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architectourism ISSN 1982-9930

Baía de Guanabara, Rio de Janeiro e Niterói. Foto Abilio Guerra

abstracts

português
O arquiteto e pesquisador José Lira apresenta suas impressões sobre sua visita de férias ao Peru, onde encontrou uma sociedade multicultural e em processo de modernização em meio aos problemas estruturais de um país de terceiro mundo.


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LIRA, José. Pelas cidades partidas do Peru. Uma viagem de arquiteto. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 125.03, Vitruvius, ago. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.125/6636>.


Acabei de voltar de duas semanas no Peru. Estava lá como turista. O país é uma meca no setor. E com ótimas razões para tal. Principalmente em sua modalidade arqueológica. O período – como de praxe no turismo – foi curto. Ainda assim, naturalmente, sempre saímos com algumas impressões. As minhas não são tantas, nem tão bem formadas, talvez até meio genéricas, mas deu vontade de compartilhá-las. Recém-chegado publiquei-as no facebook e logo alguns colegas sugeriram-me trazê-las à revista Arquiteturismo do portal Vitruvius. A elas, juntei essa pequena coleção meio desconexa de fotos. É que o Peru não apenas revela fraturas muito visíveis em sua paisagem, mas escancara a sensação de ignorância sobre os países vizinhos e os povos originários da região a que os brasileiros nos acostumamos. Sensação de ignorância e de estranhamento ali difíceis de escapar, mesmo ao turista mais disponível à alteridade.

É comum nessas circunstâncias buscarmos algum termo de familiaridade, de aproximação, paralelos, contrapontos com o que conhecemos. Entre os arquitetos, inclusive – mesmo em uma viagem em que somos alvo da cortina de ferro das mercadorias turísticas – é quase um vício desviarmos o olhar das maravilhas monumentais, históricas, culturais, gastronômicas, da paisagem, que o Peru aliás tem de sobra. E fixarmos aspectos meio triviais, nada excêntricos ou sem muito glamour nos lugares visitados: tipologias construtivas recorrentes, características dos centros, dos bairros e das periferias, a continuidade e descontinuidade dos tecidos urbanos e do patrimônio edificado, inclusive no tempo, a qualidade dos espaços públicos, a condição dos transportes, do saneamento, da arborização, da iluminação pública, os bairros pobres, favelas, conjuntos habitacionais, tendências de encortiçamento e de gentrificação, e outros temas meio sem graça ao turista que se preze. Aspectos que se misturam à experiência da viagem, à sua ingenuidade e a suas derivas possíveis, tanto quanto àquilo que passamos a vida discutindo enquanto arquitetos ou professores de arquitetura e urbanismo.

Cusco é uma maravilha! Nossa Ouro Preto, ou nossa Olinda! Evidentemente mais mourisca que qualquer cidade colonial brasileira, com seus abalcoados descomunais; e mais misteriosa, com suas pedras, mitos e sítios incaicos por todo lado e a presença quéchua, chopcca, aimará em cada esquina; na contaminação do europeu, do cristão, do barroco e do mudejar pelos grafismos indígenas em todas as cores do arco-íris (a bandeira da cidade é a bandeira gay a propósito). É de passar mal de tanta beleza! E da altitude! Um convite a mascar folha de coca e flanar devagarinho por suas ruas, pátios e largos. A cidade, capital do império Inca, era 4 ou 5 vezes maior do que Madrid à época da conquista e é ainda hoje uma metrópole nos Andes. Inclusive em seu crescimento caótico, os contrastes mais brutais entre o amplo centro histórico, tão bem preservado quanto disneificado, e as paróquias, quebradas e encostas mais distantes, exploradas com grande liberdade pelos especuladores de plantão e favelizadas como em toda grande cidade latino-americana. Não à toa, quando lá chegamos, já fazia algumas semanas que manifestações diárias de professores, estudantes e pais tomavam conta da Praça de Armas a gritar bordão muito pertinente: "corruptos son pagados! Maestros, olvidados!" A epítome desses descompassos é a simbiose entre o esplendor de Machu Picchu e o mal cheiro de Águas Calientes, estreita e densa base de apoio às hordas diárias de turistas de todo o mundo.

Os contrastes urbanos no país, ao que parece, contudo, são mais intrincados, tal a heterogeneidade das populações naquelas bandas. E se Lima tem todos os problemas de qualquer grande metrópole, sua topografia sociocultural é talvez das mais estratificadas do continente. Estão ali as marcas tradicionais da mestiçagem (impressionou-me a iconografia peruana das famigeradas "três raças" desde o século 18), da imigração chinesa, japonesa e italiana do 19, dos fluxos gigantescos da Selva e da Serra desde os anos 1950. Sem contar o imenso passado da chamada cultura Lima, do século 1 em diante, que se espalha – informam-nos os arqueólogos – por mais de 300 sítios na cidade, um milênio mais antigos que os Incas. No centro de Miraflores – um de seus distritos mais burgueses, onde está a maioria dos hotéis – fica Huaca Pucclana, um dos centros cerimoniais Lima de culto à deusa Mar, "la mar" como ainda hoje se referem os pescadores da região. No feminino: caprichosa, inquieta, imprevisível como um tsunami. Todo feito de “adobitos” sobre um promontório natural, sua estrutura sismo-resistente composta de pirâmides, terraços e praças muradas, até os anos 1980 ainda não havia sido descoberta, de certo modo integrando-se ao movimento da urbanização, seja como terra disponível a invasões seja como zona das mais disputadas pelo motocross.

O que mais chama atenção em Lima são aliás essas fissuras no espaço e no tempo, essas camadas distintas de ocupação. Certamente elas resultam dos estratos superpostos de culturas e populações que ali se estabeleceram ao longo dos séculos, Lima, Wari, Chimu, Ychsma e outras; da violenta segregação étnica implantada pelos espanhóis e bem cuidada por seus descendentes; e evidentemente da avalanche de metropolização que nas últimas décadas vem inundando a cidade de grupos das mais diversas proveniências. Mas esse intricado terreno sociocultural é também produto dos terremotos que há milênios vem sacudindo a cidade em intervalos de tempo assustadoramente curtos. É que a ruína sísmica, antecipando-se ao desígnio humano, vem definindo a modelagem e remodelagem dessa cidade como um quebra-cabeças sempre em aberto, e que vira-e-mexe tem algumas de suas peças extraviadas. Daí seu aspecto meio grotesco e até feio muitas vezes, com o que sua invariável cerração muito contribui. Essa mancha espalhada e descontínua de distritos, eles mesmos uma mistura heteróclita de retalhos mal costurados; quadras coloniais mais ou menos bem preservadas em que despontam reconstruções fake ou ainda mais apressadas e cogumelos de concreto armado; estranhos vazios, às vezes enormes, no meio de quadras densas à europeia e silhuetas urbanas desdentadas; imensas periferias nas franjas do núcleo central como Rímac, La Victoria, San Borja, San Cristobal, com suas ruas coloridas, movimentadas e esburacadas, conjuntos habitacionais mal construídos, senão mal conservados como o sensacional Matute (uma das primeiras unidades vecinales de Lima, iniciada no começo dos anos 50 pela equipe de Santiago Agurto, e complementada nos 60 por Enrique Ciriani), a informalidade em todo lado, e não somente nas apropriações da terra, a precariedade dos serviços e espaços públicos, os meios de transporte coletivo desastrosos; as urbanizações-jardim impecáveis, como em San Isidro e Miraflores, tomadas por infinitas vilas residenciais em estilo missões com seus pátios coletivos, habitações unifamiliares modernas de ótima qualidade, edifícios de apartamentos que dão notícia de um mercado imobiliário por alguma razão menos predatório que o nosso, talvez porque menos imponente, ainda que entremeadas por zonas tugurizadas; antigos balneários e vilas pesqueiras como Barranco, Magdalena e Pueblo Libre, cuja proximidade do centro não impede que guardem características sócio-espaciais muito próprias, inclusive do ponto de vista tipológico, como as casas de pátios frontais abertos à rua, as pequenas pracinhas de miolo de quadra ou as bodegas chanfradas de esquina.

Uns sobre os outros, mundos desencontrados, pedaços que não se encaixam assim tão bem, coloniais, antigos, burgueses, populares, criolos, indígenas, contemporâneos, planejados ou não, construindo-se e precipitando-se uns sobre os outros, construções sobre construções, ruínas sobre ruínas, vazios perturbadores no meio de toda aquela atividade humana, infra-humana e sobre-humana. Mesmo ao viajante brasileiro, há algo ali de estranho, irredutível ao exótico e não muito pitoresco, que embaralha o que se entende por cidade, por modernidade urbana. Senti algo parecido na cidade do México, em Roma, em Los Angeles, em Varsóvia. São cidades de fato muito diferentes mas em comum parecem sabotar toda teoria, toda imagem, todo modelo de que por ventura lancemos mão para entende-las. E é isso que as torna tão fascinantes, abertas, eternas, ainda que nem sempre belas, ou talvez de uma beleza outra, que se transforma a cada passo e nos desloca ao percorre-las, refazendo-se em nosso olhar.

Não sei o que será de Lima, de Cusco ou do Peru nos próximos anos. Diz-se que ao contrário dos países vizinhos eles estão se modernizando ano a ano, e que tal crescimento não se faz sem envolver seus dirigentes em escândalos de corrupção (todos os cinco últimos presidentes, inclusive o atual, ou estão sendo investigados ou estão na cadeia). Mas o que sei é que por lá existem forças subterrâneas em plena atividade, ainda que vigorosas tendências de superfície pareçam o tempo todo devastá-las. Talvez porque lá, como em poucos lugares do mundo, conheça-se o poder incontrastável da natureza, dos terremotos, dos tsunamis, das serpentes, dos pumas e dos condores.

Que viva el Peru!

sobre o autor

José Tavares Correia de Lira é professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas).

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