Logo após a defesa de minha tese de doutorado, realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 25 de abril de 2017, Julio Labronici, um amigo de longa data, me convidou para viajar por territórios da antiga “capitania” de São Paulo no intuito de refletir sobre semelhanças e diferenças, percebidas visual e materialmente, entre os espaços e as paisagens que percorreríamos com os dos sertões das capitanias do Norte, objeto especulativo da minha tese. Esses sertões sempre me foram muito caros, não apenas por motivos heurísticos óbvios, mas por ter sido ali o lugar de meu nascimento. Entretanto, eu necessitava conhecer outros “sertões”, os das repartições do Sul, os quais, adicionados aos do Norte, somam a maior parcela do território nacional. Além disso, a possibilidade de conhecer novos espaços treinaria meu olhar de arquiteto preocupado em verificar as idiossincrasias culturais refletidas na paisagem.
Com efeito, essa viagem calhou muito bem! Enquanto que Julio conhecia muitos das cidades visitadas, eu me limitava a quatro – Paranaguá, Antonina, Morretes e Curitiba –, todas essas fundadas no período colonial e portadoras de patrimônios arquitetônicos e urbanísticos tombados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan. As paisagens que se descortinavam diante de meus olhos eram, em certa medida, novidades, como a Itália para o “renascido” Goethe ou como a caatinga para o naturalista inglês Henry Koster. Cada qual, em sua particularidade, expressa um Brasil híbrido e heterogêneo, singular, mesmo que alguns pretendam forçosamente “estrangeirizá-lo”. Antes de iniciar a narrativa da viagem propriamente dita, convém mencionar que nem todos municípios serão descritos no texto. Privilegiam-se, portanto, as localidades que preservam em seus cascos viejos exemplares da arquitetura dos séculos 18 e 19; aquelas que estejam situadas em roteiros gastronômicos e paisagens naturais (o termo é bastante problemático, mas não cabe aqui elucida-lo) que propiciaram a contemplação da natureza enquanto natureza.
A viagem iniciou em 21 de junho com término em 8 de julho. Foram mais de 3.000 quilômetros percorridos por um automóvel da marca Peugeot em estradas nacionais e estaduais. Preferimos as estradas estaduais em virtude do caráter fotográfico que gostaríamos de imprimir em nossas experiências apreendidas em diferentes escalas, desde a urbana à territorial. O trajeto começou na cidade de São Paulo em direção ao município paranaense de Morretes via estrada da Graciosa. Como estivemos em Morretes, a estadia funcionou como pouso, pois o nosso objetivo se concentrava em conhecer os remanescentes da arquitetura colonial e do século XIX na cidade patrimonial de São Francisco do Sul, situada no litoral catarinense. O designativo geográfico “sul”, adicionado ao topônimo São Francisco, servia, no período colonial, para distinguir essa povoação de outras vilas também nomeadas de São Francisco, tais como São Francisco do Conde, situada no Recôncavo Baiano, ou São Francisco da Barra do Rio Grande do Sul, freguesia criada, em 1697, no antigo bispado de Pernambuco.
Chegamos em São Francisco do Sul por volta das 15h do dia 22 de junho. De acordo com informações tomadas no centro de apoio ao turista, em meados do século 17 já existia uma capela que seria, anos mais tarde, convertida em sede de paróquia. Em 1660, São Francisco do Sul tornou-se oficialmente vila, portando em sua praça o pelourinho e a casa de câmara e cadeia, símbolos de autonomia administrativa e política. No atual centro histórico, tombado pelo Iphan em 1987, pouco resta da arquitetura colonial. Destacam-se os belos sobrados e moradias nos estilos neoclássico e eclético, alguns dos quais construídos entre meados e finais do Oitocentos. Além do patrimônio edificado – alguns em ruína, como o pequeno convento franciscano erigido no cume de um promontório –, o lugar impressiona por sua beleza natural. Sem dúvida, a baía da Babitonga e o conjunto arquitetônico formado por exemplares de diferentes cronologias, oferecem ao turista agradáveis experiências visuais e sentimentais.
Partimos de São Francisco do Sul dia 24 de junho. A capital catarinense era o nosso objetivo. Chegamos em Florianópolis, antiga vila de Nossa Senhora do Desterro, na mesma data à noite. As atividades turísticas e de percepção do espaço e da paisagem foram devotadas ao outro dia. Inicialmente, caminhos pelo centro da cidade, onde nos deparamos com largos e praças projetados no início do século 20 após sucessivos aterramentos. Uma parada no mercado municipal era obrigatória. Sons diversos, sabores e cheiros tornam o mercado espaço de diferentes experiências sensoriais, em especial para aqueles que decidiram ficar por ali algumas horas sentados em seu átrio principal. No final da tarde, acompanhamos o pôr do sol no bairro de Santo Antônio de Lisboa, um dos lugares de povoamento açoriano da ilha de Florianópolis. Nessa localidade foi erguida a pitoresca igreja de Nossa Senhora das Necessidades, seguida de casario alinhado à rua. Desde o adro do templo é possível avistar a baía Norte com seus barcos que evocam o uso da água para fins utilitários, notadamente turísticos e econômicos. Além de Santo Antônio de Lisboa, circulamos nesse mesmo dia em Lagoa da Conceição, Joaquina e Ingleses. A paisagem natural e urbana de Florianópolis e dos bairros situados à volta da Lagoa da Conceição impressionaram-nos, ensejando a vontade de retorno, pois agora nossos pensamentos estavam voltados à “vila” de Laguna.
Laguna, assim como os demais municípios antes narrados, surgiu no período colonial, guardando em seu casco antiguo remanescentes arquitetônicos daquela época; sem esquecer que o traçado das ruas resultou da ligação entre a praça da igreja matriz e o largo da casa de câmara e cadeia, isto é, a união entre dois espaços simbólicos do mundo barroco: a religião e a justiça, o sagrado e a lei, duas instâncias notadamente presentes na definição da forma urbis de vilas e cidades coloniais. Aportamos num domingo ensolarado. Os espaços públicos estavam praticamente vazios, bom para a fotografia que privilegia a arquitetura e o cenário urbano como “modelos” pictóricos. Ruim para a cidade que necessita de vida, ainda que em forma de conflito, para configurar-se verdadeiramente como “cidade”. O primeiro edifício visitado foi justamente a antiga câmara, hoje sede do Museu Histórico Anita Garibaldi. A construção atual se trata de um acréscimo feito na antiga cadeia em meados do século 19. O acervo do piso superior do museu é bem variado, portando objetos pessoais e oficiais de períodos diversos, como certos cartazes trazidos da Itália que celebram as conquistas armadas de Giuseppe Garibaldi e figuras que condecoram os feitos históricos da República Juliana. Saímos do museu pela antiga rua Direita em direção à igreja matriz, a qual, depois de uma pequena caminhada, aparece destacada em sua praça, “solta”, sem nenhuma edificação que desafie sua posição e hierarquia territoriais. Aliás, o viajante que decide visitar qualquer cidade histórica no Brasil depara-se com experiências espaciais variadas, como o caminhar por ruas estreitas, às vezes claustrofóbicas, e maravilhar-se com a dimensão das praças e largos, comumente o núcleo originário da povoação.
A passagem por Laguna foi bastante rápida, ficamos algumas horas voltados exclusivamente para analisar o urbanismo e a arquitetura dos séculos 18 e 19. A rapidez da visita diz muito sobre a nossa próxima meta turística: chegar em Cambará do Sul, via estrada da Serra do rio do Rastro, para conhecer os famosos cânions do Sul. Aqui, nossa viagem alvejava outros objetos de contemplação: até Laguna buscávamos as cidades de origem colonial; a partir dos cânions pretendíamos experimentar as sensações oriundas da paisagem natural e os sabores da culinária e dos vinhos produzidos no Caminhos de Pedras e no Vale dos Vinhedos, ambos os roteiros localizados no município de Bento Gonçalves RS.
Para chegar a Cambará do Sul RS, a partir de São Joaquim SC, optamos trafegar por uma rodovia estadual não asfaltada, a RS-020. Levamos cerca de 4 horas para percorrer os 114 km que separam as duas cidades. Mas isso não nos importunou; pelo contrário, avistamos lugares onde a natureza é pródiga em beleza. O rio Pelotas, uma das fronteiras geopolíticas dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, possuí uma das águas mais cristalinas já vistas, além de serpentear uma área de mata provida de inúmeras araucárias, a árvore símbolo da região sul do País.
Nosso turismo na pequena Cambará do Sul dizia respeito justamente em observar a grandiosidade dos cânions que sublimam aquela parte do Brasil. Fizemos o check-in na pousada ao entardecer, por isso foi impossível percorrer os cânions naquele dia por recomendação da funcionária do centro de informações turísticas. Entretanto, o espetáculo das cores do crepúsculo de Cambará aumentava o interesse de trilhar os caminhos que ladeiam os penhascos. E assim fizemos! Os cânions dessa região podem, resumidamente, serem agrupados em dois – o do Itaibezinho e o da Fortaleza. Primeiramente, nos dirigimos ao Itaibezinho, onde palmilhamos cerca de 3 km no meio da mata e tiramos nossas impressões daquele cenário. O Itaibezinho apresenta roteiros mais seguros, possuindo guarda-corpos que separam o visitante da beira dos cânions, diferentemente do Fortaleza onde a atenção do visitante deve ser redobrada. Aliás, sensações de acrofobia são comuns aos mais cautelosos.
Deixamos a bela região dos cânions para trás com o intuito de conhecer o Vale dos Vinhedos, área do município de Bento Gonçalves que atrai centenas de turistas todos os dias interessados em degustar os vinhos produzidos em prestigiadas vinícolas. O vale está pontuado por fábricas, hotéis e parreirais de uvas de diferentes qualidades. Não visitamos todas as vinícolas. Preferimos apreciar os vinhos “puristas” da vinícola Lídio Carraro, onde fomos bem atendidos pela guia que nos explicou os processos de cultivo das uvas e a fabricação dos vinhos. Dalí, partimos para o Caminho de Pedras, itinerário gastronômico voltado especialmente para a culinária italiana. Ao longo do trajeto é possível avistar casas construídas no final do século 19 por imigrantes da Itália, cujos partidos arquitetônicos adaptam a moradia de seu país de origem à realidade brasileira.
Em Bento Gonçalves planejamos o nosso retorno para São Paulo, quais rodovias trafegar e quais paisagens apreciar. Como estávamos próximos de Porto Alegre, aproveitamos o trajeto da volta para descansar ali por dois dias. Depois dessa parada, encaminhamo-nos para a cidade de Viamão, cuja origem remonta também ao período colonial. A igreja matriz do município e a forma da praça à sua volta são os únicos vestígios materiais que evocam o mundo barroco. Doravante, visitamos Torres RS, novamente Florianópolis e Curitiba. Já no estado de São Paulo escolhemos pernoitar na agradável Iguape, localidade portadora de uma grande praça rodeada de casas e sobrados remanescentes do século 18, como a antiga Casa de Fundição, edificação construída para fiscalizar o ouro encontrado na capitania de São Paulo. Iguape nos impressionou. Tínhamos uma vaga ideia sobre o patrimônio tombado da cidade. No entanto, o conjunto arquitetônico e sua escala urbana denunciam uma vila com vínculos econômicos e sociais bastante alargados. De fato, a Iguape colonial não isolada com o restante do território, assim como preconiza a historiografia brasileira baseada na inércia socioeconômica da América portuguesa.
Chegamos em São Paulo dia 8 de julho renovados pelas sensações adquiridas nessa marcante viagem. Sem dúvida alguma, o itinerário escolhido testemunhou um palimpsesto de sensações circunscrito em formas, tempos e sabores que ressignificaram a experiência e memória dos viajantes.
sobre o autor
Esdras Araujo Arraes é arquiteto e urbanista pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP. Atualmente é pesquisador de pós-doutorado em Estética na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH-USP.