“O Uruguai é onde ninguém morre”
meu orientador me disse
foi a primeira vez que ouvi
falar deste país
e nunca mais ouvi
desde então quis
pegar o barco
para ir do outro lado
para não morrer
queria mesmo era felicidade
destas que
num precisa dizer
destas que invade
felicidade mansa
expulsão branca
de saudade
toda
Sonia Marques, Natal, 25 de fevereiro de 2002
Uma amiga escreveu um capítulo inteiro de poemas sobre o Uruguai sem conhecer o país. Intrigada, perguntei o porquê do Uruguai, e ela me respondeu com dois motivos literários: Borges e Bioy Casares. De Jorge Luis Borges eu já era leitora, e, depois desta resposta, passei a ser de Adolfo Bioy Casares. Adorei. O fato é que os poemas de minha amiga são muito bons, mas nem eles, nem os autores citados, nem o genial Eduardo Galeano, nem Vinícius de Morais, que viveu em Montevidéu, nem mesmo o meu amor pela literatura foram o meu motivo para conhecer o Uruguai. A razão era bem mais simples: um querer, que não sei onde nasceu, uma curiosidade pura por um país do tamanho de um livro de bolso, permitindo-me esta licença poética. Isso, no entanto, não significa desconsiderar tais autores, ao contrário, alguns deles terão trechos de seus livros citados ao longo deste texto, que quer, tão somente, compartilhar a boa surpresa que foi, para mim, o Uruguai.
Então, parti, e ali cheguei no dia 14 de novembro de 2013. Logo na chegada, descobri que a cordialidade dos vizinhos começa no aeroporto, que dá boas-vindas ao mundo. E eu que só conhecia os uruguaios das ótimas Histórias de Amor, de Casares.
O Aeroporto Internacional de Carrasco, cujo nome oficial é General Cesario L. Berriso, foi projetado pelo escritório do arquiteto uruguaio Rafael Viñoly (Rafael Viñoly Architecture Center) e pelo arquiteto Julian Evans (Corporación América). Nos estudos e pesquisas para o trabalho colaboraram as Universidades do Uruguai e de Buenos Aires, e a construção contou com a participação de empresas brasileiras. Todo o partido desse projeto é ditado pela magnífica curva da cobertura, que tem 366 metros de comprimento, 131 metros de largura e 36,7 metros de altura no seu eixo central (1). A curva conduz a visão a percorrê-la panoramicamente, de uma ponta a outra, desde o chão. Para quem está no interior, a sensação de amplitude é libertadora, graças também à total transparência do volume sob a curva.
Na região de Carrasco, onde está o aeroporto, percorre-se uma estrada ladeada por bosques verdejantes e casas fartamente ajardinadas. Já ao entrar em Montevidéu propriamente, pela rambla, a avenida à beira-rio, o deslumbre fica por conta do Rio da Prata, com sua amplitude oceânica, espraiando-se ali, bem ao seu lado.
No caminho da rambla até o centro da cidade, as arquiteturas art déco e neoclássica despontam em hotéis e cassinos, ou hotéis-cassinos, sempre estrategicamente posicionados diante das praias que o rio forma, a exemplo do Hotel Casino Carrasco.
No percurso pela rambla, passa-se por Punta Gorda e por Pocitos, este último o bairro onde morou Vinícius de Morais, quando trabalhava na Embaixada do Brasil no Uruguai. Sobre esse tempo, é reveladora a crônica Contemplações do Poeta do Cair da Noite, onde Vinícius declara: “E não era incomum ficarmos, eu e a lua de Montevidéu, em doce conúbio, ela dilatando os espaços com os raios de seu amor, eu esvaindo-me de amor em seu luar” (2). Esta crônica está no livro Para Viver um Grande Amor, onde também se lê o Soneto de Montevidéu.
A chegada no centro da cidade é na monumental Plaza Independencia, originalmente projetada por Carlo Zucchi, em 1837 (3). A praça tem em seu centro focal a estátua equestre do general Artigas, herói nacional uruguaio. Jose Gervasio Artigas (1764-1850) foi o chefe do primeiro governo nacional uruguaio, em 1815, com o título de Protector. Em 1816, Artigas lutou contra as tropas luso-brasileiras que ocuparam Montevidéu em 1817 (4).
Estátuas equestres são relíquias históricas, pois é raríssimo que alguém hoje saiba esculpir em metal a anatomia humana e a anatomia dos cavalos. Isso é uma arte que praticamente se perdeu. Além do mais, essas estátuas representam heróis, e os heróis atuais, se é que existem, não montam mais a cavalo. Impossível não citar essas estátuas aqui, porque Montevidéu tem várias e belíssimas estátuas equestres, em praças da Ciudad Vieja, nos jardins do Parque Rodó, diante do Estádio Centenário, entre outras tantas localizações.
Em torno da Plaza Independencia, notáveis arquiteturas, como o neoclássico Museo de la Casa de Gobierno, Edificio Jose Artigas, e o Palacio Salvo, de 1928, projetado pelo italiano Mario Palanti (5), ainda hoje o mais alto prédio da cidade, com seus 26 andares. O Palácio Salvo se desenvolve sobre uma grande colunata que forma planta em “L”, acompanhando a esquina. Em seus planos verticais, notam-se mansardas na parte mais baixa do prédio, e quatro torreões envolvendo a torre principal. Sua arquitetura revela linhas art nouveau, mas também lembra um primeiro modernismo da Escola de Chicago.
Na Plaza Independencia adentra-se a Puerta de la Ciudadela, e aí já se está na Ciudad Vieja, o sítio histórico de Montevidéu. A porta é parte remanescente de uma muralha, levantada em 1742 (6), para defesa de Montevidéu. Trata-se, assim, de um marco na cidade, referenciado inclusive no texto da visita guiada do Teatro Solís, que fica bem perto dela.
A partir da Puerta de la Ciudadela, no início do calçadão Sarandí, encontram-se dois atrativos da Ciudad Vieja: a Livraria Más Puro Verso e o Museu Torres García (7). O Museu Torres García dedica-se à obra do pintor uruguaio Joaquín Torres García (1874-1949), e é dirigido pelos bisnetos do artista, Jimena Perera e Alejandro Diaz. Além de pinturas, desenhos, livros, Torres García produziu cenários para teatro. O pintor foi criador do grupo e da revista Cercle et Carré, e formou um sistema estético-filosófico próprio, o Universalismo Constructivo, “uma arte construída com base em princípios de proporção, unidade e estrutura” (8).
Texto sobre a exposição de Torres García na Pinacoteca do Estado (São Paulo, de 03/12/2011 a 26/02/2012) aquilata a importância do pintor, ao afirmar que o artista “deixa como legado uma escola pictórica e americana com identidade própria – La Escuela Del Sur – , que permanece como um dos mais consistentes movimentos artísticos do século XX” (9).
A livraria Más Puro Verso fica ao lado do Museu Torres García e funciona em prédio de 1917. Tem vastíssmo acervo literário, e conta com um ótimo restaurante no primeiro piso. Seu espaço interno é dominado por um rico vitral, o atendimento é afável, e tudo somado, faz valer a visita.
Continuando o percurso no calçadão Sarandí, encontra-se a histórica Plaza Constituición, também chamada de Plaza Matriz, pois diante dela está a Igreja Matriz, a catedral. A praça deve seu nome oficial ao fato de ali se ter jurado, em 18 de julho de 1830, a primera Constituição da República Oriental do Uruguai (10). Muito verdejante, a praça é dotada de uma bonita fonte de mármore, inaugurada em 18 de julho de 1871.
Uma das ruas que circundam a Plaza Constituición é a Ituzaingó, em cuja esquina com a rua 25 de Mayo está o Café Brasilero, que existe desde 1877 e conserva charmosas movelaria e vitrine de madeira e vidro. Defronte a Plaza Constituición, no calçadão Sarandí, está um belo prédio neoclássico, em cujo térreo encontram-se duas ótimas opções gastronômicas, a descolada Cervecería Matriz e o elegante restaurante La Corte.
A gastronomia tradicional uruguaia tem a sua vez no Mercado del Puerto, galpão de estrutura de ferro de 1868, na vizinhança da Alfândega e do Porto de Montevidéu. Ali se come a verdadeira parrilla, o churrasco ao modo uruguaio, uma delícia. Para chegar ao mercado de um modo bastante agradável, percorrendo dois calçadões, escolha a Sarandí, e vire na Pérez Castellano, que leva direto ao Mercado del Puerto.
Ainda na Ciudad Vieja, um programa imperdível é a visita guiada ao Teatro Solís. O teatro deve seu nome a uma homenagem ao navegante Juan Díaz de Solís, descobridor do Rio da Prata. Seu projeto original é de 1840, de autoria do arquiteto italiano Carlo Zucchi. Este projeto foi posteriormente modificado por Francisco Javier De Garmendia, e o teatro foi afinal inaugurado em 25 de agosto de 1856 (11).
Em sua arquitetura neoclássica, destaca-se um detalhe curioso: no topo do frontão há uma lanterna vermelha, que, quando acesa, informa que há espetáculos no teatro. Um sinal que a verticalização atual certamente oculta, mas que ao tempo da criação do teatro tinha importante siginificado para a cidade. No interior, destaca-se a sala principal, que tem forma forma elíptica. Adentrá-la é o grande momento da visita guiada, que transcorre desde o seu foyer com apresentações de pequenos esquetes teatrais. O tema dos esquetes é a vida de imigrantes espanhóis e italianos na formação do Uruguai.
Além da Ciudad Vieja, o centro da cidade tem outros passeios agradáveis para o turista arquiteto, por exemplo, caminhar pela Avenida 18 de Julio. Esse percurso descortina exemplares modernistas, lindos prédios art déco bem conservados, e muitos neoclássicos, a exemplo do Palácio Santos, do Ministério das Relações Exteriores do Uruguai; e da Universidade do Uruguai, locação do ótimo filme La vida útil: Um conto de cinema (Uruguai, Espanha, 2012, Frederico Veiroj).
Diante da universidade, está-se defronte a uma das extremidades da Feira Tristán Narvaja, na rua de mesmo nome, no bairro de Cordón. Coelhinhos, preás, peixinhos, cachorrinhos, hortifrutigranjeiros, livros, revistas, artesanato, antiguidades, prestação de serviços de relojoaria, tudo isso está ali. A feira não tem qualquer tipo de padronização, nem de bancas, nem de carros, nem de vendedores, em uma palavra: é superdemocrática. Por exemplo, um rapaz vendia, em pé, três filhotes de perdigueiro expostos em simples caixas de papelão, enquanto os bichinhos pulavam de uma caixa para outra, o que as crianças adoraram ver. A parte de antiguidades, que surge à medida em que se distancia da Avenida 18 de Julio, é um capítulo à parte, com suas ferramentas, câmeras, e toda espécie de máquinas antigas. Além de todo o interesse da feira, e do casario da rua, percorre-se o trajeto inteiro à sombra de frondosas árvores de plátano, o que torna o passeio ainda mais agradável.
Saindo agora da Ciudad Vieja e do centro da cidade, para percorrer outros bairros de Montevidéu, se você gosta de futebol, não pode perder a visita ao legendário Estádio Centenário. Projetado pelo arquiteto Juan A. Scasso, o estádio foi construído em 1930, para a primeira Copa do Mundo, na qual o Uruguai sagrou-se campeão. O estádio está em um bairro luxuoso da cidade. Neste sentido, guarda semelhança com o Pacaembu, em São Paulo, um grande equipamento esportivo em um bairro de luxo. Assim como no Pacaembu paulista está o Museu do Futebol, no Centenário está o Museo del Fútbol. No museu, encontra-se um bom acervo formado por camisas, documentos, taças, troféus, cartazes, fotografias, e outros testemunhos que contemplam o futebol da América Latina como um todo.
Literária, poética, pictórica, teatral, gastronômica, ludopédica, Montevidéu é adorável. Lembrando a obra de Galeano, El Libro de los Abrazos, quero terminar confessando que escrever este texto foi a minha maneira de mandar a Montevidéu um grande abraço, com saudades.
sobre a autora
Eliane Lordello é doutora em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2008) e arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.
notas
1
Para conhecer todos os detalhes técnicos do projeto do Aeroporto Internacional de Carrasco, acesse Arcoweb. Disponível em: <http://www.arcoweb.com.br/finestra/arquitetura/rafael-violy-architecture-aeroporto-de-carrasco---montevideu-uruguai>. Acesso em: 7 dez. 2013.
2
MORAIS, Vinícius. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1982, p. 122-124.
3
Cf.: Wikipedia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_Independ%C3%AAncia_(Montevid%C3%A9u)>. Acesso em: 7 dez. 2013.
4
HOUAISS, Antonio. Pequeno dicionário enciclopédico Koogan Larousse. Rio de Janeiro: Larousse do Brasil, 1982.
5
PEIXOTO, Fábio. Vamos invadir. Viagem e Turismo, São Paulo, ano 11, n. 150, p.52-59, abr. 2008.
6
AGUERRE, Gabriela. A vez de Montevidéu. Viagem e Turismo, São Paulo, ano 13, n. 178, p.64-73, ago. 2010.
7
Cf. Museo Torres García. Disponível em: <http://www.torresgarcia.org.uy/index_1.html>. Acesso em: 8 dez. 2013.
8
Tradução nossa. No original: “un arte construido en base a los principios de proporción, unidad y estructura.”. Disponível em: <http://www.torresgarcia.org.uy/uc_119_1.html>. Acesso em: 8 dez.2013.
9
Disponível em: <http://www.pinacoteca.org.br/pinacoteca-pt/default.aspx?c=exposicoes&idexp=1125&mn=537&friendly=Exposicao-Joaquin-Torres-Garcia>. Acesso em: 8 dez. 2013.
10
Cf. Plaza Matriz. Disponível em: <http://es.wikipedia.org/wiki/Plaza_Matriz>. Acesso em: 8 dez. 2013.
11
Cf. Teatro Solís/Historia. Disponível em: <http://www.teatrosolis.org.uy/uc_130_1.html>. Acesso em: 8 dez. 2013.