Seria uma sexta feira bem normal. Porém um raro acontecimento transfigurou a Cidade Maravilhosa de tal forma, como só fora visto antes em dezembro de 1976. Foi quando levas e levas de corintianos invadiram o Rio, para assistir no velho Maracanã a disputa da semifinal do Campeonato Brasileiro contra o Fluminense.
Neste dia, 18 de outubro de 2019, quando o escritor Ignácio de Loyola Brandão seria empossado na Academia Brasileira de Letras como o novo imortal (1), na sua Araraquara a data estaria sendo celebrada como o maior feito de um ilustre cidadão e, por extensão, da cidade.
A comoção, o prazer, a reverência foi tanta, que ao evento, marcado com meses de antecedência, todos quiseram comparecer ao vivo, na sede da Academia, na cidade do Rio de Janeiro, aliás, o maior desejo de viagem de todos os brasileiros.
Nos dias que antecederam ao grande momento, uma movimentação descomunal ocorreu na Morada do Sol, quando todos os araraquarenses, de qualquer classe social e faixa etária, foram embarcando nos meios possíveis de deslocamento para um único destino. Fretamentos de ônibus e aviões, todos os tipos de carros e até comboios especiais de trens, honrando as origens da cidade, entupiam as saídas rodoviárias, ferroviárias e aéreas do município, ninguém queria perder a festa.
Sem combinação prévia, a cidade se esvaziou totalmente. Os doentes ficaram por sua própria conta, os animais vagando pelas ruas em busca de alimentos, a penitenciária bem calma até, ficou trancada por fora e sem guardas, tudo num silêncio absoluto, só rompido pela reverberação do som, nas horas cheias, do antigo relógio da fábrica de meias, na urbe fantasma.
Enquanto amigos e convidados se engalanavam para ver o novo imortal de Fardão, as turbas araraquarenses se dirigiram antes ao Calçadão de Copacabana, primeiro só pra avistar o mar, que muitos nem conheciam, depois para pisar na areia e finalmente adentrar o Atlântico. O fascínio por esta monumental força da natureza foi tamanho que os conterrâneos de Brandão ficaram nas areias iluminadas até cerca da meia noite, quando começaram calmamente a se dirigir aos seus meios de transporte e voltar para casa, felicíssimos por terem participado da grande homenagem ao imortal patrício, muito atentamente, pelas mídias sociais.
Vale salientar que as acanhadas salas da Academia Brasileira de Letras, no centro da cidade, ficaram apinhadas de gente, e Ignácio brilhou!
A cerimônia, cumprindo todos os tradicionalíssimos rituais, foi esplêndida, e Brandão bradou firme e com todas as letras em defesa das nossas liberdades.
notas
NA – Crônica rascunhada em 19 de outubro de 2019 e concluída em 21 de junho de 2020. Após a leitura do texto, Ignácio comentou o seguinte: “Dizem que por séculos vai se falar no grande êxodo de araraquarenses. Muitos nem sequer voltaram à terra natal. Outros que assistiram dezenas de vezes Os Dez Mandamentos no cine Odeon, ficaram à mar, esperando que as águas do oceano se abrissem e eles pudessem caminhar até a Europa, conhecer Portugal, Paris, Roma, Gibraltar. Por que Gibraltar, não se sabe. Este é um dos mistérios da cidade. O que se sabe é que passados quase dez meses, ainda há araraquarense em fila diante da Academia, esperando a hora de cumprimentar o novel Acadêmico”.
1
Ignácio de Loyola Brandão (Araraquara, 31 de julho de 1936) foi eleito em 14 de março de 2019 para ser o décimo ocupante da Cadeira 11 da Academia Brasileira de Letras, sucedendo o acadêmico Helio Jaguaribe (Rio de Janeiro, 23 de abril de 1923 – 9 de setembro de 2018). Sua posse ocorreu no dia 18 de outubro de 2019.
sobre o autor
Michel Gorski é arquiteto e escritor, trabalha com arquitetura do entretenimento e urbanismo, é coeditor da revista Arquiteturismo. Autor dos livros (em parceria com Silvia Zatz): Por um triz (juvenil), O soprador (romance adulto), Irerê da Silva e A mão livre do vovô (infantis).