figura. No desenho original esta é de 1:1, isto é, o fundo é igual à figura. Ou o branco é igual ao preto. As infinitas cópias espalhadas pelo mundo podem apresentar aberrações por não se prenderem a esta estrutura geométrica

13
De acordo com a Wikipedia, nas óperas de Richard Wagner, constitui-se em tema associado, no decurso de todo o drama musical, a uma personagem, uma situação, um sentimento, ou um objeto. Em dramaturgia, figura de repetição, no decurso de uma obra dramática, de determinado tema, envolvendo significação especial.

14
CABRERA, Ana; NUNES, Marilia. Olhar o chão. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1990, p. 15-17.

sobre o autor

José Tabacow é arquiteto paisagista, formado pela FAU-UFRJ, especialista em Ecologia e Recursos Naturais pela UFES e Doutor em Geografia pela UFRJ. É professor das disciplinas de Paisagismo e Coordenador da Pós-graduação em paisagismo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UNISUL.

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