Em 1982 foi lançado o longa-metragem Koyaanisqatsi, dirigido por Godfrey Reggio. O tom adotado mistura o épico ao sacro, com os mundos humano e natural entrelaçados, vistos de uma distância exagerada. Como Ran de Akira Kurozawa, se impõe um ponto de vista divino, de quem acompanha curioso, mas sem qualquer envolvimento emocional, afinal sabe de antemão onde tudo vai acabar.
Desfiladeiros e aglomerados sem fim, águas que caem de alturas inimagináveis e homens que formigam por avenidas desmesuradas, sombras de montanhas e edifícios de granito bruto ou polido – tudo evoca uma grandiloquência transcendente. As tomadas urbanas e naturais se alternam na tela, mas também se fundem em cenas onde as nuvens tempestuosas se duplicam nas fachadas envidraçadas dos espigões de aço ou concreto. A música magnífica de Philip Glass embala as cenas com sua melodia anestesiante, com seu mantra hipnotizador, que repete sem parar a palavra mágica – Koyaanisqatsi, Koyaanisqatsi...
A solenidade do filme de Reggio me foi sugerida, por contraponto, pelo curta-metragem Quimpassi, dos Irmãos Guerra. Segundo vídeo-arte do projeto Ponte – concebido pelos italianos Giovanni Pirelli e Ludovico Schilling –, a música tema é uma versão remix realizada pelo Doomy, um coletivo de produtores italianos de música eletrônica baseado em Londres, a partir da composição do jovem Guilherme Giraldi e gravada originalmente pela banda Charlie e os Marretas.
A princípio, em Quimpassi tudo funciona ao avesso quando comparado a Koyaanisqatsi. O tempo estendido à eternidade do último é substituído no primeiro por um marca-passo do cotidiano; a visão transcendente de quem tudo vê sem ser visto abre espaço para a visão imanente, que interage com as situações, onde o próprio corpo se descortina em pés que caminham por solos pavimentados e naturais, por mãos que carregam sorvetes ou seguram guidão de bicicleta. São os corpos de quem registra o dia-a-dia com filmadoras de celulares, são corpos que se deslocam pelo território do homem, fruindo uma temporalidade humana.
Este olhar converte as coisas do mundo em coisas do homem, apropriadas pelos usos humanos, pelos sentimentos e desejos que são compartilhados e divididos por todos, entre todos. Os lugares apartados por distâncias enormes se tornam um único lugar, o da experiência sensorial de quem observa o mundo. Os tempos distantes – os registros de celular foram feitos ao longo de muitos anos – se acoplam em uma única fruição do tempo por uma esquisita entidade coletiva. Assim, tempos e lugares se sucedem, sem hierarquias ou lógica causal. Uma garota filma o próprio balanço em um parque europeu, um rapaz – que magicamente se torna uma criança – é filmado balançando-se em praça no centro de São Paulo. Araraquara vale tanto como Barcelona ou Berlim; Brasília, Budapeste e Busca Vida são indistintamente interessantes; Londres, Mértola, Moscou, Potsdam, Porto, São Petersburgo e Veneza são tão familiares como Tiradentes, Salvador, Jaú, Monte Verde, Ouro Preto e Chapada dos Veadeiros são estranhos. Para se tocar música e dançar, qualquer lugar serve, qualquer horário é bom.
Uma fina película noturna embebida em um líquido onírico parece se grudar às imagens que registram o vai e vem sem fim dos homens e mulheres, dos velhos e crianças, e de tudo aquilo que os cercam e que merecem seus afetos – os gatinhos que se acariciam, os sorvetes que são tomados, as bicicletas que são pedaladas, os barcos e trens que se deslocam carregados de gente. Se Koyaanisqatsi é uma grande obra de arte que busca o sagrado da eternidade pela visão elevada, Quimpassi é um experimento estético que corre atrás da fugidia manifestação divina que se esconde por detrás de cada ato humano. Ao invés do sublime, temos apenas o maravilhoso.
[texto de junho de 2015]
ficha técnica
obra
Quimpassi é o segundo capítulo do projeto Ponte, concebido por Giovanni Pirelli e Ludovico Schilling e que promove o diálogo e troca de experiências entre artistas internacionais.
domínio
www.projetoponte.com/ponteproj-en.html
filmagem, edição e direção
Irmãos Guerra / Helena Guerra & Caio Guerra
composição
Guilherme Giraldi gravação original
gravação original
Charles Tixier (bateria), Guilherme Giraldi (baixo), André Vac (guitarra), Tomás de Souza (teclado), Gabriel Basile (percussão) e Rafael Molina (saxofone)
gravação remix
Doomy (Ludovico Schilling, Mattia Veronese, Paolo Pacucci), remix Marco Zangirolami, master
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.