Há alguns anos – talvez muitos além do que gostaria – ditado pelo ritmo sonolento apropriado ao final de semana, folheava alternadamente um livro e um jornal. Em um dado momento, uma coalizão misteriosa ocorreu. A foto do jornal – duas crianças, filhos de soldados americanos mortos na guerra, depositam flores diante do Memorial do Vietnã, em Washington – parecia ilustrar de maneira simbólica o texto do livro. A lembrança carinhosa do pai ausente amalgamada com a melancolia diante do tempo irrecorrível... Desde então guardo ambos comigo, como prova definitiva e contundente da existência de segredos desconhecidos.
A rua mais estreita do mundo (1)
Preso pela mão de Atahualpa, eu ficara, por casualidade, no chão mais baixo e asfaltado da própria rua – ou seja – aquilo que logo verifiquei despertado pela extrema estreiteza como sendo o que sobrava de pavimento entre as duas calçadas daquela rua. Quando muito – medido pelos meus pés ainda de garoto – uns dois ou três deles, no máximo, tomados como padrão para calcular aquela dimensão, pondo um adiante do outro, confirmando aquela experiência. E foi o que logo fiz, despertado por aquela curiosidade que me chocara. Sem que os dois amigos me vissem – me notassem, sequer – para isso disfarçadamente tendo conseguido avançar um pouco o corpo, folgando-o do braço de Atahualpa –contendo-me para não afastar-lhe quase a mão onde me via preso – coloquei três vezes um pé dos meus, um adiante do outro – e justo como uma fôrma a medida serviu, tornando-se ali exata até acostar-se à calçada do lado oposto – o que fiz com aquele derradeiro pé que disfarçado estiquei até lá, sem sair quase do lugar. Portanto, e aqui tornou-se um grande espanto meu – redundando logo a seguir numa espécie de orgulho triunfo – naturalmente com todos os ademanes ainda infantis – aquilo não era propriamente um asfaltado de rua – e sim uma espécie de rego mais largo – aproveitado e sobrando entre aquelas duas calçadas do passeio, para ser levado a sério, com alguma proposta de ser aquilo uma via. Olhava para ali, ainda espantado – quando o amigo de meu pai, dando-me um pequeno tapa no ombro, estendeu-me a mão, sorridente, despedindo-se de mim também da mesma forma que o fizera na chegada, ao curvar-se simpaticamente mais chegado daquele jeito amistoso e condescendente, saudando-me, perguntando como eu ia. Continuamos o trajeto, nós que ficáramos – e ainda olhei para trás, seguindo o percurso do outro que se fora, mas sempre caminhando eu pela mão de Atahualpa que retomara a nossa direção, e já dessa vez, tendo subido para a calçada próximo a ele, após aquela interrupção – quando intentendo parar meu amigo – que foi retido bruscamente pelo braço que lhe retesei impedindo-o – olhei para o chão da rua mais abaixo e perguntei-lhe coisa que já ia parafusando na cabeça; havia bem poucos transeuntes por ali: – "Atahualpa" – chamei-o. – "Pronto" – respondeu-me ele imediato, como sempre o fazia comigo – sem parar de andar, daquela vez – dando-me aquele apoio e atenção, como se eu fora um adulto (mas aquilo a sério, sem me agravar). Eu me encorajei, então: – "Sabe qual é a rua mais estreita do mundo?" Ele parou ouvindo a interpelação minha, olhou-me surpreso, e balançando-me ligeiramente o braço pela mão que se mantinha sem largar – brincou comigo: – "Lá vem você com alguma das suas. Vamos lá – qual é – eu não sei" – foi dizendo logo. Puxei-lhe, então, por aquela mão que retinha a minha presa na dele, como a convidá-lo a curvar-se até mim (havíamos parado, com aquela novidade; ele me parecia tão alto na sua atitude a sorrir-me) e lhe soltei, por fim, apontando para a pequena espécie de rego que como não houvera mais espaço provavelmente, deixaram sobrando em intenção daquela hipotética rua: – "Está aqui, Atahualpa" – lhe mostrei – "não é mesmo?" Curioso como o restante da cena se evola subitamente aqui – num corte seco e definitivo – sem nenhuma possibilidade de um prosseguimento aclarado adiante ou seqüência terminando em mim – assim – naquela derradeira frase infantil, frustrada hoje, porque queria ver-lhe o sabor da seqüência. Onde se perdera? Como? Por quê? Tanto que eu quisera que a fisionomia de Atahualpa, a ouvir minha tirada, me revelasse algo através de sua reação querida. Seria um tesouro para minha memória.
notas1
PEIXOTO, Mário. O inútil de cada um, livro 1: Itamar. Rio de Janeiro, Record, 1984, p. 150-151.
sobre o autor
Abilio Guerra é editor de Arquitextos e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas.