Depois de dois voos e muita surdez, cheguei cansada e velha para a atmosfera animada do Hostel Bekuo, onde estou hospedada. É preciso não perder a disposição e o ânimo para sermos menos “turistas” e mais viajantes. E com isso eu já adianto ao leitor a conclusão deste arquiteturismo. Mas não desperdicemos o percurso que me fez percorrer esta cidade, San José, para chegar a essa conclusão. Cheguei ao albergue cansada, velha e um pouco rabujenta; me instalei mal, me enfiei num maiô (mineiro tem sempre esperança de praia), mas acabei desistindo de ir à turística Jacó para pagar mais alguns milhares de colones e pedir ao taxista (que ama Roberto Carlos, por sinal) para me deixar no centro de San José. Como não poderia deixar de ser, resolvi por me perder na cidade, antes de debandar pelos arredores. Aos pés de uma cordilheira que parece rodear a capital da Costa Rica, San José me apareceu como uma cidade vulgar, mas que não se entrega. Vulgar no seu descarado escancarar-se a usos e abusos de seus espaços. Uma vulgaridade que lhe atribui rudeza aos seus traços: a rudeza de uma paisagem que não se preocupa em seduzir. Nem ao turista, e talvez nem mesmo ao habitante, como desconfiei mais tarde.
Confesso que, na minha afetação de turista, cheguei a sentir uma ponta de nojo quando, na praça ao lado do Teatro Nacional, vi vendedores ambulantes oferecendo saquinhos de milho, diversão das crianças que se misturavam aos pombos sob os olhares aprovadores das mães. Uma diversão sincera nos olhares brilhantes de todos envolvidos naquele espetáculo um pouco grotesco de crianças e milhares de pombos misturados. A alegria dos olhares foi tão contagiante que não resisti em fazer algumas imagens. Pelas lentes da câmera, percebi que não havia sujeira nem vulgaridade nem nada de grotesco naquela brincadeira. Havia felicidade longe das minhas concepções higienistas do mundo. De repente, um dos ambulantes me oferece um saquinho de milho e uma “foto a cores”. Reparo que leva no pescoço uma máquina fotográfica compacta e tem em uma das mãos uma fotografia colorida plastificada. Como num corte obtuso do tempo, me arrepiei com o fantasma dos fotógrafos lambe-lambe de Belo Horizonte que me iluminou o que também aquela cidade da América Central já tinha sido um dia, os personagens que já tinha abrigado. O fantasma adentrou a memória e na praça ficou a ruína encarnada no vendedor ambulante. As coisas que morrem sob o sol escaldante do tempo.
Mas, mesmo vulgar, rude, decadente, San José não se entrega. Não se dá por vencida. E a cordilheira, sempre ao fundo de quase todas as visadas, afronta aquele que se ilude em compreender a identidade desse lugar. Não se entrega essa cidade que não dá a ver sua identidade: ou porque não tem nenhuma ou porque são tantas e tão várias e tão outras que ela não se preocupa em se fazer identificada, reconhecida. Protegida pela cordilheira, guardada pelos vulcões, San José me afronta e parece dizer – e diz isso a mim, vulgar turista – que vá embora aquele que busca cenário pitoresco de centro histórico para “sacar unas fotos”. “Se foi para isso que veio, turista, que vá para os resorts, seja na costa caribenha, seja na costa do pacífico!” San José é dura e indócil. Como entrar nessa cidade, sem violenta-la? Como enfrentar o paredão sem se render aos inúmeros atalhos que seduzem a paraísos perdidos entre coqueiros e cassinos? Das belezas naturais do país eu já estou convencida, sem mesmo ter-me arriscado ainda na subida do vulcão Irazú, o mais recomendado. Mas e San José?
Sentada num banco do Parque Metropolitano La Aduana, escrevo esses registros e descanso os pés machucados e sujos nas havaianas. O parque me dá trégua da vertigem dos calçadões no centro num sábado à tarde. Há poucos turistas, e os gritos do futebol ou das crianças nos pedalinhos não traem o castelhano da região. Olho de novo para a Cordilheira e o céu se abre num azul estranho. De repente, percebo a cidade-esfinge a me olhar: “ou te despes desse olhar de turista para se fazer, enfim, viajante; ou te enlatas logo no primeiro resort do primeiro mar da primeira baia, que ya estoy harta!” Dou-me conta do desafio que ela me lança. Do desafio que devíamos nos lançar. Estaremos dispostos à experiência da viagem?
nota
NE
Publicação original do artigo: MORTIMER, Junia. San José, Costa Rica: parte I. Coletivo Pegada, coluna Cidades, 16 abr. 2012 <http://coletivopegada.org/2012/04/16/cidades-san-jose-costa-rica-parte-i/>.
sobre a autora
Junia Mortimer é arquiteta, mestre em Artes e Humanidades pelo programa Erasmus Mundus (U. of Sheffield, U. de Perpignan e U. Nova de Lisboa) e doutoranda em História da Arquitetura na UFMG, onde é Professora Substituta de Estética.