“concluí que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório”
Grande Sertão: veredas, João Guimarães Rosa
Morar na rua me trouxe uma intimidade com a cidade. Hoje, depois de toda viração, esta cidade me comove. Esta rua, por exemplo, sempre a carreguei comigo. Nela colhi frutas maduras. Toda uma vida se consumiu sem eu vê-la. E agora, passo horas em lembranças, colhendo o frescor dos ramos verdes. Daqui de dentro, sentada na calçada, a cidade se desfaz. Mais dois ou três passos de pura alvura e gritarei estas memórias.
A falta de pagamento do aluguel me lançou na rua.
As palavras assobiam um vento frio. Prenúncio da chuva que vai molhar a lâmina da faca. As palavras lançam sombras no ar. A água escorre pela concha das mãos. E a faca cala.
A falta de pagamento do aluguel me jogou na rua.
As luzes recomeçam a cintilar a cidade. Tento adivinhar as janelas que acenderão primeiro. Invento jogos, crio regras, ganho, perco – tudo para sondar a sorte. Quanto tempo de espera? Penso no pescador e no fundo do rio. Penso nos livros que vão morrer de esperar por um leitor, com todas as palavras aprisionadas. Levo a alma entediada como uma cadeira de balanço esquecida.
A falta de pagamento do aluguel me atirou na rua.
Noite dessas, sonhei com um rinoceronte. Acho que vi num filme: ele enorme passeando pelo tombadilho de um navio, numa noite enluarada. No fundo, nada disso tem a ver comigo. Por que então essa imagem me aparece assim?
A falta de pagamento do aluguel me largou na rua.
Persigo seus ombros neste calabouço chamado cidade. E sigo contando as duas mentiras trágicas que guardo como facas.
A falta de pagamento do aluguel me deixou na rua.
Quem vive de amontoar coisas, sempre encontra um buraco para esconder um achado de valor ou para alojar um assunto novo. Sempre há um canto esquecido para o encontro com a noite. Empurro meu carro rumo à parceria que armei com a solidão.
A falta de pagamento do aluguel apagou minha janela.
nota
NE – Sexto texto da série Homens Provisórios, que conta com os seguintes artigos publicados:
JORGE, Luís Antônio. O Papai Noel. Homens provisórios 1. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 117.06, Vitruvius, dez. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.117/6337>.
JORGE, Luís Antônio. O vendedor de doçura. Homens provisórios 2. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 118.04, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.118/6362>.
JORGE, Luís Antônio. O vigia acidental. Homens provisórios 3. Drops, São Paulo, ano 17, n. 112.05, Vitruvius, jan. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.112/6382>.
JORGE, Luís Antônio. Rosalina, a florista ambulante. Homens provisórios 4. Arquiteturismo, São Paulo, ano 10, n. 119.05, Vitruvius, fev. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/10.119/6414>.
JORGE, Luís Antônio. O poeta da Paulista. Homens provisórios 5. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 120.04, Vitruvius, mar. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.120/6451>.
JORGE, Luís Antônio. Cassandoca, a catadora da Mooca. Homens provisórios 6. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 122.02, Vitruvius, maio 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.122/6533>.
JORGE, Luís Antônio. O marceneiro Messias. Homens provisórios 7. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 127.03, Vitruvius, out. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.127/6725>.
JORGE, Luís Antônio. Estela, a escova, os sons e os sapatos. Homens provisórios 8. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 131.08, Vitruvius, fev. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.131/6887>.
JORGE, Luís Antônio. Cida e a cidade desaparecida. Homens provisórios 9. Arquiteturismo, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, jul. 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/12.136/7061>.
sobre o autor
Luís Antônio Jorge, homem que fez da fronteira seu lugar de residência – meio paulista, meio mineiro – gosta do Brasil, de arquitetura e de literatura.