Em Pirenópolis é assim. Chegou o mês de maio e com ele o friozinho e a expectativa com a Festa do Divino. O ápice da Festa é no dia de Pentecostes, ou seja, cinquenta dias depois da Páscoa. Em épocas remotas, lá pela segunda metade do século 19, a Festa do Divino coincidia com o período da colheita, o que por sua vez já era motivo de celebração. Não demorou para que outros festejos tradicionais da cidade, comemorados em datas diferentes ao longo do ano, fossem incorporados no corpo da Festa do Divino, caso das comemorações de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, santos das irmandades negras do período colonial.
Que festa bonita de se ver! E de participar também. Por que não acompanhar o levantamento dos mastros, as procissões e as alvoradas ao som da Banda de Couro, rezar as Novenas, festar nos pousos de folia e se fartar na rica mesa da casa do Imperador ou com os doces coloridos do Reinado nos derradeiros dias da festa... A Festa do Divino não se resume às Cavalhadas, como muitos pensam. A essa altura, Pirenópolis já está em ebulição, principalmente a partir da saída das folias, para arrecadar contribuições para a Festa.
Para quem não conhece, Pirenópolis foi fundada na febre do ciclo do ouro, no início do século 18. As igrejas foram ditando a ocupação do lugar, as ruas tomando forma no terreno acidentado seguindo na direção desses templos e as casas foram sendo construídas quase sempre parede-meia, unidas umas às outras. O arraial se desenvolveu basicamente na margem sul do rio, uma vez que o terreno correspondente ao outro lado era propriedade de um rico minerador, Luciano Nunes Teixeira. Pelo peculiar acervo arquitetônico e urbanístico e por retratar um importante período histórico do processo de ocupação de Goiás, o núcleo central de Pirenópolis foi tombado pelo Iphan em 1990.
A tranquilidade interiorana se transforma nos finais de semana e datas festivas. Pirenópolis atrai pessoas das cidades próximas como Goiânia, Brasília, Anápolis e mesmo gente que vem de longe, que segue em busca das místicas do Planalto Central ou simplesmente de um bom banho de cachoeira. Muita gente acaba se apaixonando pelo lugar, abandona tudo e se muda pra lá. Em um giro pela cidade é possível ouvir um tradicional goianês interagindo com sotaques de outras regiões do Brasil ou com um português meio truncado, dos gringos que escolheram Pirenópolis como morada.
Não é de agora que as pessoas “descobriram” a cidade. Desde sempre Pirenópolis recebe gente de toda parte, uma vez que se localizava nas proximidades da confluência das estradas coloniais que vinham da Bahia, São Paulo e Minas Gerais e de lá seguiam em direção à Vila Boa – atual cidade de Goiás. Com a diminuição da extração do ouro, a antiga Meia Ponte foi se moldando a um novo ritmo ao longo do século 19, aderindo às atividades agropecuárias.
Quem já esteve na cidade e seus arredores percebe que Pirenópolis tem um quê de Macondo. O que dizer de uma cidade que é cortada por um rio chamado Almas? E que atendia pelo nome de Meia Ponte, quando era apenas um arraial, implantado nas proximidades da Serra dos Pireneus, em pleno Planalto Central? Existem várias teorias a respeito da origem do nome inicial de Pirenópolis – a mais difundida trata de uma ponte que rolou depois de uma forte tempestade. Outros falam da existência de uma pedra com o formato de “meia ponte” pelas redondezas. Outros ainda asseguram que o nome teria sido inspirado pelo Rio Meia Ponte, que corre em um dos caminhos que levava ao arraial. Lendas e mais lendas da época do ouro ainda circulam por lá. Como aquela da cumbuca cheia de ouro, escondida em alguma das (poucas) paredes de taipa da cidade. Ou a da filha do abastado minerador que passou seus últimos anos pedindo esmolas. Estórias dos tempos da colônia sempre existiram, imagina numa região mineradora, que era um verdadeiro Deus-nos-acuda!
No século seguinte novas estradas direcionavam o fluxo por Goiás, deixando Pirenópolis na lembrança. Ainda assim, a cidade recebeu a Comissão Exploradora do Planalto Central em 1891, sob chefia do astrônomo Luis Cruls, responsável por delimitar os limites da nova capital do Brasil. Dessa comissão, encontramos ricos registros históricos, inclusive uma Planta da cidade de 1892. Os anos se passaram e a cidade ficou submersa nas brumas de outros tempos. Até que, com a construção de Brasília na década de 1960, os habitantes da nova capital modernista adotaram Pirenópolis no seu tempo livre. Crescia outra vez o interesse por essa cidade colonial com ar interiorano de casas cobertas com telhas de barro e seus convidativos beirais, sob os quais descansavam os moradores, sentados no fim de tarde nas calçadas de lajes de pedra, só vendo a meninada correr pelas ruas. Enquanto isso, comunidades hippies se instalavam nas proximidades, cultuando seus ideais. Por vezes entravam em choque com a cultura local, sobretudo durante os festejos religiosos. Naquela época, a procissão de sexta feira da Paixão não era muito compatível com pessoas em trajes mínimos celebrando paz e amor. Mas esses forasteiros foram sendo incorporados e já fazem parte da dinâmica atual. Muitos se consideram verdadeiros pirenopolinos.
Pouco a pouco o turismo foi se consolidando, de forma desordenada, trazendo consigo inúmeras lojas, restaurantes, bares, pousadas e casas de temporada – e o fim do sossego, pelo menos nos finais de semana e feriados. Diante desse cenário, nem é preciso dizer que o conjunto arquitetônico colonial sofreu transformações irreversíveis...
Entretanto o patrimônio, diga-se de passagem, extrapola os limites materiais. Reconhecida em 2010 como Patrimônio Cultural do Brasil, a Festa do Divino representa a alma pirenopolina. O envolvimento da população na realização da Festa é impressionante e movimenta uma cadeia de pessoas com ofícios dos mais diversos, que trabalham por amor, devoção e fé. E, naturalmente, a Festa sempre é um sucesso, numa saborosa junção de manifestações religiosas e profanas. Para além dos turistas que normalmente aparecem em peso no fim de semana das Cavalhadas, a Festa atrai um público bastante diversificado, de devotos fervorosos a jovens em busca de curtição. A Festa do Divino Espírito Santo é de todos.
Todo ano é sorteado o festeiro, o Imperador da Festa, que vai se responsabilizar pelo seu perfeito funcionamento (auxiliado por alguns secretários, os “mordomos”). Como a Festa é grande, o Imperador conta com as esmolas dos fiéis arrecadadas por meio das folias. Em Pirenópolis, três folias giram com a bandeira do Divino Espírito Santo: a Folia da Cidade (ou da rua), a Folia da Roça e a Folia do Padre. A Folia da Rua percorre as casas de Pirenópolis durante o dia e ao cair da noite é oferecido um jantar aos foliões. As demais folias seguem a mesma lógica, entretanto percorrendo povoados e propriedades rurais, onde são muito bem recebidos. A principal diferença entre a Folia da Roça e a Folia do Padre é o grau de profanação – as folias da roça são lendárias, com rega-bofe até o amanhecer, ao passo que a Folia do Padre está mais calcada na religiosidade, sem os bailões. Outra diferença notável é que as esmolas da Folia do Padre são entregues para o Padre, não para o Imperador, como ocorrem nas outras folias. Como percorrem várias casas na cidade e na zona rural para arrecadar dinheiro para a Festa, as folias duram vários dias. Um dos pontos altos da Festa do Divino é sem dúvida a chegada da Folia da Roça de volta à Pirenópolis, no domingo anterior ao dia de Pentecostes.
Em paralelo aos giros das folias, ocorrem os ensaios dos folguedos, d´As Pastorinhas e, sobretudo, das Cavalhadas. A religiosidade não fica de fora: as Novenas do Espírito Santo na Igreja Matriz seguem semana adentro. No encerramento da Novena, em pleno sábado que antecede o Domingo do Divino, a consagração se dá com o levantamento do Mastro em frente à Igreja, enquanto arde a grande fogueira no Largo da Matriz, lotado de gente. Em seguida todos seguem até a Beira Rio, de onde acompanham a queima de fogos, dando a deixa de que o clímax da festa está próximo. Um pouco mais cedo, ainda no Sábado do Divino, ao som da centenária Banda Phoenix e dos repiques dos sinos da Matriz, os mascarados anunciam, por volta do meio dia, que ainda tem muita festa pela frente. Saem pelas ruas a pé ou cavalgando, pedindo dinheiro e colorindo a cidade com sua irreverência característica. Nesse caso, o dinheiro costuma ser revertido em forma de bebida ou doces, a depender da idade do mascarado.
Enfim, é chegado o Domingo do Divino. Dia de procissões, missa solene, sorteio do novo Imperador, almoço na casa do festeiro com distribuição de Verônicas e o início das Cavalhadas. As Cavalhadas levam a fama porque, sem dúvida, é um fabuloso espetáculo. Duram três dias, sendo que nos dois primeiros ocorre a encenação medieval da luta entre mouros e cristãos, com a vitória dos últimos e o batismo dos mouros. Na terça-feira, entretanto, o jogo pode virar: o último dia é marcado por jogos equestres, em que os cavaleiros competem entre si. Entre uma carreira e outra, o campo é ocupado pelos mascarados, que mandam recados bem humorados aos políticos e à sociedade em geral. Ao longo das várias horas de encenação que se desenvolve no campo, o que vale é a sociabilidade do público frequentador: encontrar os amigos, colocar a conversa em dia, trocar quitutes e apreciar o espetáculo.
Quanto ao “Cavalhódromo”, concebido pelo Governo Estadual, não há um consenso. Enquanto alguns cavaleiros se sentem honrados pelo fato do equipamento ter sido destinado para as Cavalhadas, outros usuários já não o veem com bons olhos, caso dos mascarados e de parte do público (foi feito um levantamento a esse respeito no ano de 2008, ocasião em que eu desenvolvia trabalho de campo para minha dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós Graduação da FAUFBA). Com a construção do “Cavalhódromo”, os mascarados se queixaram de não ter espaço apropriado para deixarem seus cavalos. Além disso, alegaram que a circulação e o acesso ao campo ficaram comprometidos. No antigo Campo, que era levantado todo ano com estacas de madeira para a delimitação da arena e construção dos camarotes e arquibancadas, as Cavalhadas se desenrolavam num contato mais próximo com a plateia. Embora parecesse precária, a estrutura atendia melhor as necessidades dos cavaleiros, mascarados, cavalos e do público.
Encenado em horário nobre no Teatro no Sábado do Divino, o auto de Natal As Pastorinhas é um clássico na Festa. Como a história é a mesma e se repete todos os anos, parte do deleite ao assistir a encenação fica por conta de acompanhar também a plateia, que reproduz os diálogos em tempo real. Participar como uma das personagens d´As Pastorinhas é como um rito de passagem para as meninas da cidade. Mais uma vez, é a hora em que as pessoas se encontram e socializam, nutrindo viva a tradição que se mantem há tantos anos.
Como não poderia deixar de ser, um dos pontos altos da Festa do Divino são as procissões, que percorrem a cidade. A mais popular é a de domingo, em que o festeiro, juntamente com sua família e populares, se desloca em trajetos que incorporam a Casa do Imperador (que pode ser a sua casa ou uma alugada durante a festa) e a Igreja Matriz. Não menos importantes, mas com uma adesão muito menor, são as procissões referentes ao Reinado de Nossa Senhora do Rosário e ao Juizado de São Benedito, que ocorrem na segunda e na terça, dia em que a Festa enfim acaba. Como o centro foi sendo paulatinamente tomado por outras atividades, em detrimento da uso residencial, e por conta da exagerada valorização dos imóveis nessa região, normalmente o trajeto dessas procissões passa por ruas mais periféricas. Ao fim das procissões, os reis de Nossa Senhora do Rosário e os juízes de São Benedito são conduzidos até suas casas, onde são servidos doces e salgados.
Não só em Pirenópolis, mas em qualquer outra cidade, a melhor época de circular e conhecer novos destinos é durante as festas locais. A experiência ganha nuances e cores muito mais ricas, nos aproximando, nem que seja um pouco, da vivência local. Acompanhar os festejos da Festa do Divino de Pirenópolis é sem dúvida algo inesquecível. Naturalmente, é impossível descrever e relatar todas as manifestações dessa grande Festa, mas deixo aqui minha pequena contribuição dos momentos em que tive a oportunidade e o privilégio de acompanhar. E posso assegurar que nessa época do ano o coração bate mais forte e a vontade de voltar a viver em Pirenópolis ou conhecer outras festas do Divino Espírito Santo pelo Brasil se torna uma doce necessidade.
sobre a autora
Nádia Mendes de Moura é arquiteta e urbanista, graduada na PUC.GO. Especialista pelo CECRE (UFBA) e mestre pelo PPG.FAUFBA em Conservação e Restauração. Atualmente é doutoranda em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo na FAU USP, com bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).