Em 1972, ainda estudante de arquitetura em São Paulo, um amigo emprestou-me um livro (por via das dúvidas, aviso que o devolvi), pois eu lia desenfreadamente tudo que caía nas mãos por causa da viagem diária de trem até a faculdade, em Mogi das Cruzes. O livro era Cem anos de solidão, de um autor colombiano chamado Gabriel Garcia Márquez e foi como uma revelação, a partir daí tornei-me um leitor inveterado de outros autores latino-americanos como Vargas Llosa, Roa Bastos, Skármeta, Fuentes, Cortázar e Benedetti.
O fato é que, naquela época de ditaduras militares por todo o continente, vivíamos de costas para nossos vizinhos que falavam espanhol. Desconhecíamos sua literatura, sua arte, sua arquitetura, mas isso está mudando. As iniciativas inovadoras no campo da arquitetura e do urbanismo colombiano tornaram-se mais conhecidas recentemente pelo sucesso de ações como o Transmilênio, sistema de ônibus criado em Bogotá inspirada na experiência curitibana (corredores de ônibus com estações de integração), o sistema de transporte por teleféricos de Medellín, os grandes equipamentos culturais articulados a parques e ao transporte público, enfim, iniciativas urbanísticas renovadoras que servem de inspiração para as cidades brasileiras.
Além disso, minha infância foi povoada por filmes e gibis de capa e espada, de flibusteiros, de piratas do Caribe, de praias em ilhas paradisíacas e tesouros escondidos. Precisava de alguma coisa mais para querer conhecer a Colômbia? Como ver a Shakira pessoalmente seria difícil, havia ainda a arquitetura de Rogelio Salmona, reconhecido internacionalmente.
A Fundação Rogelio Salmona - FRS mantém uma premiação continental de boas práticas arquitetônicas (recentemente ganha pelos brasileiros do escritório paulistano FGMF com o Edifício Projeto Viver). Segundo a FRS, “o prêmio é um reconhecimento de alto nível cultural que busca identificar e divulgar as melhores práticas de arquitetura em cidades latino-americanas e do Caribe através de obras que criam espaços públicos significativos para seus habitantes e que, por sua vez, contribuem com a consolidação de cidades inclusivas com forte sentido de lugar”.
Dentre suas atividades, a FRS mantém visitas guiadas à obra do mestre colombiano. Pela internet, articulei a visita guiada e fui recebido com extrema simpatia por Beatriz Vásquez (secretária executiva da FRS) e Diego Ferro, o arquiteto que nos guiou.
Rogelio Salmona faleceu em 2007, deixando um legado exemplar de arquiteto comprometido com a cidade e com a arquitetura de qualidade. Para ele, a arquitetura não era fruto apenas de uma ação estética ou técnica, mas sobretudo uma expressão da cultura, por isso construía os edifícios de forma durável, sólidos, cujo uso, apropriação coletiva e identificação seriam possíveis pelos habitantes das edificações e da própria cidade, como espaços abertos e coletivos. Suas obras tornaram-se uma presença marcante no espaço urbano, simbólicas, algo que pode ser facilmente comprovado nos mapas turísticos, nos livros e materiais de divulgação da cidade, pois se tornaram ícones de Bogotá.
A visita começou no Museu de Arte Moderna de Bogotá – MAMBO, numa manhã deliciosa para caminhar. A crítica ao edifício é que compete com as obras que abriga, tal a beleza dos espaços expositivos que Salmona criou, de onde se pode avistar o skyline dos cerros orientais que dominam a paisagem bogotana. O prédio, inaugurado em 1985 abriga um bom acervo da arte moderna colombiana. Entre o MAMBO e o parque vizinho ergue-se um trambolho inacabado de concreto que está paralisado na justiça há anos, é uma mostra da incompreensão geral quanto ao uso dos espaços da cidade pelo homem e do papel que a arquitetura e o urbanismo podem ter para melhorar a vida urbana, cerne da obra do colombiano. Como é possível autorizar construir aquilo entre duas obras de Salmona, sem qualquer diálogo urbanístico?
Dali, atravessamos a avenida e adentramos o Parque da Independência, onde Salmona criou talvez sua obra mais emblemática: Las Torres Del Parque, um conjunto habitacional constituído por três grandes blocos verticais e curvos que dominam a paisagem da montanha, cujo acesso pelo parque se dá por uma extensa rua-escadaria também desenhada por ele, de onde vai se divisando o centro da cidade em meio ao arvoredo. As três torres que compõem o conjunto com 294 apartamentos envolvem espaços semipúblicos (a mais alta com 37 pavimentos), pequenos pátios circulares onde estão localizados os serviços comunitários e o comércio local no pavimento térreo, perseguindo a ideia da mescla de usos com a habitação de caráter coletivo, presente nos projetos dos arquitetos alemães da República de Weimar e em conjuntos como o carioca Pedregulho de Afonso Reidy.
Impressiona a qualidade e o apuro do detalhamento da construção, financiada pelo Banco Hipotecário colombiano nos anos 1965-70. O uso expressivo do tijolo maciço de cerâmica em suas obras é característica marcante de sua arquitetura, com detalhes impressionantes na paginação, na composição de pisos e paredes, no uso das cores da cerâmica, na modelagem e na qualidade técnica do assentamento. Dali, seguimos para outro edifício habitacional isolado (Edifício El Museo), ainda junto ao parque e ao Museu de Bogotá, inserido num lote irregular de esquina, com o mesmo tipo de implantação: o térreo com comércio dialogando com a rua e a torre com os apartamentos de classe média. Finalmente, fomos até o prédio da Sociedade Colombiana de Arquitetos - SCA, uma espécie de IAB local. Lá fica a sede da FRS, no mesmo local onde ainda funciona seu escritório, sua equipe foi encarregada de finalizar as obras em andamento após sua morte e segue em frente com o seu legado. Trata-se de uma torre de escritórios, com um surpreendente final da visita.
Finda a caminhada, fomos convidados a conhecer o escritório de Salmona, que fica na cobertura adaptada do edifício (como não tinham dinheiro para pagá-lo pelo concurso de projetos, ele recebeu com área construída e adaptou a cobertura para o escritório, por isso o elevador vai até o andar 18, só pela escada se chega aos 19). No térreo, a primeira das surpresas: um painel de Portinari, retirado da demolição de uma moradia bogotana e doado à SCA.
No escritório, levaram-nos à sala do mestre, que está intacta desde sua morte. Parece que o tempo parou e a qualquer momento ele vai reaparecer com sua lapiseira e reassumir sua prancheta. Os livros nas estantes parecem que foram consultados ontem, assim como objetos pessoais esparramados pelo local. Ao fundo, pela janela avista-se a deslumbrante paisagem da cordilheira e da cidade que ele amou e ajudou a construir, encerrando-se a visita com um nostálgico e comovedor panorama da espetacular arquitetura de um dos grandes mestres latino-americanos.
sobre o autor
Mauro Ferreira (Franca, 1952) é arquiteto (FAU Braz Cubas, 1974), doutor em arquitetura (IAUSC-USP) e professor na UNESP de Franca. Atua em sua cidade natal, realizando projetos de arquitetura e planejamento urbano. É ficcionista, com contos e romances publicados. É um dos fundadores e dirigentes do movimento cultural Laboratório das Artes de Franca.