“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Um aí fantasiado de bicho de desenho animado, cabeça de pelúcia, corpo de tecido barato, tão desencontrados quanto as cores preta e branca do modesto traje. Com o focinho longo e os olhos redondos se arvora sobre todos os banhistas. Cresce e grunhe, dança e salta, se descola da sombra e assusta alguns e agrada outros que disparam a rir.
O bicho porta um estandarte de sacos de um algodão doce, pelucioso, mais alvo que a sua roupa, que a areia e a espuma do mar. Tudo nele é farsa e solidão, desvario e desconforto.
*
Sem um alvo, o tiro se desfigura: risco sem destino, palavra sem sentido.
Uma maçã de ouro, uma moringa de água fresca, uma boca semiaberta, língua entredentes, um sussurro quente, inaudível, uma maçã de ouro, som de tambor, areia da praia, barulho do mar, o riso solto, deslavado, estrondoso e renitente.
Hora de reunir o que restou do dia. E voltar para casa.
*
Vontade de ser outro, fugir de si e não voltar para casa. Ser bicho para sempre. Reunir o que exacerba, o que transborda, sem fim, e fazer outra vida com o que sempre jogou fora. E se não fosse o que guardou, mas o que despeja por aí, largado ao léu, nos sonhos, nos pensamentos?
E se fosse aquilo que deu às costas, aquilo a que não deu ouvidos, não respondeu porque é loucura e não dá futuro? Quem alcança o seu destino?
*
Calado. Silêncio. Ouvir os sons de lá de fora, restos de conversas, murmúrios, gritos, palavras e ruídos. Falam de estranhos acontecimentos. Mas quem habita a vida do outro? Quem mais ouve estes sons? Somos parte de uma mesma música? De um mesmo mundo? Da vida dos outros?
nota
NE – Segundo texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.