O Livro de Receita e Despesa do Convento franciscano de São Luiz, da Vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu, iniciado em 1793, já não possui capa e suas folhas apresentam-se bem conservadas apesar de já terem sido atacadas por cupim. É, todavia, o único que restou da série. Embora de fácil leitura, faço a transcrição do registro de despesa em destaque, respeitando a grafia original:
P” [lê-se: Por] jornais, q’ venceu o Me. [Mestre] Pedreiro Thebas . . . ” 20$160 [réis] (1).
Na sequência, lê-se mais os seguintes lançamentos (já transcritos em grafia moderna): “Por 20 alqueires de Cal comprada em Santos – 3$200; Por 8 @ e 17 libras de ferro – 14$097; Por 1 @ e 1 libra de Chumbo em pasta – 2$475; Pela condução da Cál, ferro, e Chumbo – 6$880 [réis]”.
São as informações, só agora descobertas, que noticiam a presença do mulato Joaquim Pinto de Oliveira, o Mestre Canteiro Thebas, em Itu, em Janeiro de 1795.
A notícia, porém, não surpreende.
O cenário em Itu, no quarto final do século 18, era dos mais profícuos ao desenvolvimento das artes; a riqueza proporcionada pela produção açucareira tornava a Vila de Nossa Senhora da Candelária o epicentro de uma economia em pleno desenvolvimento, propiciando iniciativas de cunho religioso-cultural que a colocava em pé de igualdade com a Capital da Capitania num movimento que Luís Saia denominou de “renovação estilística” (2), implementado nos principais templos religiosos tanto da Capital como de outros núcleos urbanos importantes do território paulista.
Assim, a presença de Thebas em Itu realmente não surpreende. Aliás, estranhávamos a literatura histórica não havê-la registrado antes, diante do volume de obras de arquitetura religiosa que se registrava em Itu na última quadra do 18, numa terra que em tudo favorecia o concurso de seu ofício que o fez notabilizar-se na cidade de São Paulo desde meados daquele século.
Em artigo anterior quando anunciamos a descoberta do entalhador do retábulo mor da Matriz – Bartholomeu Teixeira –, ao tecermos considerações acerca do frontispício da Matriz, chamávamos a atenção para certa semelhança para com o da capela da Ordem Terceira do Carmo paulistana, em especial do delineamento de seu frontão que já francamente transita em direção ao rococó – obra feita inteiramente por Thebas entre 1772 e 1777, onde a inicia ainda na condição de escravo de Dona Antonia Maria Pinto, viúva do Mestre Pedreiro Bento de Oliveira Lima, e a conclui já liberto por seu novo senhor, o Arcediago Matheus Lourenço de Carvalho, que de certo lhe prometeu alforria em troca da conclusão das obras do frontispício da Sé paulistana (3). Na década anterior, participara das obras da fachada da Igreja de São Bento (4). Frei Hortmann também registra a presença de Thebas nas obras do frontispício da Terceira Franciscana paulistana nos anos 1780-90 (5). São algumas das obras realizadas então na Capital em que é certa – pois que documentada – as sua participação, momento em que se abandona definitivamente a simplicidade das fachadas de taipa de pilão que caracterizavam as igrejas paulistas por um sistema construtivo misto que permite enriquece-las com ornatos de cantaria de pedra – técnica que Thebas dominava amplamente e que o fez afamado no ofício.
O fato novo dessa notícia é que ninguém havia registrado sua presença fora da cidade de São Paulo, como agora podemos dizer ao localizá-lo em Itu, dentre os registros de um livro de Receita e Despesa do Convento de São Luiz.
Vamos, pois, sem mais delonga ao dado mais importante do documento, e que se lê algumas folhas a seguir; este sim auspicioso.
P” Drº [lê-se: Dinheiro] q’ Se pagou ao Me. [Mestre] pedreiro, q’ fez o Cruzeiro ”38$400 [réis]
O dinheiro pago – Trinta e Oito Mil e Quatrocentos Réis – deve corresponder ao valor da obra confeccionada por Thebas.
Num terceiro lançamento, paga-se mais uma importância, como se lê abaixo:
P“ 27 ½ dias de jornais, q. Se pagarão ao Me. Thebas do Seu escravo João a 320’’. 8$800 [réis]
Pode-se concluir por este último registro que foi necessário quase um mês de trabalho com o seu escravo João para assentar o Cruzeiro, constituído por duas grandes peças, a Cruz e a base também de pedra.
Não verificamos, nos registros dos anos anteriores (o livro inicia-se no ano de 1793), nenhum outro lançamento correspondente a despesas relativas a fatura do Cruzeiro, por exemplo sobre a extração da pedra, o granito rosa que parece ser o utilizado por Thebas para a sua confecção e de fácil obtenção na região (Salto e Itupeva).
Mas, alguém imediatamente poderá dizer: é só isso?! O cruzeiro, apenas? O que há nele de auspicioso?
Pois a notícia não deixa de ser sim das mais auspiciosas, cremos nós, pois abre perspectiva senão para que novas descobertas ocorram, ao menos alimenta suposições interessantes dele ter estado presente em outras obras que se realizavam na mais próspera Vila da Capitania de São Paulo daqueles frutuosos anos finais do século 18.
E, por outro lado, vem despertar interesse ainda maior sobre esse personagem da história colonial paulista que, pelo desconhecimento que havia sobre a sua origem, tomado inicialmente próximo até a uma figura ficcional, lendária, aos poucos foi se desvelando aos olhos dos historiadores e agora o vemos também em Itu, talhando o cruzeiro diante das igrejas da Ordem Primeira e Terceira de S. Francisco – único elemento que restou do vetusto conjunto arquitetônico.
Lembramos, porém, que Dona Maria Francisca Vyeira, a quem chamamos de mecenas da Vila de Itu por ter, entre outras doações, destinado 600$000 réis para a contratação do entalhador Bartholomeu Teixeira para fazer o retábulo mor da Matriz, quando faleceu em 1796 (um ano depois de Thebas levantar o Cruzeiro) e se fez inventário, foram então arrolados lançamentos de doações que ela fez ainda em vida ao Convento de São Francisco, em razão de “promessas” consubstanciadas em duas quantias, uma de duzentos mil réis e outra muito maior, de um conto e seiscentos mil réis. Infelizmente não foi especificado a que se destinavam, se para obras arquitetônicas ou de ornamentação artística da igreja conventual. Pode-se supor tanto uma como outra, ou ambas. E abre-se assim perspectiva nova de investigação a qual poderá nos conduzir, quem sabe, ao encontro de indícios de outras participações de Thebas para os frades franciscanos.
E obras que carecessem do concurso deste Mestre Canteiro houve no período. E não só as da Matriz.
É, ao menos, o que se lê no capítulo “Convento de São Luiz de Itu” do volumoso estudo de Frei Basílio Röwer O.F.M., quando narra sobre a “Reconstrução do Convento”, ocorrida a partir da gestão de Frei José dos Anjos Passos (1781-1784). Cita uma importante determinação do Definitório tomada em razão
“do miserável estado, em que se acha o nosso Convento da vila de S. Luiz de Itú, rachadas as suas paredes por várias partes, ameaçando de tal sorte o demolir-se por si mesmo, deliberando-se então que o dito Convento ... seja demolido todo, posto que por partes, e de novo edificado porem como a terra daquele continente, de que foram fabricadas as taipas, que se vêm arruinadas, hé areenta, que por isso não liga huma com a outra, sendo preciso por este motivo conduzir-se diferente terra do outro lugar distante para se levantar a dita nova fábrica, e aliás temos notícia, que a pouco espaço fora da dita vila se encontra pedra fácil de extrair, e conduzir, sendo certo sem opinião, que as paredes de pedra prometem mais que dobrada duração, e resistência ... ordenamos ao Prelado local, e aos seus sucessores, que façam fabricar de novo o sobredito Convento de pedra, e barro no mesmo lugar, que ocupa o velho arruinado, e com o mesmo espaço e largura sem acréscimo, ou diminuição afim de que se aproveite a mesma igreja, que não padece danificação notável".
Afora a reconstrução do convento vale considerar outra deliberação do Definitório, esta tomada em 7 de Abril de 1793 (portanto três meses após Thebas faturar o Cruzeiro para os frades), relativamente a pretensão dos Irmãos Terceiros de construírem uma nova capela, que pretendiam edificar ao lado da igreja do convento, para o que requeriam a autorização necessária, firmando então compromisso mediante
“Termo de obrigação, que fazem os Irmãos da Ordem Terceira da Penitência, de não inovarem couza alguma fora do uzo, e costume, que nella Se tem obServado ate o prezente” (6).
E, para tal, receberam os Terceiros dos Religiosos franciscanos a
“escritura de doação gratuita das quarenta braças de terra de cumprido, equinze de largura, que pediram para a factura da mma. Capella”.
Miguel Dutra logrou retratar, ainda em meados do século 19, o conjunto arquitetônico edificado pela comunidade franciscana de Itu no último quartel do 18 e nele se pode observar a presença da pedra de cantaria na estruturação e ornamentação dos edifícios. Terão sido obras feitas por Thebas?
Thebas foi um artífice muito habilidoso e quase único nas plagas paulistas no seu ramo artístico; razão porque o encontramos geralmente entre aquele seleto grupo de artistas que se notabilizava no desempenho de suas atividades, dividindo as atenções com figuras destacadas pela literatura histórica, como José Patrício da Silva Manso e Padre Jesuíno do Monte Carmelo, aos quais incorporamos mais recentemente Bartholomeu Teixeira pela magnífica obra de entalhe realizada na Matriz de Itu, única até agora identificada de sua autoria. E como todos eles, Thebas se valia também do braço escravo, do João citado no documento atrás, pedreiro de ofício, que além de auxiliá-lo na fatura das obras lhe valia bons rendimentos em jornais. Eram assim as relações: se pautavam por uma ordem de ações, valores, direitos e deveres que diferenciava os indivíduos em razão de suas origens, privilegiando uns em detrimento de outros, seccionando a sociedade entre Senhores e escravos, determinando assim seus destinos que, todavia, podiam se alterar em razão do interesse e da vontade dos primeiros, como foi o caso de Thebas que alcançou a alforria por graça de uma alta autoridade eclesiástica, o Reverendíssimo Cabido da Sé paulistana, como atrás dissemos (nota 3).
O que, porém, mais diferenciava Thebas dos demais artífices seus contemporâneos que se notabilizavam naquele quadrante final do século 18 que o amigo Régis Duprat, num encantador artigo sobre as atividades artísticas de então, denominou de “Preludio do poente da estética barroca” (7), não era somente a origem escrava, mas sobre tudo a capacidade e perícia com que desempenhava o seu ofício, e tudo leva a crer que superou de longe o Mestre Bento, seu primeiro Senhor, que dele se valeu enquanto viveu. Thebas ganhou notoriedade e a reputação merecida que o seu apelido sugere já desde o início da carreira, quando era ainda somente um dos escravos do Mestre que o introduziu na arte de talhar a pedra. Em Santos. Onde, depois, voltava para buscar a cal, o ferro e o chumbo, materiais requeridos às obras de cantaria que realizava na Capital e, agora vemos também, em Itu. Valeria perguntar: nessas idas a Santos não terá feito alguma obra por lá, porém ainda não identificada?
notas
NA – Registro novamente meu agradecimento ao colega Júlio Cesar, bacharelando de História, estagiário no Arquivo Documental do Iphan/SP, colega de sala, a quem consulto recorrentemente sobre dados de pesquisa e também me valho e abuso de sua competência técnica para ordenar e dispor documentos e fotos nos textos que escrevo.
1
Livro de Receita e Despesa do Convento franciscano de São Luiz, da Vila de Nossa Senhora da Candelária de Itu, “Do Mez de Janrº de 1795”, folha 13. Arquivo da Província.
2
SAIA, Luís. A arquitetura em São Paulo. In BRUNO, Ernani Silva (Org.). São Paulo, terra e povo. Porto Alegre, Globo, 1967, p. 229 e seguintes.
3
A respeito, ver: CERQUEIRA, Carlos Gutierrez. Tebas – vida e atuação na São Paulo Colonial. Website Resgate – História e Arte II <https://sites.google.com/site/resgatehistoriaearte/>.
4
JOHNSON, Dom Martinho. O Livro de Tombo do Mosteiro de São Paulo da Cidade de São Paulo. Revista de História, LXXII, São Paulo, 1977, p. 199-200.
5
HORTMANN, Frei Adalberto. História da Antiga Capela da Ordem Terceira da Penitência de São Francisco em São Paulo. Publicação n. 16. Rio de Janeiro, Diretoria do PHAN/MES, 1951.
6
Documento avulso do Arquivo da Província franciscana, de 07.IV.1793.
7
DUPRAT, Régis. Uma família e uma tela. In MANSO, José Patrício da Silva (1740-1801). Um pintor colonial paulista restaurado. São Paulo, 9ª SR/Iphan, 2007.
sobre o autor
Carlos Gutierrez Cerqueira é formado em História (FFLCH USP, 1975) e Técnico em Pesquisa da Superintendência Regional do Iphan/SP desde 1983.