Os atritos entre arte e arquitetura parecem urgentes em uma exposição realizada no Copan, edifício de tamanha carga simbólica, de autoria de Oscar Niemeyer, cuja projeto de 1951 foi drasticamente alterado conferindo um caráter inconclusivo à sua condição espacial. Na verdade, sugerindo a arquitetura do lugar como elemento deflagrador para uma ação reativa da arte, cria-se aqui um mote para a vivência de um conjunto de processos artísticos que possam dialogar com aquele espaço desativado e aprisionado, em que pesa sua condição fantasmagórica. Por outro lado, não se trata de uma exaltação ao lugar ou mesmo uma louvação à arquitetura moderna, o que poria em risco a própria condição dos trabalhos que foram propostos.
Portanto, corromper a letargia desse vasto espaço que, por circunstâncias muito próprias, ficou inoperante ao longo dos anos parece ser o caminho imediato de uma arte ali atuante, mesmo que através de estratégias efêmeras. O grupo de 14 artistas participantes foi convidado a desconstruir aquele espaço fragmentado, encontrando cada um, ao seu modo, um ponto de interceptação. Obras inéditas e trabalhos já existentes, mas deslocados de seus contextos originais, tendem a se acomodar naquele espaço desocupado aos modos dos vazios urbanos que operam nas cidades. Conta-se assim com a participação de Adriano Costa, Amália Giacomini, Carmela Gross, Cristiano Lenhardt (com colaboração de Amanda Melo e Manuela Eichner), Daniel de Paula, Eduardo Coimbra, Eduardo Frota, Guilherme Peters, Luiz Roque, Marcelo Gomes, Nazareno Rodrigues, Paloma Bosque, Rogério Sganzerla e Vitor Cesar.
De certo modo, ao lidar com esse contexto em suspensão e com a própria euforia moderna que aquele edifício simboliza, o debate artístico proposto deverá situar algumas questões urgentes que revisitam essa herança sem o peso de uma tradição de outrora. Em alguns casos, não seria por demais provocar um debate entre as temporalidades distintas da arquitetura e da arte, atestado em primeira instância pelo dado matérico e pela maneira como ele se comporta. É importante informar que se trata de uma exposição coletiva, em que o espaço e sua condição cultural, subvertido pela prática artística, compõem um campo narrativo aberto. Aliado a eles, a carga histórica do lugar e as dificuldades em lidar com a memória de uma situação inconclusa, mas já em ruínas, acentuam a magnitude desse desafio.
Em parte, diante da perplexidade de um lugar que antes mesmo de alcançar qualquer maturidade já se tornou a sua própria ruína, interrompendo um processo que se torna circular ao não conseguir estabelecer o passo seguinte, assim como em uma melodia que parece se repetir ao infinito, é que os artistas construíram boa parte de seus gestos, nos oferecendo interlúdios diversos.
Não seria à toa que em 1966, no mesmo ano em que se inaugura o edifício, uma das últimas grandes galerias do centro de São Paulo, completando o grande circuito de espaços modernos na região da República, Rogério Sganzerla se utilizará da linguagem cinematográfica para nos falar de uma tomada de posição artística que se constitui pela própria possibilidade de vivência da cidade. Em Documentário (1966), ele nos apresenta esse grande palimpsesto que é a própria cidade em constante mutação, oferecendo essa mesma circularidade dita anteriormente. Ademais, tratava-se do momento de maior afirmação da nossa arquitetura moderna e que, paradoxalmente, parecia sugerir, ao mesmo tempo, o seu declínio.
Mas a esperança do que pode vir a ser se anuncia nos trabalhos, contaminando delicadamente o lugar. Conflui para tanto, o prelúdio que Dave Brubeck tece em “Far More Blue”, tema que encerra o curta de Sganzerla e ao mesmo tempo o mantém em aberto e apto ao improviso. Analogamente a nostalgia daquele contexto reacende o movimento anterior da melodia, bastando para isso que a contingência da arte ali deflagre novos caminhos. Como sugerido no título, a própria idéia do “fazer” em seu pretérito imperfeito elimina do discurso qualquer condicionante, sendo o tempo um aliado na permanência do movimento em oposição ao conformismo e à fatalidade.
notas
NA
O título deste artigo – “Da próxima vez eu fazia tudo diferente” – é a última frase pronunciada no curta-metragem Documentário (1966) de Rogério Sganzerla.
NE
O presente artigo é o texto curatorial da exposição “Da próxima vez eu fazia tudo diferente”, de 08 de setembro a 14 de outubro de 2012, no Edifício Copan, em São Paulo. Esta exposição teve como precursor o “Projeto Imóvel”. Ver GUERRA, Abilio; GUERRA, Helena. Projeto Imóvel. Arte, efemeridade e reabilitação do edifício Copan. Arquiteturismo, São Paulo, 05.057.02, Vitruvius, nov. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/05.057/4129>.
sobre o autor
Diego Moreira Matos (Fortaleza, 1979), curador da exposição "Da próxima vez eu fazia tudo diferente", é arquiteto e urbanista, formado pela Universidade Federal do Ceará, mestre pela FAU USP, onde atualmente cursa o seu Doutorado. Atua como pesquisador, professor e na área de curadoria e suas derivações.