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architectourism ISSN 1982-9930

Pôr-de-sol em São Paulo. Foto Claudia Stinco

abstracts

português
O presente artigo apresenta as memórias da pesquisadora na França, principalmente na Fondation Le Corbusier, durante o período de seis meses, em busca de informações sobre a vida e a obra do arquiteto Le Corbusier para a tese de doutorado dela.


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CHIARELLI, Silvia Raquel. Memórias da pesquisa na França. Arquiteturismo, São Paulo, ano 14, n. 160.02, Vitruvius, jul. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquiteturismo/14.160/7816>.


Voilá! O sonho de morar no território francês me impulsionou ainda mais a começar logo o meu doutorado sobre a obra do arquiteto suíço-francês Le Corbusier. Alguns anos antes, ainda na graduação, já tinha visitado Paris durante uma viagem de turismo com foco em arte, arquitetura, urbanismo e paisagismo. Mas foi o cinema europeu que me despertou o desejo de vivenciar a cultura francesa como alguém que habita o país. Para isso, me preparei durante alguns anos antes de arrumar as malas – me refiro primeiramente a aprender a língua e a cultura. O caminho foi longo e apesar de nem tudo terem sido flores, valeu muito a pena! A experiência de morar em Paris e conhecer os quatro cantos da França durante seis meses foi, sem dúvida, enriquecedora para a minha pesquisa de doutorado e também para o meu desenvolvimento pessoal.

Vista da janela do estúdio onde a pesquisadora morou em Paris
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

No primeiro semestre de 2014, iniciei o doutorado no PPGAU Mackenzie, enquanto eu lecionava em outras duas na capital paulista. Devido aos compromissos de trabalho, eu me dedicava apenas a pesquisa nos acervos de São Paulo, em busca de qualquer registro sobre as relações entre Le Corbusier, o Brasil e os brasileiros. Até que eu concorri e consegui uma bolsa de estudos no Brasil, concedida pela Fapesp, e assim, eu pude me dedicar exclusivamente à este trabalho, pesquisando em acervos localizados em outras regiões do Brasil, como Rio de Janeiro e Brasília. Alguns meses depois, concorria a bolsa de estudos na França pela mesma instituição governamental, a qual também me concedeu a bolsa no exterior para que eu pudesse me aprofundar ainda mais na minha pesquisa e tese. Ao final do inverno de 2015, eu chegava em Paris.

No primeiro mês, minha rotina de pesquisa se dividiu no tempo e no espaço entre: os rendez-vous com o arquiteto e professor Dr. Phillipé Potié, quem me recebeu na ÉNSA-V, em Versalhes, e supervisionou o meu trabalho de pesquisa no exterior; e os processos de pesquisa nos acervos do Ministério das Relações Exteriores da França, em La Courneuve, e da Fondation Le Corbusier (FLC), em Paris.

École Supérieure Nacionale d´Architecture et Urbanisme de Versailles – ÉNSA-V
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

Pesquisar nos acervos franceses, depois de já ter pesquisado nos brasileiros, me trouxe uma grande vantagem. Conto a vocês que cada acervo possui um sistema de busca das informações nos seus arquivos. E eu já tinha passado pelos mais variados e, com isso, aprendi a escolher as palavras-chaves que teriam mais chance de me levar às informações mais precisas a respeito do assunto que eu buscava – quando havia, é claro. Minha experiência passou desde acervos com busca digital até outro em que era preciso eu dizer para a arquivista quais eram as palavras-chaves que eu buscava, começando pelas mais amplas e genéricas (por exemplo: Brasil, França, Arquitetura etc.). Neste caso, ela anotou e as buscou escritas em fichas antigas de papel já amarelado. Nas fichas haviam escritas outras palavras, que eu deveria apontar à ela quais me interessavam, numa espécie de ramificação. E assim seguimos de ficha em ficha, com palavras que fui escolhendo criteriosamente e que se conectavam umas às outras como um funil que, por fim, nos levaram à algumas pastas com documentos que contêm informações valiosas que me ajudaram a construir a narrativa e os argumentos da minha tese. O tempo de pesquisa em cada um dos acervos também foi o mais variado. Em alguns deles estive apenas por um dia, enquanto que em outros, estive por três dias, duas semanas, quase três meses...Dependia do tempo que levei de busca, análise, seleção e registro dos arquivos encontrados, além do tempo que eu tinha disponível para isso, aquele concedido pelo acervo e o meu, que por vezes, estava viajando. Por isso, digo a vocês que pesquisar nos acervos franceses depois de ter passado pelo brasileiros foi vantajoso.

Ministério das Relações Exteriores da França, em La Courneuve, França
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

A partir do segundo mês, minha rotina passou a se dividir apenas entre os rendez-vous na escola de Versalhes e na FLC. Estive na fundação por quase três meses. Quase todos os dias da semana eu tinha um horário agendado para consultar o acervo, que é inteiramente digital, e a biblioteca. Importante dizer a vocês que, culturalmente, na França, é preciso quase sempre marcar o dia e o horário para conversar com alguém ou fazer uma consulta – é preciso fazer isso quando se trata de fazer uma visita à um colega de trabalho, um funcionário de uma agência bancária, um professor, um médico, fazer uma consulta em um acervo, etc. E o agendamento é o que os franceses chamam de rendez-vous. Na Fondation Le Corbusier é preciso agendar o rendez-vous também porque o espaço físico é limitado. A instituição funciona atualmente na Maison La Roche, uma das residências projetadas e construídas por Le Corbusier. Em uma das suas salas, está a rica biblioteca com livros de autores de diversas nacionalidades que abordaram a vida e a obra do arquiteto suíço-francês. Na mesma sala, uma sequência de poucos computadores enfileirados, disponíveis para os pesquisadores fazerem suas consultas e visualizarem os documentos que desejam através da tela – cartões postais, cartas, telegramas, agendas, pranchas de projeto, fotografias de época, recortes de jornais, etc., tudo digitalizado.  Ao pesquisar neste e em qualquer outro acervo, a regra é clara: silêncio e concentração. Além do mais, todo cuidado com o material é pouco, seja ele digital ou físico – precisamos nos lembrar sempre que se trata de um documento; e assim como nós, outros pesquisadores têm o direito de consultá-lo e gerar conhecimento. Ao dizer isso à vocês, me lembrei dos acervos que consultei o material físico. Em alguns era preciso manuseá-lo usando luvas de látex nas mãos e máscara cobrindo a boca e o nariz. E antes de fazer isso, recebi instruções de como virar as páginas dos livros antigos, manusear as grandes pranchas de papel, fotografar tal material, etc. – de modo à não o danificar.

Documentos do acervo do Ministério das Relações Exteriores da França, em La Courneuve, França
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

Na FLC, dividi a sala com colegas pesquisadores de outras partes do planeta. Curiosamente, nenhum deles passou por ali por mais de uma semana. Alguns pesquisaram apenas nos arquivos, enquanto outros consultaram apenas a biblioteca. E outros, assim como eu, consultaram os dois. Me lembro também de que o bibliotecário responsável, o monsieur Arnaud Dercelles, recebia ligações e outros colegas em sua mesa de trabalho, localizada na mesma sala. O assunto era sempre trabalho. Envolvendo ora a organização de uma exposição sobre a obra do mestre moderno, ora a autorização da publicação de imagens em um livro sobre Le Corbusier, ora... Quando eu tinha alguma dúvida, perguntava à ele, quem sempre me respondeu de modo muito gentil.

Os dias frios da primavera parisiense foram passando, dando espaço para outros com temperatura mais amena. Nas primeiras semanas, me esforcei para encontrar todas as informações que consegui a respeito das relações do arquiteto com o Brasil e os brasileiros; e estudar com profundidade o projeto não construído elaborado pelo arquiteto para a Embaixada da França, em Brasília (1962-1965), meu objeto de pesquisa. Feito isso, passei a estudar com profundidade os projetos e as obras arquitetônicas que o arquiteto elaborou e/ou construiu nos seus últimos quinze anos, mais precisamente, aqueles datados entre 1950 e 1965.  Paralelamente, também me esforçava para estudar a obra completa do arquiteto: teórica, pictórica, escultórica e arquitetônica, com o objetivo de relacionar todas elas à sua produção arquitetônica dos últimos quinze anos e, mais especificamente, ao projeto da Embaixada da França, a fim de corroborar a minha hipótese presente na minha tese de doutorado. E tem mais, ao contar à você sobre esse processo, a narrativa soa linear, não é mesmo? Como se fosse possível concluir a primeira parte do processo de pesquisa e trabalho e, em seguida, começar a segunda sem nunca mais precisar retomar, dar continuidade ou rever algo da primeira; e seguir assim, sucessivamente até o final. Pois eu digo à você, leitor/a, que foi possível fazer o “grosso” de cada parte num processo de começo, meio e fim de desenvolvimento. Porém, ao longo de todo o período de desenvolvimento da pesquisa e tese, no Brasil e na França, foi preciso ir e voltar inúmeras vezes para melhor compreender e explicar determinados assuntos que, à princípio, pareciam estar concluídos na minha tese.

Maison La Roche, atual Fondation Le Corbusier, Paris, França. Arquiteto Le Corbusier
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

Além do conjunto de livros sobre a vida e obra de Le Corbusier que compõe a biblioteca da FLC, o acervo de documentação que pertencia ao arquiteto também é fascinante. E não me refiro apenas aos inúmeros documentos, como também a sua organização. Le Corbusier era uma pessoa muito organizada, observadora e perfeccionista, visto a quantidade e a qualidade dos registros que ele próprio fez e arquivou de maneira muito organizada ao longo de toda a sua vida. Há registros de praticamente toda a sua vida. Dentre os arquivos digitalizados, há cartões postais de viagens que o arquiteto fez quando era muito jovem; cadernos com croquis e anotações de lugares que conheceu e que chamaram a sua atenção; fotografias feitas pelo próprio arquiteto de lugares por onde passou; correspondências pessoais e profissionais (trocadas entre familiares, amigos, colegas, instituições, etc.); suas agendas com as anotações dos seus compromissos profissionais; pranchas dos projetos elaborados pelo Atelier Le Corbusier; entre outros. E quase tudo isso já tinha recebido um número de cadastrado adotado pelo próprio arquiteto, ainda em vida, no momento em que decidira criar uma fundação em seu nome. Ao meu ver, Le Corbusier foi um visionário. No final da sua vida, reconhecia seu próprio valor como profissional e do seu legado ideológico, arquitetônico, artístico e teórico que deixara para o mundo. E sua personalidade cartesiana, revelada no cuidado e critério de fazer seus inúmeros registros e arquivá-los de modo tão cuidadoso e criterioso, possibilitaram à ele deixar tal herança para o mundo, permitindo-nos a pesquisa aprofundada da sua vida e do conjunto complexo da sua obra.

Ville Savoye, Poissy, França. Arquiteto Le Corbusier
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

Combinado às minhas atividades de estudo e pesquisa nesses e em outros acervos franceses, visitei edifícios projetados e construídos por Le Corbusier no país. Em Paris, além da Maison La Roche-Jeanneret, estive também no apartamento no qual morava o arquiteto e sua esposa Yvonne. E próximo da cidade, no Pavilhão Suíço e na Casa do Brasil, ambos na Cidade Universitária; e na Villa Savoye, localizada na cidade de Poissy. E outras mais distantes, como: a Unidade de Habitação de Marselha, no sul do país; o conjunto de edifícios de Firminy-Vert; o convento dominicano de Santa Maria de La Tourette, no município de Éveux; a capela construída no alto de uma colina de Ronchamp; entre outras. Em todas as vezes, viajei com o transporte público, normalmente de trem, para visitar cada uma delas. Quase sempre foi preciso pegar mais de um trem e andar a pé, inclusive na estrada, como foi em Éveux e Ronchamp. O percurso para o convento e a capela tinham um tom de peregrinação. E o caminho surpreendentemente encantador com suas paisagens bucólicas e construções vernaculares, sendo algumas da idade média. E a cada visita, uma outra coisa me surpreendia, além da própria obra. Se eu sempre imaginava que não haveria ninguém além de mim ou, se houvesse, seria um grupo muito pequeno de arquitetos e pesquisadores da obra de Le Corbusier, me enganei em todas elas. Sempre me deparei com grupos maiores de pessoas, sendo que na maioria das vezes, eu era a única arquiteta e pesquisadora da obra do mestre moderno. Muitas vezes, havia famílias visitando os edifícios. Pais que chamavam a atenção dos seus filhos, ainda crianças, para que ouvissem a explicação do/a guia que nos acompanhava e contava a importância da obra de Le Corbusier. Visitar pessoalmente os edifícios projetados e construídos por Le Corbusier foi uma experiência grandiosa para mim. Ainda me lembro dos meus sentimentos ao ver a Villa Savoye fora dos livros e das telas. E também da minha visita ao interior da igreja de Firminy-Vert. São experiências que eu poderia descrever à você, porém, continuarão sendo únicas e intransferíveis. Por isso, sempre que tiver a oportunidade de visitar pessoalmente uma obra de arquitetura, não deixe de fazê-la. Nada substitui a experiência de estar em um lugar pessoalmente.

Convento de Santa Maria de La Tourette
Foto Silvia Raquel Chiarelli, 2015

sobre a autora

Silvia Raquel Chiarelli é arquiteta, docente e pesquisadora acadêmica. Graduação (2009), mestrado (2013) e doutorado (2017) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sua tese de doutorado tem como título “Le Corbusier: Embaixada da França, Brasília”, sob orientação da Profª. Dra. Ruth Verde Zein (PPGAU-Mack) e co-orientação do Prof. Dr. Ricardo Daza (Universidad Nacional de Colombia).

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