Em junho de 2016, dei início a uma trajetória pelas cidades escolhidas como casos de estudo para minha tese de doutorado, em curso na Universidade de Coimbra, em Portugal, que trata de diversas cidades com influência cultural portuguesa, considerando o potencial da cultura e do patrimônio no desenvolvimento local e na melhoria da qualidade de vida das populações. A primeira parada foi em Mindelo, Ilha de São Vicente, no arquipélago de Cabo Verde. Mindelo é a capital cultural do país e a segunda maior cidade do arquipélago, com cerca de 70.000 habitantes, atrás somente da capital, Praia, que fica na Ilha de Santiago. Situada em um cenário deslumbrante, a cidade tem uma forte relação com a Baía de Porto Grande, e consequentemente, com a Ilha de Santo Antão, que condicionam a paisagem urbana de Mindelo.
O território das ilhas de Cabo Verde era desabitado até a chegada dos portugueses no século 15. A Ilha de São Vicente, por sua aridez, clima austero e pouca água, teve as primeiras tentativas de povoação somente no século 18, numa afirmação da soberania portuguesa no território, que até então era ocupado livremente por navios estrangeiros. Como as primeiras tentativas de ocupação da ilha, no século 18, foram ainda bastante embrionárias, o patrimônio de influência portuguesa de Mindelo remonta ao período que vai desde a década de 1830, data do primeiro plano de povoação da cidade (quando a Ilha era importante ponto de escala dos navios ingleses da Companhia das Índias), até 1975, quando o país ficou independente de Portugal.
Durante a estadia em Mindelo, foram realizados vários percursos no espaço urbano do perímetro classificado como patrimônio nacional, e também nos bairros de ocupação ou expansão recente. Nestes percursos fui guiada por moradores da cidade (estudantes do curso de arquitetura do M_EIA), o que fez com que a experiência fosse ainda mais enriquecedora. A área delimitada pelo IPC – Instituto do Patrimônio Cultural, classificada como Patrimônio Nacional, coincide com o centro institucional, comercial e cultural da cidade.
Na zona central de Mindelo, cabe destacar um tipo de “eixo monumental”, que é formado a partir do edifício da Alfândega, edifício imponente dos finais do século 19, ao longo da Rua dos Libertadores de África (antiga Rua de Lisboa), até a praça que se forma entre o Palácio do Povo de arquitetura eclética, característica das construções portuguesas do século 19 e o antigo Liceu Nacional que atualmente abriga o M_EIA (Instituto Universitário de Arte, Tecnologia e Cultura de Mindelo). Ao longo da rua, a arquitetura dominante remete ao sentido utilitário e as expressões modernas, com a utilização da tecnologia do ferro, característicos do século 19 e início do 20, e se destacam os edifícios do atual Banco de Cabo Verde, das antigas Obras Públicas e do Mercado Municipal.
Bem próximo a este eixo, se encontra a Praça da República, que abriga o conjunto fundacional e institucional da cidade, com o edifício dos Paços do Concelho e a Igreja de Nossa Senhora da Luz, ambos datados da segunda metade do século 19. A igreja é um edifício bastante simples, e que não se apresenta como protagonista do espaço urbano de Mindelo, diferentemente das diversas cidades de influência portuguesa do Brasil. Projetos mais recentes de paisagismo e criação de zonas de sombra, também conferem valores importantes para que a população se aproprie deste espaço.
Cabe mencionar, que o tecido urbano desta área é marcado por diversas praças ajardinadas e vias largas, fruto de planos urbanos bastante arrojados e ambiciosos, que previam um enorme desenvolvimento da cidade, quando ainda era colônia portuguesa. Tal dimensionamento das vias permite que a cidade não tenha problemas de congestionamentos, e o trânsito seja fluido e seguro. Foi possível perceber que os espaços públicos abertos, bem como os edifícios de interesse cultural, fazem parte da vida cotidiana da população, que usufrui da qualidade e do bom estado de conservação destes nas suas atividades diárias, tanto diurnas, quanto noturnas. A apropriação destes espaços acontece de diversas formas: seja como local de encontro, seja em um horário de descanso, ou lazer. O espaço é bastante democrático e ocupado não somente por moradores dos bairros centrais, mas pela população em geral, que estuda, trabalha na região ou está apenas de passagem. Cabe ressaltar, que a apropriação pelos moradores valoriza o patrimônio local, legitima e reforça a justificação para a proteção destas áreas.
A orla, que emoldura a zona central, marca a dinâmica contemporânea da cidade, e tem passado, nos últimos anos, por diversas ações de renovação e requalificação urbana, de modo a aproveitar todo potencial que a região oferece: as praias com águas claras e quentes, o bom tempo, etc., que são grandes atrativos turísticos para a cidade. Nesse sentido, é possível ver edifícios de comércio e serviços mais sofisticados para atender aos turistas, como é o caso do Pont d’Água, que apresenta arquitetura contemporânea bastante minimalista, contrastante com as edificações de comércio tradicional da cidade.
Também em decorrência da intensificação da atividade turística, vale mencionar a crescente especulação imobiliária, que tem dificultado a proteção do patrimônio arquitetônico e urbanístico da cidade. As edificações recentes da Praça Amílcar Cabral (também conhecida como Praça Nova), no centro da cidade, são exemplo disto. A praça data dos finais do século 19, e apresenta um conjunto arquitetônico bastante emblemático da Mindelo de meados do século 20, com o Hotel Porto Grande e o Éden Park, o antigo cinema da cidade, com traços de um art decó tardio. Em junho, parte do cinema estava sendo demolido, para receber um acréscimo extremamente contrastante com a escala do entorno, o que vem a prejudicar a legibilidade do patrimônio da praça, pelo qual a população tem bastante apreço.
Segundo profissionais locais, existe alguma dificuldade na gestão do patrimônio cultural da cidade, pois não há um regulamento municipal para as questões patrimoniais, apenas uma lei nacional, de caráter bastante subjetivo e sem instrumentos práticos de salvaguarda. Além disso, a sede do órgão nacional do patrimônio é na capital, e a análise dos projetos fica a cargo de técnicos que não têm vivência na Ilha, desconsiderando, muitas vezes, suas especificidades, o que dificulta ainda mais o processo de gestão do patrimônio.
Vale mencionar que a Praça Nova é muito usada pela população, e está sempre cheia de pessoas nas zonas de sombra, nos banquinhos, durante todo o dia. No coreto, datado do início do século 20, acontecem concertos nas noites dos fins de semana, o que reforça a importância deste lugar como referência cultural e lhe confere vitalidade. Também na região central, a Praça Estrela, bastante ampla e rodeada por edificações baixas é outro bom exemplo da vitalidade dos espaços públicos de Mindelo. Na praça, existem construções de apoio a atividades comerciais, ornamentadas com azulejos portugueses, que não negam sua origem. O local é usado para comércio de diversos itens, desde artesanato e souvenir para turistas, até bens de consumo para os moradores, como roupas, calçados, cosméticos etc. Na mesma praça, construções metálicas servem ao comércio de frutas e hortaliças. A proximidade com o mercado do peixe, faz deste um setor com comércio popular bastante movimentado, um verdadeiro shopping a céu aberto.
Ao lado do mercado do peixe, um edifício chama atenção por seu caráter monumental e cenográfico: a réplica da Torre de Belém (antiga Capitania dos Portos), em concreto armado, é uma herança do império português do século 20, que deixou suas marcas na intenção de construir uma identidade única portuguesa em todo espaço colonial. Em contraponto à arquitetura quase kitsch da torre, na mesma Avenida Marginal, na Baía do Porto Grande, destaca-se o edifício da Nova Capitania do Mindelo, cuja arquitetura moderna segue sutilmente a linha curva da avenida. O edifício foi erguido na década de 1960, no contexto do Plano Urbano levado a cabo por Maria Emília Caria, que tinha por objetivo mostrar à comunidade internacional o empenho do Estado português nas suas províncias ultramarinas.
Afastando do centro, nos bairros ao redor da área central foi possível notar que a expansão da cidade atualmente acontece de maneira bastante informal. As formas de ocupação nas áreas ainda não consolidadas são bastante dispersas, com residências precárias, construídas em lata, com pouca ou nenhuma infraestrutura ou saneamento. Em termos de acervo patrimonial, dois dos bairros visitados chamam atenção pela arquitetura com outras influências, que não a portuguesa, e que assim, representam a diversidade cultural da cidade: os bairros Monte Sossego e Djid’Sal, que surgiram ainda no período colonial, e possuem marcas dos planos urbanos de expansão dos períodos de prosperidade econômica na ilha.
Em D’jid Sal há edificações de influência inglesa, devido às companhias de carvão que movimentavam a economia local entre os séculos 19 e 20. Um exemplo desta influência é a “Rua Comboio”, formada por habitações geminadas para os operários das fábricas de carvão, cuja arquitetura tipicamente inglesa, vem sendo bastante descaracterizada. Outra influência interessante é a soviética, presente em edifícios residenciais multifamiliares do bairro Monte Sossego, construídos no período pós independência, financiado pela União Soviética. Apesar de não se tratarem de edifícios monumentais, a arquitetura e a implantação no terreno, faz com que sejam edificações bastante imponentes.
No contexto das cidades de patrimônio de influência portuguesa, Mindelo se mostrou como um caso bastante interessante de como cultura e patrimônio são fundamentais na vida da cidade, e assim, a experiência foi extremamente rica para a tese. Felizmente, o que conheci de Cabo Verde não corresponde em nada aos estereótipos que o senso comum atribui a África. Na inevitável comparação com o Brasil, Cabo Verde tem menos violência urbana e menos desigualdade social. Lá conheci pessoas simpáticas, que conversam com idioma próprio, mas que falam português com os visitantes. A língua que nos aproxima, aliada à história em comum que temos, faz com que qualquer brasileiro se sinta em casa nesse paraíso árido, no meio do Atlântico. Na viagem a Cabo Verde, pude perceber que o Atlântico não é o que nos separa, é o que nos une. Ao andar pelas ruas, conversar com as pessoas e conviver de perto com os cabo-verdianos, aprendi também o significado de morabeza, uma palavra difícil de traduzir... só indo lá para entender.
sobre a autora
Marcela Maciel Santana é arquiteta e urbanista (DAU/UFV) e mestre em Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em Planejamento do Espaço Urbano e Regional (PPGAU/UFV). Doutoranda em Patrimônios de Influência Portuguesa, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Esteve por um mês em Mindelo em missão de investigação (DPIP/UC) e como professora convidada no M_EIA (Mindelo_Escola Internacional de Arte).