Trajando apenas meias e sapatos, Noel cantarola diante do armário com as portas abertas:
“Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?”
Noel se olha no espelho e admira a bela figura. Cheio de si, se entusiasma com a estrofe:
“Agora vou mudar minha conduta
Eu vou pra luta pois eu quero me aprumar
Vou tratar você com a força bruta
Pra poder me reabilitar”
Mas baixa o facho quando se lembra que o mar não tá pra peixe, melhor então se rebaixar:
“Agora eu não ando mais fagueiro
Pois o dinheiro não é fácil de ganhar
Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro
Não consigo ter nem pra gastar”
E nem pode imaginar, tão centrado em si está, que no cômodo ao lado a moçoila também vive drama tão gêmeo ao seu.
Nuazinha como veio ao mundo, sem eira nem beira depois que seu portuga se mandou, Maria João sorri da desgraça enquanto ondula a anca larga no ritmo da música que pula pela janela:
“Pois esta vida não está sopa
E eu pergunto: com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?”
Olha a dúzia de gravatas que o desertor deixou quando fugiu sem olhar pra trás. Decide então que tudo vai pro lixo para que outras gravatas habitem seus cômodos recônditos, coisa boa demais. Como canto de ave de mau agouro, brota da parede a melodia que lembra o que já se foi:
“Seu português agora deu o fora
Já foi-se embora e levou seu capital
Esqueceu quem tanto amou outrora
Foi no Adamastor pra Portugal
Pra se casar com uma cachopa
Mas agora com que roupa?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?”
No quarto ao lado, Noel pensa que melhor fica sem roupa alguma, pois as que tem não faz jus a sua bela estampa, como não deixa esquecer a agulha que arranha a bolacha formando a canção:
“Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu
Meu terno já virou estopa
E eu nem sei mais com que roupa
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?
Com que roupa que eu vou
Pro samba que você me convidou?”
E na casa de cômodos onde vive gente que tudo abandonou ou por todos foi abandonada bate um vento forte soprado pelo “Deus ex machina”, abrindo portas e revelando corpos, tudo assim bem entrosado.
Fogosa paixão, logo consumada, mas um encanto desses que só magia consegue urdir, de abrupto tomou um e outra, e ficaram ali conversando de forma íntima como casados fossem, como seriam de fato e de direito logo mais, para todo o sempre.
sobre os autores
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.
Carlos Alberto Cerqueira Lemos é arquiteto pela FAU Mackenzie, escritor, especialista em patrimônio histórico, professor aposentado da FAU USP, pesquisador e artista plástico.