1947, Bertelmanplein. O arquiteto Aldo van Eyck (1918-1999) constrói seu primeiro playground em Amsterdã. Nas três décadas seguintes (até 1978), mais de 700 playgrounds foram erguidos, 90 dos quais sobreviveram e chegaram ao século 21 com seu desenho original (1).
Em 2002, a exposição “The playgrounds and the city” (2) celebrou essa rede criada, compilando a documentação e tornando-a legível no mapa de Amsterdã. Neste mesmo ano, a revista Archis publicou o “Psychogeographic Bicycle Tour of Aldo van Eyck’s Amsterdam Playgrounds” (3), que, assim como as imagens da exposição (4), tinha como objetivo revelar uma série de fotos mostrando o “antes” e o “depois”, atualizando a condição dos playgrounds entre 1976 e 2002. Em 2009, Jonathan Hanahan e Rory Hyde publicaram na revista Volume 22 um tour pelos mesmos playgrounds. A intenção: explorar o guia produzido em 2002 e revisitar os playgrounds, atualizando novamente seu estado.
Em continuidade a esse esforço de atualização, minha viagem a campo (abril de 2011) foi guiada por uma outra questão. Além de dividir o interesse sobre o uso atual desses playgrounds, quais foram e quais não foram modificados, é importante investigar em que medida os playgrounds criam “lugares” urbanos (5). Dado um certo caráter de neutralidade - já que sempre são constituídos pelos mesmos elementos: a caixa de areia, os brinquedos de barras metálicas, piso de areia/pedras - pretendeu-se averiguar se os playgrounds podem ser lidos como uma ferramenta que revela seu entorno, como ready-mades que mostram um lugar as found (6), uma rede de lugares articulados.
Van Eyck concebeu esses espaços temporários como medida emergencial. A cidade encontrava-se em grande parte destruída, com alto deficit habitacional e de equipamentos de uso coletivo e serviços; o Novo Plano para Amsterdã (Cornelis van Eesteren’s Algemeen Uitbreidingsplan, AUP, 1934) apoiava-se no ideal da separação funcional, segundo a qual habitação, trabalho, circulação e recreação deveriam ser funcionalmente separados. Terrenos não utilizados entre os blocos residenciais – blocos esses criados segundo os princípios do modernismo funcionalista da arquitetura e do urbanismo sob a pressão imposta pela falta de habitação no período pós-Guerra – (7) deveriam ser reprogramados em playgrounds por meio de operações de fácil execução.
Crítico(8) do plano funcionalista, van Eyck argumentou em nome de uma arquitetura posta à disposição da atividade humana e que promovesse uma interação social(9). Desenhou com esse objetivo um glossário simples para definir cada parte presente nos playgrounds: uma caixa de areia circunscrita por uma borda de concreto, blocos arredondados, uma estrutura de barras curvas, árvores e bancos. Ainda assim, a estandardização não pretendia repetir a monotonia dos blocos funcionalistas modernos. Pelo contrário, tratava-se de uma forma de ação tática na cidade existente como encontrada (as found) que tirava partido de terrenos que ofereciam a chance de uma função temporária.
O diálogo desses elementos no espaço ilustra uma série de práticas sem estrutura hierárquica (10). Os elementos básicos são recombinados em conjuntos diversos dependendo dos arredores. Isto faz com que os playgrounds sejam recriados em cada nova locação como um suporte à espera de um uso, uma interação - play (11). Da reivindicação dos equipamentos, construção e até a utilização dos playgrounds, a simplicidade é um ato consciente no sentido de estimular a imaginação e participação. Desenho e materiais empregados geraram composições de traço homogêneo que destacaram o entorno, mantido tal como encontrado (as found). O ambiente se torna o elemento mais importante, transformando espaços abertos em “lugares” conectados à especificidade de cada ponto.
Os playgrounds não eram apenas objetos a serem escalados, mas um lugar de encontros, para perceber o próprio cotidiano de forma nova, repropor a relação com a vizinhança, a partir de uma natureza intersticial comum. Seus espaços foram criados pela circunstância, apropriação e utilização temporárias, por instantes e situações, um conceito que tangencia a Teoria dos Momentos (12), de Henri Lefebvre, na qual a cidade é definida como uma estrutura aberta a diferentes temporalidades que constantemente estabelecem novos códigos no espaço físico. Essa noção de cidade como estrutura aberta indica uma rede de terrenos a serem reprogramados, mudando sua vocação no mesmo instante e adicionando significado com base no conceito de “lugar” (13). Lemos em Lefaivre:
“Como seus amigos artistas Piet Mondrian e Constant Nieuwenhuys, van Eyck pensava na cidade ideal como um labirinto de pequenos territórios íntimos ou, mais poeticamente, como uma constelação casual de estrelas. Um playground em cada esquina era apenas um primeiro passo para a ‘cidade lúdica’: a cidade da brincadeira (‘play’). ‘O que quer que tempo e espaço signifiquem’, ele dizia para criticar seus colegas arquitetos modernistas, ‘lugar e ocasião significam mais.’” (14)
Todos esses argumentos apontam para a ideia de uma outra cidade a ser produzida, de forma distinta de como se estava fazendo a reconstrução no pós-Guerra. Tratava-se de realizar a leitura do existente, reinterpretando-o - um elogio ao trivial retratado nos playgrounds, de van Eyck, de 1947, que coincide com a primeira publicação da Crítica da Vida Cotidiana de Lefebvre, publicada no mesmo ano (15). O uso de terrenos baldios revela uma operação tática, que tira vantagem do potencial oferecido por situações de mudança em momentos de reconstrução urbana. Esses playgrounds ocuparam terrenos que estavam vazios e em mau estado de conservação.
O primeiro playground, em Bertelmanplein, foi um experimento bem-sucedido. Se o sucesso em 1947 foi medido pela intensidade do uso e livre apropriação, em 2011, ele é expressável na capacidade de adaptação do desenho se articular com o local. Percorrer alguns desses playgrounds hoje revela um importante objeto (construído) de estudo, que antecipa a discussão e teorização desenvolvidas nas duas décadas seguintes em torno da ideia de “lugar” (place, site, as found), de redes atreladas a ele (structuralism, open networks) e do play como forma de subverter e modificar os espaços cotidianos.
notas
NA
Este artigo foi produzido para e publicado originalmente na Revista Marcelina, ano 3, número 6, 2011, editada por Lisette Lagnado e Mirtes Marina de Oliveira. Texto e fotos por Marcos L. Rosa.
1
OUDENAMPSEN, Merijn. Aldo van Eyck and the City as Playground. In: www.flexmens.org/drupal, 10/10/2009.
2
Cf. Exposição no Stedelijk Museum, Amsterdã, 15 junho –18 setembro, 2002.
3
LEFAIVRE, Liane; BOTERMAN, Marlies; LOEN, Suzanne; MIEDEMA, Merel, “A psychogeographical bicycle tour of Aldo van Eyck’s Amsterdam playgrounds”, in: Archis, nº 3, Amsterdão, 2002, pp.129-135.
4
Cf. Arquivo do Departamento de Desenvolvimento Urbano de Amsterdã.
5
No sentido de “lugar” como definido por Marc Augè.
6
Cf: as found, Peter and Alison Smithson: A. & P. Smithson, The ‘As Found’ and the ‘Found’, in David Robbins, ed., The Independent Group: Postwar Britain and the Aesthetics of Plenty. Cambridge, Mass., MIT Press, 1990. pp. 20-25.
7
“Postwar urban planning in the Netherlands mainly consisted of a rushed and economized implementation of the prewar ideals of the modernist architects like Le Corbusier, Giedion, and Gropius.” In: Oudenampsen, 2009.
8
O The Team X, do qual Aldo van Eyck era membro, se posicionou contra o Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM), que aconteceu pela última vez em 1959. O Team X tomaria o lugar do antigo pensamento racionalista e funcionalista para propor algo novo. A nova arquitetura deveria ser modular, aberta à participação e deveria estruturar práticas criativas.
9
van Eyck, Aldo, ‘Het Verhaal van een Andere Gedachte’ (The Story of Another Thought). In: Forum 7, Amsterdã e Hilversum, 1959. In: Oudenampsen, 2009.
10
OUDENAMPSEN, Merijn. Aldo van Eyck and the City as Playground. In: www.flexmens.org/drupal, 10/10/2009.
11
No sentido definido pela Internacional Situacionista (IS).
12
Desenvolvido em paralelo à Internacional Situacionista, para a qual o elemento play e o playful man (homo ludens), prepararam o campo para uma cidade cheia de possibilidades lúdicas. Para a IS, play é uma estratégia subversiva para mudar a cidade moderna, do espetáculo.
13
Marc Augè descreve lieux (“lugares”) como espaços definidos através de sua relação com sua história e a identidade formada a partir dessa relação.
14
LEFAIVRE, Liane; DE ROODE, Ingeborg; VAN EYCK, Aldo. The Playgrounds and the City (catálogo). Stedelijk Museum Amsterdã, Rotterdão: NAi Publishers, 2002.
15
A teoria de Lefebvre tinha como objeto a periferia de Paris.
referências bibliográficas
AUGÉ, Marc. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994. Or. Non-Lieux. Introduction à une anthropologie de la surmodernité. Paris: Seuil, 1992.
HANAHAN, Jonathan; HYDE, Rory. “Aldo van Eyck playground tour 2009”, in: Volume Magazine, nº 22, Amsterdão, 2009, pp. 36-39.
LEFAIVRE, Liane; DE ROODE, Ingeborg; VAN EYCK, Aldo. The Playgrounds and the City (catálogo). Stedelijk Museum Amsterdã, Rotterdão: NAi Publishers, 2002.
LEFAIVRE, Liane; TZONIS, Alexander; VAN EYCK Aldo. Humanist Rebel, 010 Publishers, Rotterdão, 1999.
LEFAIVRE, Liane; LUDENS, Puer. In: Lotus International, nº 124, Milão, 2005, pp. 78-85.
LEFAIVRE, Liane; BOTERMAN, Marlies; LOEN, Suzanne; MIEDEMA, Merel, “A psychogeographical bicycle tour of Aldo van Eyck’s Amsterdam playgrounds”, in: Archis, nº 3, Amsterdão, 2002, pp.129-135.
OUDENAMPSEN, Merijn. Aldo van Eyck and the City as Playground. In: www.flexmens.org/drupal, 10/10/2009.
VAN DEN BERGEN, Marina, Aldo van Eyck, translation: Billy Nolan. In: http://www.classic.archined.nl/news/0207/AldovanEyck_playgrounds_eng.html, 13/04/2011.
sobre o autor
Marcos L. Rosa, arquiteto (FAU USP 2004), é pesquisador na Alfred Herrhausen Society e doutorando na Universidade Técnica de Munique, curador do prêmio Deutsche Bank Urban Age Award 2013, no Rio de Janeiro. lecionou e pesquisou no Departamento de arquitetura e desenho urbano da ETH Zurich, na Universidade Técnica de Munique e na Escola da Cidade. Organizador de ‘Handmade Urbanism’ (2013) de ‘Microplanejamento. Práticas Urbanas Criativas. São Paulo’ (2011), Co-editor da revista ‘Arch+ 190 São Paulo’, Berlin (Novembro 2008).