Das motivações da viagem
Em outubro deste ano de 2016, emendei uma viagem a Berlim com Varsóvia, capital que eu há muito queria conhecer. Fazia bastante frio quando ali cheguei às 23 horas, às portas de um novo dia. Eu havia reservado um hotel próximo das ditas Cidade Antiga e Cidade Nova, que constituem o Centro Histórico declarado Patrimônio Mundial pela Unesco em 1980.
O que eu não sabia, e fui informada já no desembarque, era de que o hotel que eu reservara situava-se na parte comunista da cidade. Isso aumentou a minha curiosidade pelo despertar no local no dia seguinte, 11 de outubro. O que no tempo apropriado descreverei neste texto que pretende somente ser um relato de viagem, destacando os atrativos arquitetônicos, urbanísticos e paisagísticos. Antes, porém, conheçamos um pouco da história de Varsóvia.
Breve histórico
Muito antiga, a cidade comemorou em 1966, mil anos. Esta longevidade remonta aos anos 50-80 d.C, como relata Chagas, que relaciona esta origem com a nomenclatura dos naturais do país:
“Os poloneses são originários de uma das tribos eslavo-ocidentais que viviam na bacia dos rios Vístula e Oder por volta de 50-80 d.C. Era uma gente dedicada às atividades agrícolas e pastoris – daí seu nome derivar-se do vocábulo pole (campo) do eslavo primitivo. Eram, ainda, chamados de polanos” (1).
Seguindo esse mesmo referencial, aclara-se a intrincada história deste povo, que, tendo unificado seus vários grupos formadores, escolheu seu primeiro rei em 966. Chamava-se Mieszko I este soberano. Passadas algumas lutas de independência, a Polônia adquiriu feições de Estado, encerrando seu ciclo de formação. Em pouco tempo, porém, no ano de 1038, insurreições irromperam e esfacelaram o país, quadro ao qual se somou a cobiça de países limítrofes. Contudo, vencidas as querelas internas, a Polônia chegou inteira ao século 16, dito a sua “Idade de Ouro”, nas palavras de Chagas, que prossegue como abaixo transcrito:
“Em 1596, o então rei Sigismundo III transferiu a capital de Cracóvia para Varsóvia. A partir desse momento, os grandes senhores passaram a importar arquitetos e construtores, fazendo surgir uma bela cidade, de construções com exteriores calcados no Renascimento italiano, mas com interiores barrocos” (2).
Em 1655 e 1656 vieram as invasões suecas e as construções mais importantes de Varsóvia não resistiram a elas. Todavia, sempre aguerrida, a cidade foi reconstruída sob o rei João III Sobieski, que fez de Varsóvia uma cidade digna do período do Iluminismo (3).
O território polonês, entretanto, veio ainda a conhecer mais invasões. Foram irrupções por parte de russos, prussianos e austríacos, em 1772, 1793 e 1795. Assim vitimada, a Polônia deixou de existir como Estado soberano por mais de um século, o que se prolongou até 1918, ano do término da Primeira Guerra Mundial.
Encerrado o grande conflito mundial, e, depois de assinado o Tratado de Brest Litovsk, os vencedores aceitam “a criação de um Estado polonês, unido e independente, com livre acesso para o mar”. Renascia assim o país, conclui Chagas, acrescentando que Varsóvia foi sempre a principal mártir das tantas invasões, e sempre se recuperou (4), o que nos fala da resiliência dessa cidade.
O pior, no entanto, ainda estava por vir: sob a crudelíssima e insana mente de Hitler, o país foi invadido pelos Nazistas em 1939. Diante disso, França e Inglaterra proclamaram guerra ao Reich, e eis aí os primórdios da Segunda Guerra Mundial, conflito em cujo decurso a cidade de Varsóvia foi totalmente devastada.
Pois bem, a persistente cidade resistiu a mais esse furor, se insurgiu contra ele, e depois da destruição promovida na Segunda Guerra, reconstruiu o seu sítio histórico. Chagas explica que são da época das Luzes as feições recuperadas entre 1949 e 1963, após a Segunda Guerra Mundial. Foi este último um processo exemplar de reconstrução, que vale um título exclusivamente para narrá-lo.
A reconstrução
Recorrendo ao referencial da Unesco (5), somos informados de que o projeto da reconstrução foi elaborado no Escritório de Reconstrução de Varsóvia entre os anos de 1945 a 1951. Tal projeto recorreu a quaisquer estruturas existentes, íntegras, construídas entre os séculos 14 e 18, junto com a rede de ruas e praças da Alta Idade Média, a praça principal do mercado e o circuito das muralhas da cidade. Quanto aos princípios norteadores, prossegue a Unesco:
“Primeiramente usar documentos arquivados confiáveis, onde disponíveis; e, em segundo lugar, almejar a recriação da tardia aparência histórica do século 18. O último objetivo foi ditado pela viabilidade dos detalhados registros históricos iconográficos e documentados daquele período” (6).
Como já dissemos, esse processo da reconstrução da Cidade Antiga e da Cidade Nova decorreu entre 1949 a 1963. A propósito dessas duas cidades, declara Chagas que “se trata de exemplo único de reconstrução apenas a partir de fontes iconográficas” (7). Todo o empreendimento foi completado com a reconstrução do Castelo Real, que veio a ser aberto para visitação apenas em 1984.
A cidade assim reconstruída mereceu o título de Patrimônio Mundial outorgado pela Unesco em 1980 ao seu Centro Histórico. Essa outorga foi justificada por dois dos seis critérios adotados pela agência para a classificação de Patrimônio Mundial. No caso de Varsóvia, os dois critérios adotados são os abaixo reproduzidos:
“II. Ser a manifestação de um intercâmbio considerável de valores humanos durante um determinado período ou em uma área cultural específica, no desenvolvimento da arquitetura, das artes monumentais, de planejamento urbano ou do desenho da paisagem, ou [...]
VI. Estar associados diretamente ou tangivelmente a acontecimentos ou tradições vivas, com ideias ou crenças, ou com obras artísticas ou literárias de significado universal excepcional (O comitê considera que este critério não deveria justificar a inscrição na Lista, salvo em circunstâncias excepcionais e na aplicação conjunta com outros critérios culturais ou naturais)” (8).
Na justificativa desses dois critérios para o Centro Histórico da cidade, a Unesco declara o que segue:
“Critério II. A iniciação de exaustivas atividades na escala da inteira cidade histórica foi uma experiência europeia única e contribuiu para a verificação das doutrinas e práticas da conservação.
Critério VI. O Centro Histórico de Varsóvia é um exemplo excepcional de exaustiva reconstrução de uma cidade que foi deliberadamente e totalmente destruída. A fundação do material de reconstrução foi a força interna e determinação da nação, que trouxe sobre a reconstrução do patrimônio uma escala única na história do mundo” (9).
Compreendida a iniciativa da Unesco, resta conhecer alguns dos atrativos da cidade.
Uma cidade que viceja
No frio e úmido outubro em que visitei a cidade, Varsóvia estava promovendo dois festivais. O primeiro era em homenagem ao então recém-falecido cineasta polonês Andrzej Wajda, que nos deixou no dia 9 de outubro de 2016, aos 90 anos. Laureado no ano 2000 com um Oscar honorário por “cinco décadas de extraordinária direção de cinema (10), Wajda foi um premiadíssimo diretor. O seu compromisso para com a Polônia foi destacado no memorial do diretor feito pela crítica de cinema jornalista Isabela Boscov. Neste texto, lê-se, no olho da matéria, a seguinte assertiva do cineasta: “As coisas que tenho a dizer só importam se as disser daqui, da Polônia” (11).
O segundo festival era em homenagem ao pianista polonês radicado francês Frédéric François Chopin (grafia francesa). Chamado singelamente de A Varsóvia de Chopin, este evento ressaltou os lugares caros a Chopin na capital polonesa. Alguns desses lugares serão de agora em diante destacados aqui.
A começar pela Igreja da Santa Cruz. Essa igreja barroca foi o maior templo de culto católico na cidade nos primórdios do século 19 e nela jaz o coração do pianista, em atendimento a um pedido formulado por ele próprio. Tem a igreja longa relação com a família de Chopin. A propósito, vale dizer que neste templo foram batizadas suas duas irmãs, Izabella e Emilia. A coluna onde jaz o coração do músico converteu-se em um monumento no interior da Igreja da Santa Cruz, sendo objeto de grande visitação.
Outro lugar destacado no evento é a estátua de Chopin no Parque Łazienki (grafia polonesa). Segundo o caderno do festival (12), o monumento foi reconstruído após a Segunda Guerra estritamente conforme o original. Sua localização no parque é destacada, pois o monumento foi posicionado diante de um dos portões dessa área verde. Aos pés do monumento, concertos sinfônicos têm sido executados ao longo de mais de cinquenta anos.
Agora que atalhamos uma entrada nessa enorme área verde em plena urbe polonesa, vale descrever um pouco mais o parque por suas atrações arquitetônicas e paisagísticas. Entre os atrativos dessa natureza, destaca-se O Palácio sobre a Água, seus jardins, e o pequeno Teatro da Estufa de Laranjas. Desenvolvido no século 18, este complexo foi planejado como a residência de verão de Estanislau Augusto Poniatowski, o último rei da Polônia.
Voltando agora ao centro da cidade, bem próximo da já destacada Igreja da Santa Cruz, outro lugar ligado a Chopin é a Igreja Visitacionista. Nela, o músico tocou órgão em várias oportunidades e conheceu Constança, que cantava na missa e foi o seu primeiro amor. A igreja foi construída no século 17 para freiras francesas. Sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, o templo ainda mantém grande parte de seu mobiliário original.
Igualmente liga-se a Chopin o Palácio Presidencial. Nele, o músico executou um concerto de piano aos oito anos de idade, em 1818, em sua primeira aparição pública no mundo. Construído no século 17, o palácio abriga, desde 1994, a principal residência do Presidente da República da Polônia. Desde a época de Chopin, quatro leões de pedra guardam a entrada do Palácio.
Destacados os lugares ligados a Chopin, chega o momento de visitar o maior núcleo histórico de Varsóvia: as ditas Cidade Antiga e Cidade Nova, que constituem um testemunho da estrutura urbana que se estende do período do século 14 ao 18. Na distinção feita por Chagas, a Cidade Antiga data dos séculos 13 e 14; e a Cidade Nova foi criada no século 14. Como assevera essa autora, Varsóvia consiste em caso único no mundo da reedificação, posto que inteiramente fundamentado em fontes iconográficas. Esta iconografia contou inclusive com telas feitas por Canaletto, que, nas palavras de Chagas é “o mais fiel cronista da bela Varsóvia do século 18” (13).
A Cidade Antiga formou-se ao redor de uma praça retangular de cujos ângulos partem as primeiras ruas, que sempre se entrecuzam em ângulo reto em relação à praça central (14). Em todo o conjunto da Cidade Antiga, o ponto mais destacado é a praça do Castelo Real. Sua localização é magnânima abrindo-se em esplanada para a cidade contemporânea e formando um belvedere para as áreas circundantes da parte mais baixa da cidade. Na Praça do Castelo está a Coluna de Sigismundo III Vasa, o monarca que fez de Varsóvia a capital da Polônia. Sua coluna é o mais antigo dos monumentos a adornar Varsóvia.
Nessa que é uma grande ágora da Cidade Antiga, encontram-se muitos turistas e habitantes locais, consistindo numa usual entrada do Centro Histórico. Ali desponta o Castelo Real, histórica residência dos monarcas poloneses. Destruído pela armada alemã em 1944, sua reconstrução só foi decidida em 1971, e foi aberto ao público em 1984 (15). Pintado na cor de tijolo, com suas torres e relógio seu aspecto lembra o daqueles castelinhos que as crianças fazem com brinquedos de “Pequeno Arquiteto” ou “Futuro Engenheiro”.
Funcionando como um museu, o Castelo é formado por várias salas dedicadas às funções reais, tal como a Sala do Trono, e a Sala dos Cavaleiros. Mas, de todas, sem dúvida, a que melhor explica a cidade é a sala de Canaletto. Esta sala foi desenhada em 1777 por Domenico Merlini para abrigar 22 pinturas do pintor italiano retratando Varsóvia. Todas elas foram encomendadas a Canaletto pelo Rei Estanislau Augusto Poniatowski. O acervo do Castelo Real conta ainda com pinturas de Rembrandt e El Greco.
Na Cidade Antiga, distingue-se uma muralha junto à qual persiste no tempo uma bela barbacã, sendo esta a construção que mais conserva as características medievais do antigo núcleo urbano (16). Trata-se de uma porta fortificada por quatro torres de defesa, com seteiras, sendo todo o conjunto barbacã-muralhas construído em tijolos vermelho-escuros.
Na Cidade Nova, o elemento de maior destaque é a Praça do Mercado de forma trapezoidal. Em volta dela, destacam-se construções simples com janelas brancas e paredes trabalhadas em esgrafito e pinturas parietais figurativas.
Algumas dicas de viajante
Musical, cinematográfica, pictórica, tradicional, a cidade de Varsóvia oferece muitas opções de cultura e lazer aos turistas que a queiram conhecer. Cinco dias inteiros na cidade foram suficientes para essa inscursão na histórica Varsóvia. Hospedar-me na parte comunista da cidade terminou ser uma agradável surpresa. Os prédios do imenso conjunto neoclássico deste local são muito bonitos. Um deles abriga o hotel em que me hospedei, e, em todo o seu conjunto, o pavimento térreo é ocupado por cafés, restaurantes tradicionais da cidade, lojas diversas e casas de câmbio. Se você gosta de caminhar, verá que a parte comunista da cidade está bem próxima às Cidade Antiga e Cidade Nova, e, em outra direção, próxima também ao Parque Łazienki. Bom passeio!
notas
1
CHAGAS, Carmo. Patrimônio do mundo. São Paulo, Nova Cultural, 1987, p. 70.
2
Idem, ibidem.
3
Idem, ibidem.
4
Idem, ibidem. Destaque de Chagas.
5
UNESCO, World Heritage List. Disponível em: <http://whc.unesco.org/en/list/30>. Acesso em: 21 out. 2016.
6
Tradução nossa. No original: “The reconstruction project utilized any extant, undamaged structures built between the 14th and 18th centuries, together with the late-medieval network of streets, squares, and the main market square, as well as the circuit of city walls. Two guiding principles were followed: firstly, to use reliable archival documents where available, and secondly, to aim at recreating the historic city’s late 18th-century appearance. The latter was dictated by the availability of detailed iconographic and documentary historical records from that period”.
7
CHAGAS, Carmo. Op. cit., nota i, p. 74.
8
UNESCO. Patrimônio mundial no Brasil. 3a edição. Brasília, Unesco, 2004, p. 290.
9
UNESCO. Op. cit., nota iv. Tradução nossa. No original: “Criterion (ii): The initiation of comprehensive conservation activities on the scale of the entire historic city was a unique European experience and contributed to the verification of conservation doctrines and practices. Criterion (vi): The Historic Centre of Warsaw is an exceptional example of the comprehensive reconstruction of a city that had been deliberately and totally destroyed. The foundation of the material reconstruction was the inner strength and determination of the nation, which brought about the reconstruction of the heritage on a unique scale in the history of the world”. Disponível em: <http://whc.unesco.org/en/list/30>. Acesso em: 25 out. 2016.
10
IMDB. Andrzej Wajda. No original: ”For five decades of extraordinary film direction (Oscar statuette)”. Disponível em: www.imdb.com/name/nm0906667/awards?ref_=nm_awd. Acesso em 25 out. 2016. Tradução nossa. Acesso em 25 out. 2016.
11
BOSCOV, Isabela. Das cinzas, diamantes. Veja, São Paulo, ano 49, n. 42, out. 2016, p. 105.
12
VARSÓVIA: Chopin’s Warsaw. Varsóvia: Warsaw Tourist Office, 2015. 1 brochura.
13
Giovanni Antonio Canal (1697-1768).
14
CHAGAS, Carmo. Op. cit., nota i, p. 78.
15
VARSÓVIA: The Royal Castle in Warsaw. Varsóvia: The Society of Friends of the Royal Castle in Warsaw, 2016. 1 folder.
16
CHAGAS, op. cit., nota i.
sobre a autora
Eliane Lordello é arquiteta e urbanista (UFES,1991), Mestre em Arquitetura (UFRJ, 2003) e Doutora em Desenvolvimento Urbano na área de Conservação Integrada (UFPE, 2008). É arquiteta da Gerência de Memória e Patrimônio da Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo.