Em todas as épocas, por toda a cidade, encontramos o que há de melhor e mais interessante dos diversos momentos da produção arquitetônica e urbanística do mediterrâneo. Fenícios, romanos, cartagineses, árabes, enfim, diversos povos e culturas estiveram construindo a região por mais de 2500 anos. São centenas de edifícios de alta qualidade construídos em toda a Catalunha, desde o magistral anfiteatro romano de Tarragona até a torre Agbar de Jean Nouvel. São também relevantes as diversas propostas urbanas, do magistral Plano Cerdá no século 19 as intervenções para a Olimpíada de 1992, propostas realizadas e vizinhas ao bairro gótico e ao Raval de Barcelona.
A proposta deste texto, entretanto, visa uma outra Catalunha, tão perto de Barcelona, e com interesse tão especial. A Catalunha do Norte, que ultrapassa os Pirineus e se mistura ao longo dos tempos em diversas mudanças de controle político a antiga e, hoje francesa, Província do Roussillon. Esse território situado no departamento dos Pirineus Orientais tem a expressão fascinante de uma proposta urbana e arquitetônica que nos Pirineus tem sua sede e fonte de inspiração. Essa cadeia de montanhas, que divide por seu porte avantajado a França da Espanha, é altamente vascularizada por muitos caminhos, pontuada pelas antigas capelas que continham os murais pré-renascentistas que estão hoje no Museu Nacional de Arte da Catalunha. Esses caminhos abertos e organizados ao longo dos séculos significaram sempre um porto seguro em face aos diversos conflitos que tiveram a região como palco.
A antiga Gália Narbonense, no lado que é hoje francês, sempre se desenvolveu em consonante com a Hispânia Tarraconense. Esse território foi palco relevante das guerras púnicas. Dentre cidades extraordinárias do lado francês como Carcassonne, que dispensa explicações, restaurada que foi por Viollet-le-duc no século 19, Nimes, vizinha a Pont du Gard, ou Perpignan, que se intitula a Perpinyà la Catalana, destacamos a cidade de Collioure para explicitar essa lindíssima região. Esta cidade que tem o Palácio Real à beira mar, como referência, somente em 1659, em face ao tratado dos Pirineus, passa definitivamente a jurisdição francesa.
O atual lado espanhol dos Pirineus tem cidades com castelos fortificados e pontes de dimensões as mais diversas. Destacamos Castellfollit de la Roca e Sant Jaume de Llierca. Nesta região dominada pela paisagem da montanha a cidade de Besalu, que no passado foi imponente sede do ducado de Besalu, apresenta interesse maior para arquitetos e urbanistas devido a peculiaridade de edifícios e situações urbanas que compõem a cidade.
Collioure e Besalu distam, por automóvel, 75 minutos entre si e cerca de 90 minutos de Barcelona. São cidades especialíssimas. Em tudo antagônicas, similares somente pela beleza. Enquanto Collioure se estabelece em privilegiada beira mar, alredor de um magnifico castelo real que serviu de fortaleza durante séculos, sendo porto relevante de comercio e defesa, Besalu está à beira do rio Fluviá, situação geográfica que a justifica e a enriquece, tendo em decorrência uma ponte de expressão invulgar. Besalu é, ao longo dos tempos, ponto de passagem relevante, e torna-se importante cidade comercial e capital do condado medieval de Besalu. Ambas as cidades apresentam monumentos arquitetônicos de primeira grandeza.
Comecemos pela cidade de Collioure. Com população estimada em pouco mais de 3000 pessoas, a cidade é mencionada em documentos históricos desde o século VI, quando se inicia os trabalhos para a construção do castelo real de reis visigodos, na ocupação pós-romana da região. O castelo de aparência soberba é vigiado a montante por diversos fortes que oferecem uma vista linda para a baia. Destaque para o fort Carré e o Fort Rond. O Castelo Real foi sendo construído em diversas etapas ao longo dos séculos. Teve seus momentos mais relevantes quando serviu de sede para os reis de Mallorca no século 14 e para os Habsburgos no século 15 e 16. Foi utilizado como palácio de verão pelos Bourbon no século 17. Nos dias atuais o palácio é aberto à visitação e recebe exposições temporárias e concertos em seus salões.
A muralha, extravagante pelas dimensões, chega diretamente às ondas do mediterrâneo, situação incomum nas cidades praianas europeias de modo geral. O mais comum é o castelo-fortaleza estabelecer-se em promontório elevado. O impacto visual dessa muralha que penetra nas águas é tremendo. O castelo, por sua originalidade, acaba por determinar também a implantação urbana original e mais antiga da cidade, desenvolvendo-se ao seu alredor, espraiando-se por morrotes lindeiros. Ao pé da fortaleza, foi construída uma interessante calçada de pedras, que, interliga as duas pequenas praias que envolvem a fortaleza, e constitui uma agradabilíssima composição visual. O passeio permite um usufruto direto das aguas, visto que a topografia e o volume do castelo produzem natural e eficaz proteção contra os ventos. Vale lembrar que esta paisagem está banhada por aguas claras e límpidas.
Próximo ao Castelo real está a Igreja de Notre Dame des Angers. Finalizada por volta de 1680, tem como destaque interessante o campanário de matiz medieval. Compõe de modo interessantíssimo a orla da cidade na qual as duas pequenas baías são separadas por edifícios de tal relevância. Da cidade antiga destaca-se o bairro de Morè, ocupado desde sempre por pescadores. É onde hoje se concentram os turistas que visitam a cidade, em busca da atmosfera que encantou a Matisse e aos pintores do movimento Fauve como Raoul Dufy, Vlaminck e George Rouault.
O complexo processo de restauro do edifício fortaleza colocou em segundo plano o cuidado e a precisão do restauro da cidade propriamente dita. O projeto de restauro do castelo real guardou distância e aprofundou o espirito crítico em relação às decisões projetais adotadas em Carcassonne. Em Collioure, a intervenção e restauro no grande edifício do palácio é discreta e procura não se sobrepor ao edifício existente, enquanto em Carcassonne, o excesso da intervenção tem produzido desapontamentos ao observador mais exigente.
Collioure é também a cidade onde está enterrado o poeta espanhol Antonio Machado, autor do poema Caminante, do qual o excerto “Caminante, no hay camino, se hace el camino al andar”, é poema muitas vezes citado por arquitetos para definir o difícil trajeto do fazer arquitetônico.
As ruas e as soluções de agenciamento dos espaços públicos não têm em Collioure o cuidado e a maestria que encontraremos em Besalu. Esta cidade situada na Catalunha espanhola, no lado sul dos Pirineus, é ligada historicamente a região denominada de Garrotxa. Besalu se destaca e se justifica em função de sua posição privilegiada em ponto de travessia do rio Fluviá.
Situada no topo de conjunto de montanhas, Besalu se destaca logo na chegada da cidade, com uma ponte edificada em pedra, originária de antiga ponte romana e transformada ao longo dos séculos em edifício de transposição e defesa.
O antigo acesso a cidade se faz por dois arcos, na entrada e na saída da laje de transposição, um deles com porta gradeada de ferro. A ponte que era pedagiada na idade média foi fortemente destruída na guerra civil espanhola.
Ultrapassando a segunda porta, adentramos no espaço urbano da cidade propriamente dito. Esse acesso monumental nos coloca em preciosa cidade de desenho medieval com ruas ao longo dos níveis estabelecidos pela topografia e largura suficiente para carroça tracionada por bois. A cada 150 metros, um pequeno largo complementa a proposta de mobilidade dessas antigas cidades.
Em Besalu, o restauro da cidade em termos urbanísticos é impressionante. Cada detalhe foi visto e rearranjado, com maestria tal que a eficiência do novo não compromete a beleza e a originalidade do desenho secular. Pavimentos, rodapés, tomadas de agua para drenagem superficial, escadas, corrimãos, poços de visita da infraestrutura urbana, tudo está discretamente presente. Ainda assim, a eficiência do conjunto está claramente garantida, principalmente pela correção da leitura das várias escalas d a cidade e dos ajustes que ligam níveis e patamares sem perda de continuidade urbana. O projeto do desenho urbano, em caráter de restauro, realizado na cidade de Besalu, é absolutamente imperdível para arquitetos e urbanistas. Em função da dimensão e da qualidade final apresentada, Besalu está entre os melhores projetos de restauro em desenho urbano. Lembra, em certos momentos, a proposta executada por Gonçalo Byrne em Alcobaça (Portugal), magnifica, com uma proximidade de elementos tal qual encontramos em Besalu.
Um ponto interessantíssimo é que embora o plano da cidade seja prevalente no projeto, em nada o edifício é prejudicado. Emolduram com suas devidas relevâncias as passagens, ruas e vielas da cidade. Na praça central está a igreja maior denominada de Igreja de Sant Pere. Esta igreja que teve sua construção iniciada em 1003, com forte desenho românico, recebeu adições ao longo dos séculos e organiza ainda hoje o espaço central da cidade. Essa igreja de aparente simplicidade formal reúne os traços originais das igrejas da Catalunha e direciona de modo surpreendente os caminhos de chegada e saída da cidade. Vale lembrar que a própria catedral de Barcelona, em tamanho muito maior, e antes das modificações realizadas no princípio do século 20, tinha um desenho em muito semelhante à igreja de Besalu.
Outra igreja interessantíssima é a de Sant Vicenç, situado a pouco mais de 200 metros da Praça Maior da cidade. Esta igreja edificada em estilo românico tem capitéis e volutas muito trabalhadas nos detalhes da fachada. Foi construída no século XII em estrutura iniciada em 977 segundo documentos da municipalidade. A igreja se destaca pelo desenho em três naves com cruzeiro e três absides semicirculares. A diferença de altura entre a nave principal e as duas naves laterais causam um efeito visual e espacial muito interessante, garantindo uma luz inusitada em função da inclinação da luz solar. Recebeu uma restauração importante na medida em que, em face de um incêndio, pode retornar a seu desenho simples e despojado que é onde está a maior qualidade desse edifício.
Seja na monumental implantação do castelo real em Collioure, na delicadeza do restauro na cidade de Besalu, na expressiva ponte de transposição do rio Fluviá em Besalu e, culminando com a corretíssima expansão da cidade de Collioure pelos morrotes lindeiros, encontramos nas duas cidades interessante equilíbrio entre a resiliência de espaços urbanos seculares com o ritmo e as demandas da vida contemporânea. Os diversos restauros realizados refletem também um equilíbrio difícil de ser alcançado, entre a profundidade da intervenção e os resultados pretendidos. Em Besalu a intervenção é mais visível e os resultados são mais aparentes. Entretanto, a qualidade do espaço inicial e a sobriedade da intervenção garantiu a correta manutenção do desenho e das soluções de infraestrutura originais. Em Collioure, a intervenção se concentra nos edifícios, que se destacam fortemente dos traçados e das infraestruturas urbanas existentes. Em algumas ruas e praças o desenho anterior está perfeitamente estabelecido e a proposta de intervenção quase que somente viabiliza para o uso contemporâneo esses logradouros. O que se verifica é que está na expressão de uma arquitetura e urbanismo de muita qualidade o elo que une as duas cidades.
sobre o autor
Antonio Claudio Pinto da Fonseca, arquiteto formado pela FAU USP em 1976, com doutorado pela FAU USP em 2004. Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie desde 2000, lecionou também na FAU Santos e na FAU BASP. Membro do Núcleo de Apoio a Pesquisa Projeto e Leitura do Ambiente Construído da FAU USP até 2016, foi membro de seu núcleo cientifico. Publicou entre outros, o livro A promoção imobiliária e a construção da cidade, sua tese de doutorado, publicação realizada pela FAU USP. Exerce a atividade de arquiteto com escritório próprio e em outros escritórios em São Paulo desde 1977, tendo trabalhado no Rio de Janeiro no escritório do arquiteto Sérgio Bernardes.