Dono de uma respeitosa coleção com 2.970.214 obras de arte e artefatos da pré-história ao início do século XX, o Hermitage, em São Petersburgo, na Rússia, é um dos maiores museus do mundo.
O numeroso acervo é exposto anualmente para cerca de 3 milhões de visitantes que circulam pelas quase mil salas, corredores e saguões deste gigante complexo formado por dez edifícios. Uma visita completa ao Hermitage pode levar dias, numa espécie de viagem histórica pela arte antiga, europeia e oriental, cultura russa e numismática.
Nessa viagem, o visitante atento irá notar que a portentosa coleção – que inclui peças como a Madonna Litta, de Leonardo da Vinci, e La Danse, de Matisse – não está desresguardada. Mas não se trata de localizar sensores, câmeras e outros aparatos de segurança. Quem toma conta, diariamente, do valioso patrimônio do Hermitage são típicas senhoras russas.
Elas passam o dia a postos, na entrada ou no canto de uma sala, próximas a uma coluna romana ou a um quadro renascentista, sentadas em suas cadeiras de madeira com estofado de veludo vermelho. Trazem sempre consigo um crachá do museu, que as identifica, e também suas bolsas de colo, objetos inseparáveis onde repousam as mãos. Em geral, têm ao seu lado um telefone antigo e calado, a serviço da rara comunicação interna.
Seu trabalho é deter os curiosos que se aventuram a tocar nas obras, os espertinhos que sacam lanches escondidos da bolsa e aqueles turistas que pensam estar num parque de diversões. Também ajudam o visitante, com uma pitada de mau-humor ou com inesperada delicadeza, a desvendar os caminhos pelos quilométricos andares do museu.
Mas o que fazem mesmo na maior parte do dia é ficar sentadas em silêncio, muitas vezes acompanhadas apenas das peças de arte, a olhar a paisagem imóvel da sala ou o trânsito ligeiro de excursões de todos os cantos do mundo.
Durante essas horas entediantes, algumas dessas senhoras jamais perdem a compostura, mantendo-a impecável num nível que as confunde com a arquitetura do espaço. Outras, naturalmente, relaxam, abanando-se com o leque entre um e outro bocejo.
Comum a todas elas, há uma aura introspectiva e um olhar longínquo, que parece remeter mais ao tempo das obras nas salas do que ao presente. Como em qualquer trabalho de guarita, o corpo vai perdendo mobilidade, não tendo muitas opções a não ser acomodar-se na cadeira onde se senta. Contra essa rotina, então, parece restar a atividade da mente, e por isso é curioso imaginar a que imagens e pensamentos essas senhoras recorrem durante as horas de solidão e mudez. Quais são suas histórias?
Nas fotos adiante, os modelitos, os penteados e a natureza individual de cada postura, o gesto das mãos, dos pés e os semblantes, trazem alguns indícios sobre essas anônimas personagens, guardiãs de seus próprios tesouros.
sobre os autores
Felipe Arruda é gestor cultural. Criou a Faina Moz, agência que atende empresas e instituições na concepção e realização de empreendimentos culturais. Tem contos publicados na antologia Tempo Bom (Ed. Iluminuras, 2010), na revista Piauí, no Suplemento PE, entre outros. Colaborou com textos para trabalhos de artistas como Benjamim Taubkin, Ricardo Ribenboim e Brian Halloran. É um dos integrantes do selo literário Edith. Em Berlim, participou da residência artística Homebase.
Laura Gorski é artista plástica, ilustradora e educadora. Atualmente vive e trabalha em São Paulo. Participou de diversas exposições nacionais e internacionais, ilustrou o livro A noiva do condutor, opereta de Noel Rosa (Terceiro Nome, 2º lugar no Prêmio Jabuti 2011 na categoria ilustração). Como educadora trabalhou na 29ª Bienal de São Paulo, no Instituto Tomie Ohtake e na OSCIP Comunidade Educativa Cedac.
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Ensaio fotográfico “Guardiãs do Hermitage”
Foto Felipe Arruda / Laura Gorski