“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Descalço e sem camisa.
Despido e sem dinheiro.
Desnutrido e sem documentos.
Desvalido e sem vergonha.
Desvairado e sem razão.
Desalmado e sem coração.
Desanimado e sem tesão.
Desacreditado e sem esperança.
Desempregado e sem direção.
Destemperado e sem medida.
Desterrado e sem lugar.
Desamparado e sem amor.
Despreparado e sem saber.
Sonhava às cegas, sonhos vazios, sonhos escuros. Sozinho, só com sua vida interior. Só vozes, palavras e mais palavras. Sua alma tomou um veleiro sem mastro e sem velas num um mar estreito e sem fim. Ou era uma avenida sem cidade? Uma Paulista sem São Paulo?
Virou-se do avesso para extrair a voz que lhe queimava as entranhas. Para arrancar, com o desajeito desmedido, com o desespero dos sem dinheiro, um naco de mirrada poesia, sem graça, mas sincera, metida consigo mesmo naquela larga estrada chamada Paulista.
Aos poucos, encheu um caderno com palavras bonitas, boas de dizer. Papoula, aurora, canastra, fragata, trovador, dolorosa, marinha, mariposa, itinerário, cratera, primavera, amaranto, caracol, baleia, escarlate, leopardo, locomotiva, macieira, magnólia, melancia, orvalho, simetria, vilarejo, talismã, murmúrio, sussurro. Deu ordem, algum ritmo, botou título, fez uma capa e tirou cópias. Aos desavisados na fila da bilheteria do Masp, repete a constrangedora pergunta: você gosta de poesia?
nota
NE – Quarto texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.