O nome de Henri Labrouste (1801-75), arquiteto francês que atuou às beiras do início do modernismo sempre esteve em minha mente, como um eco distante das aulas de história e teoria da arquitetura de vários anos atrás, ainda na faculdade. Labrouste, como todo estudante de arquitetura aprende, foi um dos ícones de sua época; um dos precursores no uso do aço como elemento estrutural arquitetônico, mas também por tê-lo empregado, de forma primorosa, como ornamento. Uma de suas obras-primas, a Bibliotèque Sainte-Genèvieve, construída em Paris entre 1843 e 1850, é um exemplo da transformação que Labrouste instigou em gerações seguintes de arquitetos, entre eles, seus estudantes, como Viollet-le-Duc.
A forma como lidamos com a história é às vezes apagada e insólita, pouco interativa, e Labrouste era ainda para mim um desses ícones tão importantes, mas ao mesmo tempo tão distantes, como as ilustrações em preto-e-branco de suas obras nas páginas de livros de teoria. Essa distância respeitosa tornou-se de súbito uma simpatia, quase uma amizade, quando passei a visitar diariamente uma das exposições recentes do Museu de Arte Moderna de Nova York. A mostra Labrouste, Structure Brought to Light (Estrutura trazida à Luz), organizada pelo departamento de curadoria de Arquitetura e Design, foi inaugurada no último dia 10 de março de 2013. É a primeira exposição individual sobre o arquiteto nos Estados Unidos e apresenta desenhos inéditos de seus projetos (1).
Exposições de arquitetura podem ser difíceis e insossas para o público geral. Desenhos muito técnicos são pouco atraentes para olhos não-treinados e já acostumados a vislumbrar maquetes em três-dimensões e plantas humanizadas super-coloridas. Pode-se pensar que desenhos técnicos do século XIX fossem ser bem desinteressantes, mas não é o que acontece em Labrouste, no MoMA. A exposição, que teve sua origem na Cité de l’architecture e du patrimoine em Paris, foi dividida em três seções e começa mostrando a trajetória de Labrouste no início de sua carreira, até a produção de arquitetos racionalistas que, direta ou indiretamente, apresentam afinidades ou foram influenciados por seus projetos.
No MoMA, um longo corredor abre a exposição, nos transportando às viagens de Labrouste pela Itália, ainda quando estudante. Aos vinte e três anos Labrouste foi premiado com o Prix de Rome, com direito à láurea e estudos em Roma, por cinco anos. O jovem Labrouste, levando seu caderno e estojo de aquarelas, passou a não só registrar o que viu, mas recriar o que já havia sido consumido pelo tempo. E é nesse período, ainda estudante, que Labrouste começa a se tornar, além de arquiteto, um desenhista-pesquisador. Labrouste era extraordinário desenhista, mas seus desenhos são muito mais que croquis. Labrouste não era um mero copista. Barry Bergdol, curador-chefe de Arquitetura e Design no MoMA, diz que a exposição Labrouste, Structure brought to Light, não pretende ser uma retrospectiva rígida e histórica da produção do arquiteto, mas sim uma revisão acadêmica da própria figura de Labrouste, reposicionando-o como incentivador do conhecimento, através de seus projetos e de seu desenho.
Labrouste foi um dos primeiros arquitetos a não se contentar com o estudo acadêmico, mas a experimentar a história da arquitetura in loco. Para o jovem Labrouste o desenho se tornou uma forma de se presenciar o passado. Durante seus estudos em Roma, Labrouste passou a não só reconstituir os edifícios que registrava, mas pincelar sua imaginação sobre os possíveis usos daqueles espaços. Ele estava interessado na efemeridade da arquitetura, no que acontecia nos templos daquela época, e passou a acrescentar elementos não usuais a desenhos técnicos, como escudos, ornamentos e estátuas que habitariam aquelas edificações, quase como se ele pudesse voltar no tempo e fotografar um momento na vida daqueles edifícios.
As elevações e perspectivas do Templo de Netuno em Paestum, na Itália (também conhecido como Templo de Hera), se transformam em verdadeiras narrativas daquela história, através da estória visual que Labrouste nos transmite. A beleza de seus trabalhos pode sugerir que Labrouste tivesse sido apenas um bom desenhista e ilustrador, mas ao visitar a exposição percebemos que seus desenhos não eram produzidos de forma ilustrativa por mero divertimento estético ou decorativo, mas eram para ele uma forma diálogo, de convencimento, de persuasão de que aquele era o cenário que nos aguardaria se pudéssemos voltar à Roma antiga. É como se, fascinado por aquelas construções, Labrouste nos transportasse àquele tempo, como se contasse histórias através do ato de desenhar, mesmo quando o fazia de forma técnica.
No MoMA, a galeria destinada a exposições especiais no terceiro andar foi alterada especialmente para dar continuidade à narrativa que Labrouste exibe em papel, nos ajudando a percorrer essa viagem através do tempo. Por exemplo, o corredor que dá forma à primeira sala da exposição foi construído como uma arcada contínua, incorporando a mesma tipologia usada por Labrouste em suas bibliotecas.
Nas salas seguintes, que levam o nome de Espaços do Conhecimento, as suas duas principais obras-primas, as bibliotecas de Sainte-Genèvieve e a Bibliotèque Nationale, são apresentadas. Na sala dedicada à Sainte-Genèvieve, mesas inspiradas em pranchetas foram usadas como expositores para os desenhos técnicos que compunham o projet: plantas, cortes, elevações, perspectivas ilustradas e detalhes ornamentais e construtivos. Um dos mais impressionantes é a Corte Transversal da Sala de Leitura e Elevação da Fachada Oeste (fig.), que mostra centenas de minúsculos livros, luminárias e ornamentos, todos desenhados com precisão de dar inveja a qualquer cadista. O preciosismo dos desenhos aquarelados de Labrouste se revela também na forma como ele conduziu a construção da Sainte-Genèvieve. O arquiteto mantinha um diário com a evolução da obra, contando as dificuldades, os atrasos, e falando dos profissionais que o auxiliavam no processo (2).
Labrouste transformou Sainte-Genèvieve em um templo de conhecimento, não é à toa que seu interior se assemelha a edificações de usos religiosos. Para Labrouste conhecimento era algo transcendental e esse conceito foi aplicado diretamente no espaço projetado, tanto nas questões estruturais, como nas funcionais. Para a Sainte-Genèvieve, Labrouste projetou um sistema de abastecimento à gás que acendia as luminárias da biblioteca. Esse sistema, um marco para época, permitia que os estudantes frequentassem a biblioteca e pesquisassem mesmo à noite. Labrouste projetou os espaços de estudo próximos às grandes aberturas zenitais para que a luz natural inspirasse os estudantes. Exibidas em monitores, ao lado dos desenhos, estão recriações em três dimensões dos interiores da biblioteca, mostrando como era o ambiente iluminado à gás, mas nem são tão necessárias, pois a narrativa arquitetônica de Labrouste fala por si só.
A mostra também apresenta os desenhos de detalhes arquitetônicos da Bibliotèque Nationale e, para os dois projetos, maquetes em escala e detalhamento generosos. Na última sala encontram-se os desenhos de alguns dos egressos do atelier de Labrouste além de projetos e maquetes de Hector Guimard, Viollet-le-Duc, Anatole Batot e fotos de edifícios racionalistas que, como Bergdoll coloca, possuem afinidades com a arquitetura de Labrouste e utilizaram o aço aparente em suas estruturas, como no Guarantee Building (c.1985) de Louis Sullivan.
A grande lição de Labrouste para os arquitetos do nosso tempo é a sua intimidade com o conhecimento. Suas investigações o levaram a vivenciar profundamente a arquitetura, para depois transformá-la. Sua dedicação já começava na linha inicial de seus croquis, na primeira horizontal que define um projeto, passando pela cor que tinge colunas, nos cálculos dos vãos, no desenho das arcadas, para se propagar ad aeternum, fisicamente, nos espaços que ele criou. Um ciclo entre mão, lápis, tinta, papel e materialização em “lugar” que talvez hoje esteja quase fadado ao fim, mas que revela que ainda temos muito o que aprender com essa intimidade com o ato de projetar. Ver Labrouste não é só rever o passado, mas sim colocá-lo frente a frente ao ofício do arquiteto de hoje. A valorização do “saber” que se transforma em espaço ainda está bem viva nas narrativas de Labrouste, e seus segredos são revelados no produto mais básico, e ao mesmo tempo mais essencial de um arquiteto: seu desenho.
notas
1
Exposição Henry Labrouste, Structure Brought to Light. Museu de Arte Moderna de Nova York, de 10 de março a 24 de junho de 2013. Exposição organizada por Barry Bergdoll, Philip Johnson Curador-Chefe de Arquitetura e Design, The Museum of Modern Art; Corinne Bélier, curadora chefe, Cité de l’architecture & du patrimoine; e Marc Le Cœur, historiador, Bibliothèque nationale de France, département des Estampes et de la photographie. Curador Assistente: Patricio Del Real.
2
O diário digitalizado pode ser acessado online aqui: http://multimedia.bnf.fr/visiterichelieu/architecture/lab_ap.htm
sobre a autora
Tatiane Schilaro Santa Rosa, arquiteta, foi coordenadora do departamento técnico da Associação Viva o Centro. Atualmente faz estágio no MoMA, na área de curadoria de arquitetura e design.