Neste artigo, escrito sob a forma de ensaio iluminado pelos conceitos e métodos da geografia humanista, é feita análise do sentido de lugar imbuído nas Caminhadas Noturnas no Centro Histórico Paulistano como ação política desenvolvida para recuperação e manutenção dos aspectos simbólicos e construídos do velho Centrão. Primeiro, apresentamos parte de sua historicidade, com o intuito de contextualizar os motivadores e os propósitos da Caminhada Noturna. Em seguida, apresentamos relato de nossa própria experiência, quando, em setembro de 2011, conduzimos o grupo da Caminhada Noturna até o lugar de nossa tese de doutoramento em geografia: o Pateo do Collegio (1). Ao final, espera-se que a ação de caminhar pelo centro seja compreendida e reconhecida como uma vigorosa conduta de respeito e proteção ao lugar.
As Caminhadas Noturnas acontecem desde 2005, sendo coordenadas por Carlos Beutel, proprietário de um restaurante vegetariano que fica próximo à Praça da República (2). No balcão do caixa, onde o próprio Carlos recepciona e se despede de seus clientes, ficam diversos panfletos. Dentre eles, o anúncio em preto e branco da Caminhada Noturna. Na parede, diversos recortes de jornal divulgando e comentando sobre esse programa. Vários depoimentos registrados pela imprensa.
Estive no restaurante pela primeira vez em meados de 2010, época em que estava burilando projeto de pesquisa para ingresso na pós-graduação em geografia. Na época, meu interesse era explorar, pela ótica da experiência, o sentido de lugar e a afeição por um local específico desse mesmo Centro Histórico. De imediato, quis conhecer melhor as Caminhadas Noturnas, mas, também tive vontade de falar sobre minhas preocupações com o lugar, mencionando, ainda, o anseio por colaborar com o projeto porque, para mim, o Centrão também é um lugar.
Aliás, lugar é uma palavra curiosa porque, no uso corriqueiro, serve para designar localização ou espaço, a exemplo das seguintes frases que aparecem em diálogos informais, tais como “depois de usar, guarde o brinquedo no seu lugar”, ou “venha, que ainda tem lugar no ônibus”, ou mesmo, “vamos comer em algum lugar diferente”. Geograficamente, no entanto, lugar não se refere somente à localização das coisas ou a um espaço vazio ou a um local onde desenvolvemos nossas ações. Isso porque LUGAR é um conceito fundamental para compreender as relações culturais que nele se desenvolvem. Quando analisado pela ótica da geografia humanista, lugar é compreendido como um centro de significados para as pessoas. Sob esse prisma, identificar e reconhecer um lugar não são tarefas simples, como podemos apreender dessa longa passagem do trabalho de Tuan:
“Os lugares humanos variam grandemente em tamanho. Uma poltrona perto da lareira é um lugar, mas também o é um estado-nação. Pequenos lugares podem ser conhecidos através da experiência direta incluindo o sentido íntimo de cheirar e tocar. Uma grande região, tal como a do estado-nação, está além da experiência direta da maioria das pessoas, mas pode ser transformada em lugar - uma localização de lealdade apaixonada - através do meio simbólico da arte, da educação e da política. Como um mero espaço se torna um lugar intensamente humano é uma tarefa para o geógrafo humanista; para tanto, ele apela a interesses distintamente humanísticos, como a natureza da experiência, a qualidade da ligação emocional aos objetos físicos, as funções dos conceitos e símbolos na criação da identidade do lugar” (3).
De acordo com essa citação, um lugar pode ser entendido como a poltrona favorita que descansa o corpo, assim como pode ser um território amplo, que não se conhece na totalidade, mas que se adora e defende como é o caso do estado-nação. Nada obstante, um lugar também pode ser a casa da infância, uma praça, um cômodo, e o Centro Histórico de São Paulo. Isso porque é a experiência cotidiana que possibilita o sentido do lugar, ou seja, é a paz, o descanso e o calor vividos ali na poltrona que constroem o sentido desse lugar; mas, também, os conteúdos simbólicos, como a bandeira e o hino nacional, tornam-se tão fortes quanto à própria experiência na criação do sentido do lugar, no caso de uma nação como lugar. Nessa extensa citação, ainda, vimos ideias fundamentais sobre o conceito de lugar, e o esclarecimento, por meio dos exemplos apresentados, de que um lugar é algo muito pessoal, mesmo quando compartilhado. Sob essa ótica, um lugar é muito mais emocional que concreto; muito mais simbólico que material.
Assim, não tardou para que, depois de algumas conversas sobre esse sentido de afeição pelo lugar, fosse feito o convite para que guiássemos o grupo da Caminhada Noturna até o lugar de minha tese, que é o Pateo do Collegio. Essa caminha específica aconteceu no dia 15 de setembro de 2011.
Nesse dia, cheguei no local de encontro da Caminhada alguns minutos mais cedo, o Teatro Municipal, o que possibilitou admirar, com calma, a imagem noturna dessa construção que acabara de ser reformada, em homenagem ao seu centenário. Além disso, as escadarias do acesso principal do Teatro oferecem linda visão do Viaduto do Chá e do trabalho de recuperação do antigo edifício da Light, que ganhou nova funcionalidade como Shopping Center, no ano de 1999. Perto das 20 horas, foram chegando as pessoas de colete amarelo com o logo da Caminhada Noturna, trazendo sua bandeira-guia, um carrinho de som com microfone e um cãozinho como mascote. Logo, pessoas foram chegando e se reunindo no entorno da bandeira. Alguns eram frequentadores habituais do passeio. Outros, turistas, curiosos e estudantes de arquitetura. Ainda, uma caravana veio de longe, da extrema zona sul de São Paulo, trazendo aproximadamente 40 alunos da educação de jovens e adultos para conhecerem o centro.
Carlos Beutel ligou a caixa de som e o microfone exatamente às 20 horas. Como algumas palavras iniciais de boas-vindas aos participantes da Caminhada Noturna, apresentou o roteiro da noite, reproduzido no croqui abaixo: (a) do Teatro Municipal até (b) a Biblioteca Municipal Mario de Andrade, recém-inaugurada; depois até (c) a Câmara Municipal, no viaduto Jacareí, por conta da votação do processo de tombamento da fachada do Cine Belas Artes (na esquina da Paulista com a Consolação), seguindo pela Rua Maria Paula até (d) a Praça da Sé; posteriormente até (e) o Pateo do Collegio, onde seria compartilhada parte de sua historiografia e simbologia para a cidade de São Paulo; finalmente regressando ao Teatro...
No horário combinado, o grupo começou a marcha sentido a Praça Dom José Gaspar, onde está localizada a Biblioteca Municipal Mário de Andrade. Logo chegamos no primeiro ponto de parada da noite, em frente à biblioteca renovada e reaberta ao público no início do ano. A parada foi motivada pela presença dos estudantes vindos do sul da cidade, como forma de lhes apresentar a biblioteca central da cidade. A caminhada seguiu até a Câmara Municipal, localizada pouco depois do Viaduto Nove de Julho, no Viaduto Jacareí. Essa visita não era propriamente parte do trajeto, mas um fortuito acaso que exigia a presença dos responsáveis por essa ação política defensora do centro (que é a defesa da própria cidade), que também se mobilizara em defesa ao tombamento do Cine Belas Artes. Foi uma pausa muito rápida e necessária porque, ao mesmo tempo em que a votação pelo tombamento carecia desse suporte, nos desviava dos objetivos da Caminhada daquela noite. Assim, subimos quase que de um único fôlego a Rua Maria Paula, em direção à Praça da Sé – Na ocasião, o tombamento foi negado.
Nesse momento, escuto algo que dá amplitude teórica ao sentido de lugar: Carlos diz que começou e mantém as Caminhadas não por amor ao Centrão, como todos pensam, mas, por amor ao lugar onde vive e trabalha. Segundo Tuan (4), isso é topofilia, ou seja, um “elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito, vívido e concreto como experiência pessoal”. O que observamos, portanto, é que seus esforços direcionados à preservação e melhorias são, em verdade, atos de gratidão e respeito ao lugar que habita. Essas explicações esclareciam o cultivo ao habitar (dwelling) que aparece nas reflexões de Heidegger (5), compreendendo o sentido do habitar para além de apenas morar ou residir, porque envolve todo o ser: corpo, mente e espírito. A essência desse cultivo, explica esse autor, é a preservação da própria vida, porque o sentido de habitar um lugar equivale à profunda conexão entre matéria e espírito, tornando mais ricas as experiências terrestres. Lições importantes eram aprendidas nessa ação de caminhar pelo centro, tanto em termos políticos quanto filosóficos.
Na Praça da Sé, pausa necessária para admirar a Catedral e observar o pequeno monumento chamado Marco Zero. Não demoramos na Sé e, prontamente, tomamos sentido norte até a Rua XV de Novembro. Paramos onde essa rua cruza com a Rua Direita, pois os membros mais experientes da Caminhada recomendaram chegar até o Pateo do Collegio contornando o edifício do Tribunal de Justiça até a Praça Manoel da Nóbrega. Não concordei, pois queria sentir o lugar pelo caminho da pequena travessa da Rua Anchieta, flagrado na fotografia abaixo.
De imediato, compreendi que os conselhos sobre o trajeto sugerido tinham fundamento porque, antes de entrarmos na escura travessa, o grupo subitamente freou. Talvez por medo da falta de iluminação ou porque essa pequena rua seja o dormitório de dezenas de pessoas... (6) Esse sentimento de pavor provocado pelo lugar, no oposto da topofilia, é a topofobia, que foi vencida pelo grupo depois que todos foram convidados a caminhar até o Pateo do Collegio.
Já no largo do Pateo do Collegio, o grupo se dispôs em círculo, ao meu redor, pronto para ouvir um pouco sobre esse lugar, como visto, parcialmente, na foto abaixo.
A conversa foi em tom afetivo porque, além de mencionar a importância do lugar como local de fundação oficial da cidade de São Paulo, no dia 25 de janeiro de 1554 pelos jesuítas Nóbrega, Paiva e Anchieta, e de comentar sobre sua historiografia, falamos bastante sobre seus sentidos simbólico, mas, especialmente, pela estima com que olho para o lugar, antecipando parte da tríplice subjetiva-coletiva-ontológica que ancoraria o desenvolvimento de tese de doutorado sobre esse lugar tão especial e simbólico para a cidade de São Paulo. Apesar de muito poder (e querer) falar sobre o lugar, esse momento foi deixado para os desdobramentos da tese (7). Assim, não foi uma confabulação longa, afinal, já havíamos percorrido quase dois quilômetros e meio, e outros mil metros ainda nos aguardavam até o retorno ao ponto final da Caminhada.
Em seguida, tomamos a Rua Direita, direto, passando pela Praça do Patriarca e o Viaduto do Chá, conversando com alguns participantes da caminhada a respeito de curiosidades e inquietações que emergiram a partir do que havia sido compartilhado sobre o lugar, até alcançarmos nosso destino: as escadarias do Teatro Municipal. Ao final, fica a esperança de que o sentido político-afetivo das Caminhadas, lastreadas pelo afeto ao lugar de seus organizadores, se propague para todos que frequentam e usam o Centrão. Mais ainda, que esse sentido de lugar seja compreendido cada vez mais por todos, sendo irradiado para todos os locais.
notas
1
FORTUNATO, Ivan. Pateo do Collegio: um lugar na cidade de São Paulo. Tese de doutorado. Rio Claro, Instituto de Geociências e Ciências Exatas Unesp, 2014. Esta tese jamais teria sido concluída, não fosse dedicação de Lívia de Oliveira que, com amor à geografia, me ensinou a namorar o lugar. Lívia foi minha orientadora e é professora emérita da Unesp/Rio Claro.
2
FORTUNATO, Ivan. Passeio como ação política de proteção ao lugar. As Caminhadas Noturnas no Centro Histórico de São Paulo. Arquiteturismo, São Paulo, ano 11, n. 124.02, Vitruvius, jul. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/11.124/6600>.
3
TUAN, Yi-Fu. Geografia humanística. Tradução de Maria Helena Queiroz. In: CHRISTOFOLETTI, A. (org.) Perspectivas da geografia. 2ª edição. São Paulo, Difusão Europeia do Livro, 1985, p. 149-150.
4
TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar..., p. 5.
5
HEIDEGGER, Martin. Building Dwelling Thinking. Poetry, Language, Thought. Tradução Albert Hofstadter. Nova York, Harper Colophon Books, 1971, p. 141-160.
6
Ao longo da caminhada, o grupo percebeu que o Centrão é lugar de muitas pessoas abandonadas que, nas suas praças e calçadões constroem lares provisórios. A Caminhada não ignora este problema – que se repete em várias cidades grandes, como visto em d’Arc (op. cit.), por exemplo – mas não trata de se reunir para revelar às pessoas essa falha do poder público em dar condições dignas de vida à quem não tem casa. Dessa forma, a caminhada ajuda a revelar que o Centrão não é um lugar perigoso, mas um lugar que acolhe até mesmo quem não tem lar, na esperança de sensibilizar para mudança.
7
FORTUNATO, Ivan. Memórias do Pateo do Collegio como lugar pioneiro da educação paulistana. Cadernos do CEOM, Unochapecó, 2016; FORTUNATO, Ivan. Historicidade e geograficidade do Pateo do Collegio, coração do centro histórico de São Paulo. Coletânea (Rio de Janeiro), 2015.
sobre o autor
Ivan Fortunato é pós-doutorado em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. Doutor em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Rio Claro. Coordenador do Núcleo de Estudos Transdisciplinares: Ensino, Ciência, Cultura e Ambiente (NuTECCA). Líder do Grupo de Pesquisas Formação de Professores para o Ensino básico, técnico, tecnológico e superior (FoPeTec). Pesquisador do Laboratório de Estudos do Lazer (LEL). Editor da Revista Hipótese e coeditor da Revista Internacional de Formação de Professores e da Revista Brasileira de Iniciação Científica. Membro da Academia Itapetiningana de Letras, cadeira 27, e do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapetininga (IHGGI), cadeira 37. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCAr, Sorocaba. Professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade na Gestão Ambiental, da UFSCAr, Sorocaba. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais – UFABC. Professor em regime de dedicação exclusiva do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus de Itapetininga.