A jornalista que enfrentou os tratores de Robert Moses na Nova Iorque do final da década de 1950, e que inspirou urbanistas pelo mundo todo a recolocarem as pessoas no centro de suas preocupações, faria 98 anos neste mês de maio.
A defesa intransigente das calçadas, a urbanidade, a importância do pequeno comércio, dos usos combinados e da diversidade, Jane Jacobs desfilou ideias simples e poderosas em seu Morte e vida das grandes cidades, de 1961.
Uma delas é a descrição do "balé" da vizinhança, em que, ao longo do dia, os estabelecimentos comerciais vão sendo abertos, as pessoas se encontram, conversam, pedem favores. Crianças brincam, vigiadas pelos "olhos da rua". Gente que está nos prédios participa da rua. Estranhos aparecem, interagem, pedem informações, passam, sem ameaçar a tranquilidade dos moradores.
É às calçadas que a autora atribui o papel da convivência, da troca entre as pessoas, da própria segurança do bairro.
Ora, pensei, se as calçadas do quarteirão de Jane Jacobs no Greenwich, em Nova Iorque da década de 1960, foram tão inspiradoras, quem sabe uma voltinha pela minha vizinhança em Pinheiros, São Paulo em 2014, pudesse pelo menos trazer alguma ideiazinha sobre a urbanidade. Quem será que está por aí, pelas calçadas, cuidando da cidade?
Sem andar muito, encontrei duas realidades bem diferentes.
A primeira realidade é o quarteirão dos muros altos.
Nesse trecho das casas e prédios cercados, a calçada é dos guardas. Eles dão indicações, conversam com o carteiro, os entregadores e as empregadas domésticas que lavam a calçada mesmo na estiagem. Opa! Um passeador de cachorros, e levando cinco de uma vez! Um morador entra de carro, a porta automáticas se abre e fecha e ele desaparece sem deixar vestígios. Nos finais de semana, quando o trânsito diminui, vejo muitos desses moradores de tênis, caminhando e curtindo o leito da rua. Ou seja, o pessoal até quer sair por aí, mas os muros altos, as calçadas estreitas, o trânsito de carros os afastam da rua. Quando, há alguns meses, uma árvore caiu e interrompeu o trânsito, a rua ficou lotada, parecia uma festa e um vizinho com quem nunca tinha conversado pediu pizza e ofereceu para todo mundo.
Atravessando a rua, chego a outro tipo de configuração que talvez fosse mais do jeitão da Jane Jacobs, os quarteirões de usos variados, que têm igreja, lojinhas, banca de jornal, bares, prédios, escritórios, um clube, escola de inglês, academia... A diferença é clara: aqui, tem gente nas calçadas!
Logo ali, na esquina da igreja, o homem que costuma dormir na calçada me cumprimenta, mas sai correndo para ver se consegue algum trocado de uma moça que estaciona seu carro. Ela tenta se livrar rapidamente mas não escapa de um pedágio urbano compulsório.
Uma banca de jornal mais adiante faz algumas pessoas pararem – será o álbum de figurinhas da Copa?
Mesas de uma padaria invadem a calçada, e até atrapalham a caminhada, mas pelo menos estão lá, oferecidas a quem pagar o preço de um café para ter direito à vista.
Três funcionários de um bar fumam sentados numa mureta. Duas professoras de pilates também fumam, um pouco ressabiadas, talvez não queiram que seus alunos as vejam.
Na hora do almoço, os trabalhadores de escritórios em torno exibem orgulhosos seus crachás enquanto passeiam despreocupados num passo que evidencia a pouca vontade de retomar o trabalho. Um deles palita o dente e dois parecem muito interessados em ajudar a única moça do grupo, que, de salto alto, tropeçou num pedaço de raiz que levantou o piso. Ela retribui com um sorriso largo mas ambíguo, que parecia incluir os dois, sem garantir nenhum.
À tarde, há uma certa calmaria. Pedreiros de uma obra trabalham sem pressa e um casal passeia tranquilo.
No final da tarde, o happy-hour começa devagar, mas logo vai lotando a cervejaria.
Às sextas e sábados, os casamentos enchem o ar de música e as calçadas de convidados bem vestidos, que esperam pelos manobristas sem ousar sair dali. Mas não há razão para temer. Mesmo na fraca luz, tem gente andando e rindo, indo e vindo da pizzaria que fica logo ali mais em frente. Até no predião fechado pelas indefectíveis grades, alguns adolescentes ficam por ali, conversando, tranqüilos.
Não, não são os quarteirões do ideal de urbanidade que Jane Jacobs pregou.
E o ritmo da nossa calçada não se parece com um balé, talvez um baião meio truncado, que avança enquanto retrocede. Mas é o ritmo que temos no momento e deu vontade de sentar ali na muretinha da igreja e apreciar um pouquinho os dançarinos do nosso cotidiano, enquanto imagino o que acontecerá com esse pedaço de mundo nos próximos 98 anos. Enquanto isso, os ideais de Jane Jacobs parecem mais vivos do que nunca...
sobre o autor
Mauro Calliari é administrador de empresas, mestre em urbanismo e consultor de organizações.