Tinha acabado de chegar a Paris umas horas antes. À parte de outros edifícios, este tinha sido sugerido pelo David na noite anterior, quando ainda estávamos no escritório em Londres. Apesar de estar preparado para o que iria ver, à saída do metro da Place du Colonel Fabien, enquanto comia um fumegante crepe com nutella sob a chuva de Abril, uma vez mais um edifício de Niemeyer provocava surpresa (1). Imagino que isto seja comum a grande parte dos seus edifícios (isto para além da onipresente dificuldade em se fotografar mal uma obra sua). É como a mulher que amamos incondicionalmente: é sempre bela e surpreendente e com o tempo ainda se torna mais.
Tal como com as mulheres, é sensato que ele consiga responder de forma assertiva a tudo a que se propõe. E ele conseguiu-o com este “prédio em curva” (2). De outro modo não poderia ser. A curva na sua arquitetura é tão essencial quanto a um homem ter uma uma mulher ao seu lado. Como o escritor uruguaio Eduardo Galeano afirmou: “Ele tem feito uma arquitetura livre como as nuvens. Sensual. Que é muito parecida com a paisagem montanhosa do Rio de Janeiro. São montanhas que parecem corpos de mulheres deitadas, desenhadas por Deus no dia em que Deus achou que era Niemeyer” (3).
Percebi que o espanto estava na invocação de um Rio de Janeiro no 19º Arrondisement de Paris. O desejo de ter uma mulher despida, sinuosa, depurada da alta-costura parisiense, relembrando as palavras de Melnikov (4).
O objeto de desejo ultrapassa o próprio edifício. Basta ver o museu de Niterói para perceber que, com as obras de Oscar Niemeyer, trata-se sempre de muito mais. É “uma coisa leve para não perturbar a Natureza (…) o Pão-de-Açúcar e toda a natureza está por baixo do museu (…) em volta é um espectáculo magnífico” (5).
O objecto de desejo é também a paisagem. O mesmo acontece com a Mulher como defende Gilles Deleuze auxiliando-se a Marcel Proust:
“Quero dizer: não desejo uma mulher – tenho vergonha de dizer estas coisas, Proust disse-o e é bonito em Proust – não desejo uma mulher, desejo também uma paisagem envolta nessa mulher, desejo também uma paisagem que posso não conhecer, que pressinto. E enquanto não tiver desenrolado a paisagem que a envolve, não ficarei contente, ou seja, o meu desejo não terminará, ficará insatisfeito. (…) Nunca desejo algo sozinho, desejo bem mais, também não desejo um conjunto. Desejo num conjunto. (…) O desejo sempre foi, para mim – se procuro o termo abstrato que corresponde a desejo – diria que é construtivismo. Desejar é construir um agenciamento, construir um conjunto” (6).
A obra que melhor reflete esta tríade “mulher-paisagem-agenciamento” (tétrade se incluirmos a “insatisfação”) é sem dúvida Brasília. Oscar Niemeyer fez parte de uma geração notável de intelectuais – poetas, músicos, arquitetos, urbanistas, cineastas, encenadores, entre outros – que consubstanciaram em Brasília todos os desejos em transformar a sociedade para algo melhor. “Mas não, quando se inaugurou a cidade, vieram os políticos, vieram os homens de negócios, era a mesma merda: a diferença de classes, a imposição do dinheiro, dos negócios, tudo o que até hoje anda aí” (7).
A Sede do Partido Comunista Francês em Paris (1966) surge assim como um epílogo da insatisfação e do desapontamento iniciado ironicamente com a inauguração de Brasília em 1960 e que culmina com o golpe militar de 1964, levando-o a exilar-se, mudando-se para Paris em 1965.
Pensar e desejar levou-o a fazer. Pensar no estado das coisas, desejar uma mudança e fazer por isso. É o que Oscar Niemeyer tem vindo a fazer ao longo dos seus 104 anos, sendo um exemplo para todos aqueles que realmente aspiram a algo.
notas
NA
O presente artigo, originalmente intitulado “A Brazilian in Paris”, foi publicado no blog “Hugo's Peep Box”, 15 mar. 2012 <http://hugopeepbox.wordpress.com/2012/03/15/abrazilianinparis/>.
1
“Quando me pedem um prédio público, por exemplo, eu procuro fazer bonito, diferente, que crie surpresa (…) ter um momento assim de prazer, de surpresa, ver uma coisa nova”. NIEMEYER, Oscar. In A vida é um sopro, 2010.
2
A vida é um sopro. Documentário (90’). Realização de Fabiano Maciel. Produção de Sérgio Celeste. Rio de Janeiro, Gávea Filmes, 2010.
3
GALEANO, Eduardo em A vida é um sopro. Realização de Fabiano Maciel. Produção de Sérgio Celeste. Rio de Janeiro: Gávea Filmes, 2010. 1 Documentário (90mins)
4
MELNIKOV, Konstantin “Podendo já fazer aquilo que me apetece, supliquei-lhe (à Arquitectura) que se despojasse do seu vestido de mármore, retirasse a maquilhagem e se mostrasse como ela própria: despida como uma deusa jovem e graciosa”
5
NIEMEYER, Oscar. In A vida é um sopro, 2010.
6
DELEUZE, Gilles. Entrevista de Claire Parnet com Gilles Deleuze. L’Abécédaire de Gilles Deleuze avec Claire Parnet. Paris, Éditions Montparnasse, 1988-1989. Exibido pela TV Arte, 1994-1995.
7
NIEMEYER, Oscar. In A vida é um sopro, 2010.
sobre o autor
Hugo Oliveira nasceu em Arlington (EUA, 1984). Mestre em arquitetura pelo ISCTE-IUL (Lisboa, 2009), estagiou no estúdio de David Adjaye (Londres, 2010). Tem vindo a colaborar com outros estúdios em Lisboa e Antuérpia (2010-). Entrevistou várias personalidades e encontra-se atualmente com diversos projetos editoriais e expositivos. Escreve regularmente no seu blog “Hugo's Peep Box”.