Villeneuve (Cidade Nova) é um bairro de Grenoble, na França, cuja construção foi inspirada pelos movimentos sociais de maio de 1968: o objetivo era criar um bairro altamente autônomo misturando habitações privadas e públicas para famílias de baixa renda, com filiais da prefeitura e uma corporação de bairro que cuidariam dos espaços públicos. Sua realização partia de um projeto social que se revelou utópico com uma longa degradação urbana ao longo dos anos seguintes. A cidade nova da década de 1970 tornou-se um bairro pobre, com o espaço público deteriorado e habitado por jovens sem rumo que só voltou ao centro das atenções em 2010, quando se tornou o cenário de uma crise de violência urbana que necessitou a mobilização das forças especiais do exército francês.
Em 2008 foi lançado um vasto programa de renovação urbana e social da cidade de Grenoble, identificando a Villeneuve como zona prioritária. O edifício-garagem do parque do Arlequim, inaugurado em dezembro de 2014, foi um dos primeiros elementos propostos para alavancar o processo de revitalização do bairro. O programa do concurso arquitetônico previa um edifício de uso misto (atividades comerciais e estacionamento) e trazia embutido um desafio: como poderia um artefato técnico, destinado a um programa puramente utilitário, permitir ao espaço urbano uma nova eficiência, dar um novo sentido ao seu uso, e insuflar uma melhoria ao seu entorno? A resposta do projeto de Hugues Grudzinski (Gap Studio), laureado do concurso em 2010, baseou-se na transparência funcional. Uma parte do piso térreo foi planejada para abrigar as atividades comerciais, e as 470 vagas de estacionamento foram acomodadas em cinco pavimentos totalmente abertos para o seu entorno, expondo a nu a função do edifício. A abertura das fachadas confere ao conjunto um aspecto intrigante, criando efeitos interessantes com a passagem dos veículos e a luz dos faróis dos carros em movimento. O deslocamento dos automóveis e do público é visível do espaço urbano e participa da animação da vida do bairro.
O princípio de abertura ao espaço urbano, evidente no exterior do edifício, é também perceptível em seu interior: a abundância da luz do dia e a presença de jardins no pavimento térreo evitam a sensação de confinamento comum aos prédios de estacionamento. O acesso aos pisos superiores se faz por um sistema de rampas inspirado pela escadaria em dupla-hélice do castelo de Chambord, no vale do Loire. As rampas foram dispostas simetricamente de cada lado da entrada principal do edifício. Graças a uma defasagem calculada dos seus pontos de partida, elas se superpõem perfeitamente sem nunca se cruzar. O efeito visual é espetacular: a superposição dos parapeitos de concreto nas bordas das rampas forma um volume helicoidal sublinhado pelo uso da cor branca e generosamente iluminado por uma grande claraboia na cobertura do último piso. A plasticidade visual do dispositivo remete à experiência proporcionada pela espiral contínua do Museu Guggenhein: como no museu nova-iorquino, a configuração central de circulação com uma rampa contínua possibilita movimento e percepção espacial ininterrupta do térreo ao último pavimento.
A lógica espacial é evidente e simplifica a operação do conjunto de garagens, possibilitando uma grande flexibilidade. As rampas são totalmente independentes dos platôs de estacionamento: elas permitem o acesso a cada nível sem atravessá-lo nem cruzar o fluxo de veículos. Como a compartimentação parcial dos pavimentos não impede o funcionamento do resto do parque de estacionamento, a função de cada piso poderá evoluir segundo a necessidade: é possível prever a instalação de escritórios, salas de reunião ou outras atividades. Na parte central do nível superior, em torno da claraboia, foram cuidadosamente integradas as instalações técnicas como o sistema de ventilação e uma série de painéis solares fotovoltaicos responsáveis por um balanço energético positivo: o edifício produz mais energia do que consome.
O edifício cobre uma área de três mil metros quadrados e foi inteiramente realizado em concreto moldado in loco. A estrutura é formada por lajes planas, de trinta centímetros de espessura, realizadas com concreto pós-tensionado: a tensão é aplicada só após o concreto ter atingido uma dada consolidação, permitindo a realização de grandes vãos. Esta técnica permite um outro efeito visual notável: a completa ausência de vigas, formando tetos inteiramente contínuos de concreto aparente. O projeto técnico foi determinado pela mesma vontade de liberar visualmente as superfícies: as alimentações elétricas foram rigorosamente organizadas em caneletas geometricamente dispostas ao longo das circulações, de onde partem os aparelhos de iluminação regularmente espaçados.
O tratamento do espaço interior é voluntariamente sóbrio, com as superfícies tão lisas quanto possível e uma grande unidade de materiais. O uso da cor é cuidadosamente dosado para valorizar o concreto aparente: branco na espiral da dupla-hélice central, vermelho e amarelo nas escadarias de acesso, formando marcos visuais na perspectiva dos platôs de estacionamento. Contrastando com esta sobriedade, as paredes do hall de acesso às circulações verticais são tratadas com folhas de metal ondulado que enviam em todas as direções reflexos coloridos.
ficha técnica
projeto
Edifício-garagem Arlequim
programa
Atividades comerciais + 470 vagas de estacionamento
cliente
Cidade de Grenoble, França
equipe de projeto
Arquitetos: GaP Studio, Hugues Grudzinski arquiteto, Baptiste Robin arquiteto colaborador
equipe técnica
C&E Ingénierie, Bureau Michel Forgue, ETB, Planitec BTP
área construída
9.450 m2
datas
Concurso: 2010
Inauguração: 2014
fotos
Gap/Robin
sobre a autora
Maria Beatriz de Castro é graduada em arquitetura e urbanismo na FAU-UFMG em 1986. Mora na França onde deu continuidade a seus estudos com um DEA, dissertação: Vilanova Artigas, Architecture et Révolution (1998). Trabalha em projetos de arquitetura e mobilidade urbana, e teve sua pesquisa O Retorno do Bonde premiada em 2005 em concurso da CBTU. Publicou em 2007 o livro: O bonde na cidade: transportes públicos e desenvolvimento urbano.