E lá estava o Velho Chico, caudaloso, era época de chuvas. Foi no município de Januária, em Minas Gerais, ali perto do cais, no Centro de Artesanato que o conhecemos. Menino, homem, cidadão do rio: Carlúcio. Pescador, vendedor de peixe e poesia. Contador de causos, causos da vida, da vida boa, que se melhorar acaba por estragar. Sentados ali no meio fio, com os pés no antigo calçamento de pedras da cidade, em frente da construção em adobe que Carlúcio nos contou:
“Naquele dia a minha filha estava comigo, ela chama Vitória. Ela era perseguida pelo Caboclo D’água. Nós estávamos lá no rio, então ela olhou pra mim e falou:
− Ô painho me dá dinheiro pra compra sorvete”.
E eu falei:
− Seu pai não tem dinheiro não minha filha, mas vamos olhar os anzóis ali no aço (1), se tiver peixe, eu pego o peixe, vendo e te dou o dinheiro.
Ela falou ‘tudo bem’.
Então eu fui lá olhar se tínhamos pescado algo. Na hora que nós chegamos lá ela olhou pra água e falou bem assim:
− Caboclinho d’Água, Caboclinho d’Água dá um peixinho para painho, que painho tá sem dinheiro.
− Vitória! Para de brincadeira, Vitória! Cê sabe que o Caboclo D’água é meu amigo é esta pinga e este fumo que eu ando aqui é para dar para ele e você fica com brincadeira...
Aí ela tornou a olhar para a água e falou:
− Caboclinho d’Água, Caboclinho d’Água dá um peixinho para painho, que painho tá sem dinheiro.
− Vitória para!
Aí ela ficou quieta. Nisso a mãe dela chamou, porque ela estava ali na beira do Rio, que é perigoso. Quando Vitória saiu, eu olhei o anzol, não tinha peixe nenhum, então eu soltei o aço. Quando eu soltei, o barco não ia nem para a frente nem para traz, estava seguro meu barco. Eu pensei: ‘meu Deus do Céu, o que eu vou fazer aqui nesta beira de Rio’.
Então falei bem assim:
− Caboclinho d’Água, Caboclinho d’Água, a menina que te pediu peixe não tá aqui não, então cê solta meu barco.
E nada de soltar... Então eu peguei a pinga que eu tinha ali e joguei dentro d’água, na hora que eu joguei dentro d’água, soltou o barco. Então eu fui para fundo da canoa para ligar a rabeta (2), e ouvi bem assim:
− Ô Carlucio!
Olhei pra traz e falei:
− Que foi?
− Essa pinga que você jogou dentro d’água é muito ruim, é fubuía (3), pinga boa é a selada lá de Caribé (4).
Moço, eu vim correndo que nem um doido para a beira do Rio. Cheguei lá e fui contar a história para os colegas. Então eles viraram para mim e falaram:
− Ô Carlúcio, você é mentiroso demais, cê quer dizê que o Caboclo d’Água conhece você, sabe seu nome e sabe que a pinga boa é a selada?
Vocês podem confirmar com quem estava lá... Isso tudo porque eu pego mais peixe que os meninos. Eu pesco mais porque eu levo pinga e fumo para o Caboclo d’Água e jogo tudo dentro d’água”.
Eita diacho, velhinho atrevido. Ficamos ali, no Centro de Artesanato, local de disseminação da cultura popular local junto, com Terezinha e Daniel, ouvindo e registrando os causos do Carlúcio. Escolhi alguns deles e coloquei aqui. A pedido de Carlúcio que ainda falou: “Coloca lá na internet para mim”. Vejam os vídeos.
Carlúcio – Vida de pescador
Vídeo Ana Carolina Brugnera / Lucas Bernalli Fernandes Rocha
Carlúcio – Olha para mim
Vídeo Ana Carolina Brugnera / Lucas Bernalli Fernandes Rocha
Carlúcio – Eu pesquei um peixe
Vídeo Ana Carolina Brugnera / Lucas Bernalli Fernandes Rocha
Carlúcio – O caboclo d'água de Januária
Vídeo Ana Carolina Brugnera / Lucas Bernalli Fernandes Rocha
notas
NA – Este material faz parte dos registros e anotações de um diário de viagem que foi elaborado durante as pesquisas de campo da tese de doutorado de Ana Carolina Brugnera titulada como: “Comunidades Criativas: Uma alternativa para o desenvolvimento sustentável do meio ambiente cultural do Norte de Minas Gerais”. O projeto tem como objetivo trabalhar o potencial cultural e o conhecimento popular passado de geração em geração das comunidades rurais do entorno do Parque Nacional Cavernas do Peruaçu. O trabalho está em andamento e é desenvolvido através do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, orientado pelo Prof. Dr. Abilio Guerra, com apoio da Capes e do Instituto Pequi do Cerrado. Agradecimentos a Carlúcio, Terezinha e Daniel, ao Centro do Artesanato e à banda Pequeno Sertão.
1
Técnica de pesca onde um comprido cabo de aço é esticado sobre o rio. Neste cabo são dependuradas linhas de pesca com anzol. Esta técnica também é conhecida como espinhel.
2
Pequeno motor de popa para pequenos barcos como uma canoa ou voadeira.
3
Pinga ruim, desdobrada, forte. Cachaça misturada, que não é pura.
4
O nome “Caribé” está associado ao comércio de Januária desde a década de 30 quando a Família Caribé chegou a região. Posteriormente a implantação do comercio iniciou-se a produção da cachaça com o mesmo nome devido ao enorme potencial das condições locais para produção de boas cachaças.
sobre os autores
Ana Carolina Brugnera é artista visual, arquiteta e urbanista, mestre e doutoranda pela FAU Mackenzie. Atualmente é diretora da Secretaria Executiva e sócia fundadora do Instituto Pequi do Cerrado.
Lucas Bernalli Fernandes Rocha é geografo, arqueólogo júnior e educador. Especialista em gestão ambiental e educação, possui MBA em bens culturais pela FGV-SP e é perito ambiental da bacia hidrográfica do Alto Médio Rio São Francisco. É presidente do Instituto Pequi do Cerrado.