O passeio por Verona foi enriquecedor. A formosa, tranquila e serena cidade, conhecida popularmente por protagonizar peças de Shakespeare, Romeo e Julieta e Megera Domada, viveu uma história conturbada desde quando era burgo romano no século II aC. Sofrendo diferentes domínios e destruições por sua situação estratégica à beira do rio Ádige, participou também da revolta contra as destruições de Bonaparte, em 1797.
Castelvecchio, objeto desse texto, foi construído pela notória família Della Scala em 1354, na atual Piazza dei Signori, contrapondo-se à cidade para exercer maior controle sobre os cidadãos e garantindo uma fuga para o norte em caso de revoltas. Essa cidadela, articulada em duas partes, cercada de altas muralhas, ostenta a Torre de Menagem, com 42 metros de altura, entre outras sete. Menores. Uma ponte de pedra com três arcos que atravessa o rio a ligava a um antigo jardim na margem esquerda.
A história do castelo em si já é uma grande aventura. Ela se torna mais dramática com a invasão de Napoleão Bonaparte, que, além de destruir inúmeras igrejas, expropriou notáveis obras de arte ali contidas e transformou a rica propriedade em caserna. Em 1924, a direção dos Edifícios e Monumentos do Estado Italiano iniciou sua reestruturação, então desfigurada pelo uso militar e pelo desgaste do tempo. As fachadas foram transformadas, acrescentaram-se janelas e pórticos góticos e elementos renascentistas provenientes de outros edifícios destruídos de Verona, assim como foram transferidas para seu interior coleções de arte antiga e moderna. Com a Segunda Guerra Mundial, em 1945 Verona sofreu graves ataques que atingiram parte do Castelo e destruíram a ponte sobre o Ádige.
No pós-guerra, o restauração dos edifícios históricos exerceram uma grande mobilização na Itália, com um forte argumento para debate entre arquitetos, historiadores e diretores de museus – a finalização do modelo museológico que persistia até então. A renovação de Catelvecchio foi confiada em 1957 a Carlo Scarpa, influente arquiteto veneziano , então com 51 anos de idade; com uma experiência notável nesse campo, constava em seu currículo entre restauros e exposições, o museu Uffizi em Florença, e as Gallerias dell’Academia em Veneza.
E é aí que acontece a surpresa maior: uma visita a mais um castelo medieval resultou em momentos de admiração, não somente pelas obras de arte ai mostradas, mas por detalhes da reconstituição tão inteligentes, precisos e arbitrários, sem interferir nos objetos preciosos que ocupam alas e alas do museu. Em 1964, poucos anos após a intervenção do arquiteto, o museu foi aberto ao público.
Scarpa fez algumas demolições para pôr em evidência partes originais da obra, permitindo conhecer sucessivas camadas da construção. Empregou pedra e madeira, mas também argamassa deixada à vista que reveste as superfícies dos muros externos. Projetou o jardim que antecede o museu e que recebeu o Prêmio Internacional para Jardins em 2001 e articula os principais percursos do museu. Inspirado em quadros de Mondrian, empregou caixilhos de ferro e de madeira queimada em consonância com elementos góticos originais. A estátua de Cangrande I, símbolo da cidade, foi transferida por ele para um ponto central depois de muito estudo, que permitem sua visualização de diferentes ângulos. Protegida por telhado de painéis de cobre e traves de madeira recuperados, apoia-se em um suporte de argamassa à vista , cujo desenho e esboços do autor se encontram próximos à escultura.
Para se acessar a Torre de Menagem, Scarpa construiu uma nova escada de tijolo e pedra e revestiu as paredes com lajes cor- de-rosa, tal como seria a antiga técnica de revestimento. Afrescos originais foram recuperados e os mais recentes eliminados. Na Torre do Relógio, o restauro, com a colaboração do arquiteto Giuseppe Tomamasi, ostenta um pavimento suspenso, apoiado em duas traves para liberar o espaço onde se encontra uma escultura equestre datada de 1350. A escada esconde-se por meio de um painel de ferro desenhado em gomos tal como tubos de um órgão – espantoso de tão moderno e tão silencioso.
A disposição museológica e os suportes das obras de arte são de um equilíbrio surpreendente; bases coloridas sobre o piso de argamassa sustentam esculturas maiores; prateleiras salientes acolhem peças menores. O conjunto do Cristo Crucificado (Maestro di Santa Anastasia, séc. XIV), de grande expressividade, está acompanhado dos desenhos de Scarpa, assim como inúmeros outros elementos expositivos, desenhados segundo as diferentes tipologias das obras: cavaletes; hastes de ferro; hastes rotativas apoiadas nas dobradiças dos rodapés para serem inclinadas pelos visitantes; e simples estruturas de ferro para os afrescos recuperados. Uma referência para a “museografia italiana e internacional “, conforme define Alba di Lieto, autora dos textos do guia de visita, do qual extraímos grande parte das informações que listamos aqui.
Além da magnífica restauração de Scarpa, pode-se apreciar em Castelvecchio pinturas de Pisanello, Stefano di Giovanni, Bellini, Mantegna, Veroseni, Tintoretto, Tiepolo.... Para deixar saudades.
Para terminar, não poderia deixar de registrar a visita ao Scavi Scaligeri , situado no centro de Verona , onde estava em exposição fotos de Robert Capa, um dos mais importantes fotógrafos do século 20. Emocionantes, dramáticas, históricas, não teriam melhor cenário que os sítios arqueológicos romanos tão bem conservados.
sobre a autora
Haifa Yazigi Sabbag é jornalista formada pela ECA USP, ex-editora das revistas AU – Arquitetura e Urbanismo e AC – Arquitetura e Crítica, do Portal Vitruvius. Autora de JKMF – Julio Kassoy e Mario Franco”, e Rocco Associados – residências unifamiliares, ambas da editora C4.