Não precisamos pensar muito para perceber que a nossa arquitetura e urbanismo são, ainda hoje, alimentados e conduzidos, em grande parte, pelo que se faz “lá fora”, no Velho Mundo, ou na terra do Tio Sam. São resultados deste processo a proliferação de cidades espalhadas, vias expressas, condomínios fechados e torres envidraçadas climatizadas artificialmente, por exemplo. Vale destacar, contudo, que esse diálogo “dentro/fora” não é um problema, desde que haja entendimento, transição e adaptação.
Felizmente, já está em curso uma reação genuinamente brasileira.
De qualquer forma, como seriam a arquitetura e o urbanismo brasileiros se seus modelos fossem mais próximos à sua realidade? Eis a questão que me inquietou a mente durante uma viagem pela Península Malaia, Ásia.
A viagem começou em Kuala Lumpur, capital da Malásia, partindo para Cingapura, cidade-estado insular que se tornou independente da Malásia em 1965, e terminando em Bangkok, capital da Tailândia. Este relato se atém apenas às duas primeiras cidades.
Chegando ao Sudeste Asiático, deparei-me com um clima quente e úmido semelhante ao do Nordeste brasileiro, por conta da proximidade da Linha do Equador, mas ainda mais intenso, sendo difícil respirar nos primeiros minutos de adaptação. A semelhança climática nos conduz a conflitos e potencialidades comuns: por um lado, calor extremo, chuvas fortes, enchentes, doenças sazonais; por outro, abundância de luz natural e vegetação tropical. Compartilhamos também algumas questões econômicas e sociais, com maiores distanciamentos em relação à conformação e sobreposição étnicas.
Kuala Lumpur apresenta uma série de características urbanas semelhantes à cidade de São Paulo, resultado, provavelmente, do mesmo processo de importação de paradigmas e modelos ocidentais. São Paulo está em processo de mudança, mas foi, por décadas, marcada por um planejamento orientado para os carros, com passeios estreitos e desconectados, e expandida horizontalmente para as bordas.
A capital malaia expressa fisicamente sua desigualdade urbana no desenho e estado de manutenção de equipamentos e espaços públicos. O Museu Nacional da Malásia e o Jardim Botânico estão esquecidos, se comparados à menina-dos-olhos da cidade, o Kuala Lumpur City Centre (KLCC), que concentra as Petronas Twin Towers, sexto edifício mais alto do mundo, com 88 andares, projetado por Cesar Pelli, e o KLCC Park, considerado o último projeto do paisagista brasileiro Roberto Burle Marx.
Kuala Lumpur não teme a verticalidade. As torres corporativas no centro da cidade e as residenciais, mesmo as localizadas nas bordas, facilmente ultrapassam os 30 ou 40 pavimentos. Muitas pessoas se assustam com esses números, mas eles, na verdade, pouco importam. Sabemos que arquitetura e urbanismo não se resumem a dimensões isoladamente determinadas, mas à relação entre elas, isto é, à proporção. Falando em verticalização, o que mais importa, portanto, é entender a proporção entre cheios e vazios, entre edifícios e espaços abertos, e quais são as proporções que garantem conforto ambiental e humano, em diferentes contextos.
Além disso, os pavimentos de garagem, em Kuala Lumpur, costumam ser construídos todos acima do solo. Mas o tratamento destes quatro ou cinco pavimentos que tocam a cota zero é diferente do que vem sendo realizado em São Paulo, na medida em que é mais cuidadoso, com recuos, aberturas e vegetação, que adicionam rugosidade a essa interface urbana e contribuem para a qualidade do espaço aberto, na escala do pedestre.
O KLCC Park é um exemplo notável de projeto de paisagismo, na constituição hierárquica de sequências espaciais que lançam mão de diferentes materiais, tipos vegetais, águas, níveis, percursos, visuais e programas, possibilitando diversas formas de apropriação, por diferentes públicos, ao longo do dia: desde a simples passagem ou uso dos restaurantes avarandados ao longo do boulevard elevado, quando a temperatura elevada inibe o uso do parque; até a apreciação das fontes d’água ao longo de degraus e patamares, ou se refrescar em um dos espelhos d’água do parque, no final da tarde e à noite.
Chama atenção em Kuala Lumpur uma outra forma de tropicalidade, mais exuberante e autoconfiante do que a vista em cidades brasileiras, notadamente em São Paulo. A vegetação tropical se faz presente tanto em espaços públicos, calçadas e passeios, quanto em edifícios, com árvores de grande porte em jardins sobre laje e fachadas duplas verdes, distintas dos jardins verticais do Minhocão paulistano. Em Kuala Lumpur, o “verde” não se esgota em uma estratégia de marketing, e reflete também o entendimento do clima e das necessidades locais.
Esta tropicalidade também encontra expressão em passeios e espaços públicos de Cingapura. Muitas vezes, maciços vegetais de diferentes gradientes e alturas constituem uma camada de amortecimento entre a faixa de rolagem de veículos e o passeio de pedestres. Mais do que a sombra em si, o desenho de espaços e equipamentos urbanos busca promover ventilação natural e proteção da chuva. Por isso, são comuns as loggias e pequenas coberturas envidraçadas ao longo de calçadas, mesmo as mais estreitas. Além disso, algumas ruas comerciais ou de bares e restaurantes são requalificadas com a instalação de coberturas transparentes, de uma fachada a outra, e ventiladas natural ou mecanicamente. A ventilação também se faz por meio de ventiladores comuns simplesmente afixados embaixo de coberturas de pontos de ônibus, ou em estruturas híbridas projetadas para captar energia solar e então mover hélices que refrescam quiosques ao longo da orla da Marina Bay.
Falando em Marina Bay, este é um grande projeto urbano desenvolvido para Cingapura na década de 1980, avançando a ocupação em cerca de 360 hectares em direção à água. Foi construída uma baía, que funciona como reservatório de água, ao longo da qual se desenrola um amplo passeio de pedestres e novos edifícios, como o Marina Bay Sands, complexo de 57 pavimentos com Hotel, Cassino e restaurantes, e o ArtScience Museum, ambos projetados pelo arquiteto israelense Moshe Safdie; e o parque Gardens by the Bay, desenhado por Grant Associates e Wilkinson Eyre Architects, famoso por suas super-árvores tecnológicas, que captam água da chuva e regulam passivamente a temperatura das estufas do parque.
Tanto em Kuala Lumpur quanto em Cingapura buscou-se construir uma nova imagem para a cidade, lançando mão de uma infalível dupla dinâmica: um edifício alto que represente a capacidade inovadora e tecnológica da nação (Petronas Twin Towers em Kuala Lumpur e Marina Bay Sands em Cingapura); e um grande espaço público (o KLCC Park em Kuala Lumpur e a Marina Bay e Gardens by the Bay em Cingapura), cujo principal papel é, mais do que o uso pelas pessoas, o de proporcionar distanciamentos e perspectivas para a apreciação do edifício, como objeto.
Assim como em São Paulo, os edifícios corporativos de Kuala Lumpur e Cingapura são basicamente torres de vidro, encapsuladas e climatizadas artificialmente. Nestes casos asiáticos é mais fácil justificar a necessidade do ar condicionado durante grande parte do ano, pelas caraterísticas climáticas mais severas. De qualquer forma, chama a atenção o caso de Cingapura onde, apesar dos ambientes internos selados, espaços de estar e circulação são abertos ao ambiente externo, muitas vezes com vegetação tropical, configurando espaços de transição entre “dentro” e “fora”.
Ainda em relação aos edifícios de Cingapura, destaco dois projetos habitacionais recentemente concluídos, o The Interlace, projetado por OMA e Ole Scheeren, e o Sky Habitat, do escritório Safdie Architects. Ambos funcionam como condomínios verticais fechados, localizados fora do centro, mas com fácil acesso inclusive por transporte público. Volumetricamente, o The Interlace é um empilhamento alternado de blocos de seis pavimentos cada. Desta forma, além de proporcionar um desenho mais fluido dos espaços abertos, os edifícios estabelecem uma escala humana mais dinâmica, na medida em que estes possuem ora seis, 12, 18, ou 24 pavimentos. Já o Sky Habitat, notável por suas varandas escalonadas, circulações verticais alternadas, pavimentos e pontes compartilhados, pode ser questionado em relação a sua inserção em um lote urbano padrão cercado e à persistente questão da qualidade espacial do “lado de trás” dos terraços.
Após digerir um pouco as experiências arquitetônicas e urbanas de Kuala Lumpur e Cingapura, destaco dois pontos fundamentais: primeiro, a necessidade de adaptação e de se tirar partido dela, seja ao clima extremo, seja ao uso racional ou alternativo de recursos, devido às restrições territoriais; segundo, a importância da construção de uma identidade, seja para coesão interna da comunidade, seja para autoafirmação do conjunto em escala mundial.
Este relato não busca criticar ou elogiar as experiências de Kuala Lumpur ou Cingapura, nem promovê-las como modelos para São Paulo e outras cidades brasileiras. Só considero oportuno, em nossa constante busca por diálogos e contrapontos profissionais e acadêmicos, deixar um pouco de lado os antolhos e observar o que se faz mais à leste. Ou seja, devemos aprender com essas outras tropicalidades.
sobre o autor
Eduardo Pimentel Pizarro é doutorando (2015-), mestre (2014), arquiteto e urbanista (2012) pela Universidade de São Paulo (FAU USP). Período sanduíche na Architectural Association Graduate School (Londres, 2013). Ganhador de prêmios nacionais e internacionais como o Prêmio Jovem Cientista (Brasília, 2012, entregue pelo Presidente da República) e o 1st Prize da LafargeHolcim Student Poster Competition (Detroit, 2016).