Manhã no campo de Imbura (Latecoêre) passeio de avião biplano sobre Recife com filho Francisco do Hernani Braga. Maravilha de sensações novas. Almoço no Leite com José Pinto e vou a Olinda passear. Olinda, cheia de caráter, uma gostosura. Vou até o farol de bonde, depois subo e desço ladeiras, vendo becos, ruas, igrejas. A Sé, u’a merda exterior. Convento de São Francisco, maravilha de azulejos e pinturas. Quadros admiráveis de composição. Alguns mesmo como valor plástico nas figuras. Outros até como expressão psicológica dos rostos. Num corredor descubro azulejos num azul forte inda conservado o segredo na panorâmica de Delfo, e que é absolutamente diferente dos azulejos do Brasil, como desenho e como cor, maravilhosos. A sacristia em tudo magnífica. Entre os quadros dos caixotões do teto, umas naturezas-mortas curiosas, bastante retocadas às vezes possivelmente com elementos ajuntados posteriormente nos quadros (alguns), tudo lembrando pelo desenho, por certos processos de pintura (e menos pela composição) certas naturezas-mortas flamengas. Interessantíssimo. Também os entalhes da sacristia são muito bons. É mesmo talvez a sacristia mais completa, mais total como interesse, acabamento e composição que existe no Brasil, um monumento enfim. S. Bento é bem inferior. Imagens novas (aliás as velhas de S. Francisco pouco valiam também como valor plástico), o altar dum barroco frio, inteirinho doirado. No bar da praia, olhando pro mar, ao vento, José Pinto e eu tomamos gelados descansando. Volto pra Recife pras 18 horas partir com Ascenso e Alfredo Medeiros pro engenho Martinica de Renato Carneiro da Cunha, ouvir a Maria Joana que está lá com os patrões. Viagem deliciosa ida e volta a lua clara quase cheia. Estrada no geral ruim. Engenho magnífico como sede, confortável sem propriamente luxo, nem pretensão. Acho no jantar infelizmente pouco caráter. Depois Maria Joana canta envergonhada na frente dos patrões. Canta quase mal. Foi pena.
nota
NE – texto de 19 de fevereiro de 1929, publicado em: ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. São Paula, Livraria Duas Cidades, 1976, p. 368.
sobre o autor
Mário de Andrade (São Paulo, 1893-1945) literato e intelectual brasileiro, líder do movimento modernista paulista, autor de diversos livros, dentre eles “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter”, publicado em 1928.