Julho, misto de viagem de trabalho e férias. A ansiedade pela ida a Liverpool era devida, por óbvio, a tantas histórias envolvendo os Beatles, a banda criada na cidade em 1960 e formada por George Harrison, Ringo Starr, John Lennon e Paul McCartney, que viria a se transformar no maior fenômeno da música pop mundial e marcaria o município britânico para sempre.
De fato, respira-se Beatles por todos os lados e os lugares por onde o quarteto passou estão destacados nos roteiros turísticos mais simples, mesmo sem constituírem efetivamente o que se entende como sendo uma atração turística.
Há na cidade um sem fim de referências aos “quatro cabeludos de Liverpool”, desde as sinalizações das casas onde moraram até os locais citados nas canções, como o Strawberry Field e a barbearia mencionada em ‘Penny Lane’ ou, em frente ao Liverpool Institute, um monumento com as malas dos alunos, as de Paul McCartney (mais seu case de violão) entre elas.
As histórias devem repetir-se continuamente. Temos as nossas. Entramos em um táxi e pedimos ao motorista que nos levasse à famosa Penny Lane. Fomos imediatamente atendidos, mas de uma maneira especial. O motorista, ao mesmo tempo discreto e atento, percebeu que um de nós carregava um violão. Colocou seu cinto de segurança, preparou o arranque do carro e, antes de sair, apertou o botão do toca CDs. E então saímos, ouvindo “Penny Lane is in my ears and in my eyes...”. Delicado. Sensível. Hospitalidade de primeira!
Liverpool é uma cidade para lá de agradável e o mais de tudo são as surpresas que oferece para além da história dos Beatles. Fundada no século XIII, fica no noroeste da Inglaterra, no condado de Merseyside, de onde firmou-se como testemunha dos sucessos (muitos) e agruras (não poucas) da era industrial britânica. Desde sempre foi – e ainda é – um porto importante para o Reino Unido (ainda hoje um dos maiores da Grã-Bretanha), onde historicamente ocorreram grandes transações comerciais e aportaram transatlânticos famosos, como o RMS Titanic. Conta ainda com a maior rede ferroviária do Reino Unido (75 km), um aeroporto com serviço para cerca de 70 destinos e um excelente sistema educacional, pautado em três universidades - a University of Liverpool, a Liverpool John Moores University e a Liverpool Hope University.
Nos esportes, a cidade sedia os clássicos Everton e Liverpool F. C., que protagonizam uma das rivalidades mais antigas do futebol mundial. Hoje, é uma cidade contemporânea, dinâmica e bem cuidada, com ruas limpas, povo alegre e hospitaleiro, que soube se reinventar e reposicionar-se mundialmente, crescendo no setor de serviços e explorando suas potencialidades artísticas e culturais – o que a colocou na posição de Capital Europeia da Cultura em 2008 e lhe garante sediar a única bienal de arte contemporânea do Reino Unido, a Bienal de Liverpool. Tem uma área de porto revitalizada, simpática e descolada, que serve de exemplo para o resto do mundo que deseja intervenções da mesma natureza – a Albert Dock, uma graça!
Precisamos dizer, entretanto, que nossa visita a Liverpool, cujo mote foi a participação em uma conferência sobre turismo, música e viagens, foi marcada, muito clara e surpreendentemente, pelo lado sagrado da cidade – especialmente pelas visões das catedrais anglicana (Liverpool Cathedral ou Cathedral Church of Christ in Liverpool), católica (Liverpool Metropolitan Cathedral of Christ the King ou Liverpool Metropolitan Cathedral) e a Igreja de São Lucas (St. Luke´s Church), ou o que sobrou dela, depois do bombardeio ocorrido em maio de 1941.
São três viagens no tempo, emocionantes, cada uma ao seu jeito.
A igreja bombardeada, como é conhecida a de São Lucas, foi construída entre os anos de 1811 e 1831, momento em que foi consagrada. Desde sua destruição, permanece lá, muda, como fosse um memorial. Como patrimônio, está oficialmente mapeada pelo órgão oficial britânico que classifica edificações em risco. Um dia, talvez, caia.
Por ora, é como que um parque público, onde artistas fazem seu trabalho e voluntários orientam ações de preservação e manutenção. Parece um território de transição entre a realidade e o sonho. É um vazio que emociona por vazio estar e por, ao mesmo tempo, carregar tanta história e tanto sentimento.
Contrastante, pelo lado da modernidade, é a Catedral Metropolitana de Liverpool, católica, construída na década de 1960 a partir de um projeto vencedor de um concurso mundial de arquitetura cujos critérios envolviam a possibilidade de a construção ser orientada em cinco anos, não demandar mais de um milhão de libras e, mais importante, traduzir o espírito da nova liturgia que estava sendo elaborada pelo Segundo Conselho Vaticano.
O arquiteto vencedor foi Sir Frederick Gibberd (1908-1984) e a obra começou em 1962, sendo concluída para a consagração do templo, em maio de 1967.
Visível desde muitos pontos da cidade, a Catedral Metropolitana tem plano circular, vitrais multicoloridos e fachada em cimento Portland, com belas incrustações em baixo relevo.
E em meio a esse contraste entre o antigo e o novo, está a Catedral de Liverpool, anglicana, construída entre 1904 e 1978 sobre projeto do arquiteto Giles Gilbert Scott. As características arquitetônicas da edificação são, também, notáveis.
O perímetro externo do prédio é de 189 metros, o que a torna segunda mais extensa catedral do mundo. Por dentro, tem uma extensão de 146 metros. Em estilo neogótico, é ainda dona da maior e de uma das mais altas torres de sino do mundo. Tem também o maior órgão da Inglaterra, de acordo com informações da própria igreja.
Não bastasse a arquitetura solene, a edificação guarda uma surpresa que muito interessa a turistas e estudiosos do turismo. Tornou-se um produto turístico peculiar e, aparentemente, cuidadosamente pensado.
A catedral conta com um restaurante, um café, uma loja e espaços para eventos de inúmeros tipos, desde concertos até eventos acadêmicos e sociais, corporativos e comemorativos, com capacidade máxima para recepção de até 3.500 pessoas em pé, ou 2.300 sentadas. Tudo incorporado dentro da sua planta original, convivendo com a sua função genuína de espaço para o culto do sagrado.
A convivência pacífica e sincrônica entre as funções religiosa, comercial e turística é marcante para quem chega à catedral e olha com cuidado seu espaço interno. Podemos falar de um bem sucedido caso de turistificação de um patrimônio arquitetônico e cultural, entendendo por turistificação o processo de apropriação de um espaço e/ou patrimônio pelos agentes sociais do turismo, com fins de sua inclusão em roteiros e pacotes turísticos comercializáveis.
O turismo caracteriza-se por ser uma atividade que toma a si os recursos naturais e culturais, agrega-lhes valores (acessibilidade, hospitalidade, equipamentos de alimentação e recreação, etc.) e os transforma em atrativos turísticos a serem comercializados pelos operadores e consumidos pelos turistas, sempre ávidos por um novo item para incluir nas suas agendas de viagens.
O que merece destaque nesse caso específico da catedral anglicana de Liverpool é o “caminho do meio” encontrado pelos seus responsáveis e gestores, para permitir a realização, em seu espaço sagrado, tanto dos cultos e demais rituais que caracterizam uma comunidade anglicana ativa, como também das visitas curiosas e, às vezes, um tanto ruidosas e inoportunas, de turistas interessados apenas em sua arquitetura monumental, sua acústica perfeita e seu patrimônio interno único.
Para tanto, a igreja tem normas claras, do tipo: nos horários de cultos e rituais e ensaios do coro da catedral, é permitida a presença de visitantes (leia-se turistas), desde que não ocorra o uso de máquinas fotográficas ou filmadoras e que haja silêncio, em respeito às atividades. O turista pode participar do culto, desde que como qualquer outro fiel, ou seja, deve se portar como um usuário do espaço sagrado e não como um turista.
Nos horários não ocupados com as atividades religiosas, os turistas podem circular à vontade, falar alto (e de vez em quando alguns efetivamente se esquecem de estar num lugar sagrado), tirar fotografias com flashes potentes, filmar, fazer poses, comprar na loja de souvenires, almoçar ou lanchar no restaurante e tudo mais que um visitante gosta e costuma fazer...
O exemplo de uso compartilhado dado pela Catedral Anglicana de Liverpool merece ser mais bem estudado, uma vez que quase todo patrimônio religioso construído e disponível no mundo atual é passível de ser turistificado. Não são somente as grandes catedrais que chamam a atenção do forasteiro que chega pela primeira vez a uma cidade, vila ou metrópole. Pequenas capelas e igrejas de arquitetura singela também são motivos de visitação pelos turistas. Muitas vezes, atraem por sua localização em colinas, promontórios e elevações que possibilitam visões ampliadas da cidade ou da região. Em outros momentos, atraem pela existência de algum fato histórico ou algum dito “milagre” ocorrido por ali.Tudo é, ou pode ser, motivo para que ocorra a turístificação de um recurso arquitetônico. O que se torna absolutamente necessário e importante é o planejamento desse processo de turistificação, para que o mesmo aconteça sem criar conflitos com aqueles que vêm naquele patrimônio não um exemplar arquitetônico, mas um espaço para expressar a sua crença, seja ela qual for.
É raro encontrarmos, mesmo nos destinos turísticos mais estruturados, um caso como o de Liverpool. O mais comum é a convivência conflituosa entre fiéis e turistas que disputam o mesmo espaço para momentos tão significativos, mas ao mesmo tempo, tão antagônicos...
Chega a ser triste, para não dizer deprimente, entrar na Notre Dame de Paris e presenciar uma fila infindável de turistas vindos de todos os cantos do mundo andando, em uma espécie de procissão profana, pelas naves laterais, enquanto na nave central, cercada por grades, os fieis tentam se concentrar nas palavras do sacerdote, que insiste em “rezar a sua missa”.
Cabe aos interessados nos processos de desenvolvimento turísticos – turismólogos, agentes públicos, empresários do setor, dentre outros – articularem um modus operandi de turistificação do patrimônio, seja ele natural ou cultural, edificado ou imaterial, que possibilite o seu uso e consumo pelos turistas sem que suas funções originais sejam prejudicadas em sua essência... No caso dos templos religiosos, dos cemitérios, dos sambaquis, dos espaços sagrados para algumas crenças, esse cuidado deve ser redobrado.
Os processos de turistificação não podem ocorrer de maneira prepotente, como se fossem inevitáveis e sempre responsáveis por fatos positivos para seus donos e usuários. O turista sempre será um forasteiro que chega para “fazer a festa no quintal do outro” e deve ser orientado e, em alguns casos, condicionado, a perceber que ele não é o dono do lugar e que, por isso, deve cuidar e respeitar o verdadeiro dono, aquele que estava ali desde muito antes e que tem naquele espaço o seu lugar de vida, com todas as implicações que essa expressão comporta.
sobre os autores
Ana Paula Spolon é é professora adjunta do Departamento de Turismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atua também como tradutora e consultora hoteleira. Formada em Hotelaria pelo Senac e em tradução pela Unesp, é mestre e doutora em arquitetura e urbanismo pela USP. Atua na área de estudos urbanos e reestruturação de cidades, a partir da investigação de temas relacionados ao turismo e à hotelaria.
Aguinaldo Cesar Fratucci é professor adjunto do Departamento de Turismo da Universidade Federal Fluminense. Arquiteto, mestre e doutor em geografia, com especialização em gestão de destinos turísticos. Dedica-se aos estudos sobre os processos de turistificação de lugares e dos impactos do turismo nos espaços por ele apropriados.