Indagado na época sobre o significado dos ataques terroristas a Nova York, Jürgen Habermas os vira como um atentado ao conjunto da civilização ocidental, idéia que se desdobrou depois como a de um ataque contra seus fundamentos universalistas e contra a pluralidade do moderno (2). Embora as conseqüências desses acontecimentos tenham um escopo mundial, cabe comentar o que observei da cidade de Nova York, pois estive por lá e presenciei suas ruas naqueles dias. Se vários autores, como Agnes Heller, já mostraram como a guerra acaba por instaurar sua própria cotidianidade, talvez valha a pena relatar algumas impressões de como os nova-iorquinos procuraram retomar seu dia a dia naquele período fatídico, frente a um acontecimento inédito que estabeleceu um conflito de proporções altamente preocupantes, cuja dinâmica vamos tentando aos poucos compreender (3).
Eu chegara a Nova York de Washington D.C. – onde havia participado de um congresso acadêmico (4) – num domingo à noite, e antes mesmo de aterrizar pude ver da janela o Empire State Building, curiosamente, em cores verde e amarela (depois soube: em homenagem então ao nosso 7 de setembro). Um dia antes, na 2ª feira, circulei pela área sul de Manhattan, tendo caminhado pela Ponte do Brooklyn, pelo Pier 17 – marca da gentrification da área portuária da cidade – e pela região de Wall Street, antes de me dirigir depois, com um amigo, mais para o norte, primeiro numa livraria próxima à Columbia University, e mais à noite num bar do Harlem, onde assisti a um show de jazz com músicos negros, para uma platéia “multicultural”, cujas mesas mais próximas ao palco eram inteiramente ocupadas por turistas japonesas. Essa ida ao Harlem, aliás, teria sido impensável anos atrás, mas tornou-se viável a partir de um conjunto de medidas da prefeitura, que vem incrementando certas áreas para o turismo ou para consumo das classes médias, com todos prós e contras, já que por um lado dinamizam economicamente algumas regiões que, ao mesmo tempo, tornam-se mais caras e quase inviáveis para grupos sociais mais pobres (5).
Devido a uma certa boemia da noite anterior, ainda estava no Queens quando os atentados ocorreram. Eu tentara um pouco antes telefonar para São Paulo e estranhamente a ligação não se completava, quando alguém na casa me chamou para ver na TV as duas torres, já em chamas. A partir daí, alternei-me em acompanhar os acontecimentos pela TV e tentar ligar para o Brasil para acalmar minha família, o que só consegui quase uma hora depois. Um amigo trabalhava a poucos quarteirões das torres, e descera do prédio com alguns colegas para observar o incêndio, quando foi colhido pela nuvem de poeira advinda da queda da primeira torre. Por sorte, o porteiro de um prédio dos arredores puxou-o para dentro do lobby do edifício, permitindo-o, aos poucos, recuperar-se. Um colega estava passeando pela Ponte do Brooklyn, e de lá presenciou todos os ataques. Todos correram para o outro lado, e horas mais tarde os moradores puderam voltar à ilha a pé, pela ponte de Manhattan, que dá num ponto mais ao norte da cidade. A filha de uma amiga nova-iorquina, em sua primeira semana de aula numa nova escola, podia acompanhar as explosões das torres de uma das janelas da sala, trazendo dilemas para o professor quanto ao que cabia ser visto pelas crianças.
Obviamente uma enorme apreensão tomou conta de todos ao longo daquele dia, e embora o noticiário local mencionasse a ida de muitos a supermercados frente à ameaça da eclosão de uma guerra (6), quando saí para almoçar, mais tarde, a paisagem no Queens foi de certa forma reconfortante: não havia ali nenhum pânico nas ruas, e os bares estavam até um pouco mais cheios do que de costume, já que muitos que estavam nas ruas passaram a acompanhar nesses locais os acontecimentos pela TV.
Esse dia e o seguinte foram dedicados a se acompanhar os desdobramentos pela televisão (muitas redes locais noticiavam 24h por dia), ainda mais porque as autoridades pediam que, um dia depois, só se fosse a Manhattan ou se saísse às suas ruas em caso de extrema necessidade, já que seria o início do doloroso processo de se tentar resgatar sobreviventes em meio aos escombros e de se cuidar dos feridos. Quando falo em autoridade política, refiro-me sobretudo ao papel determinante do prefeito Rudolph Giuliani, que estava a poucas quadras das torres quando das explosões, e que se tornou uma presença constante em muitas situações emergenciais nos dias posteriores, exercendo um tipo de liderança que em muito contrastava, em termos de projeção, à do presidente, que nas horas seguintes aos atentados permanecera oculto. O papel posterior do prefeito, no sentido de tentar, dias depois, recuperar a auto-estima da cidade e também promover sua retomada econômica – conclamando a volta do comércio e dos negócios – é digno de nota. Apesar da diferença quanto ao alcance, o poder local nesse caso revelou-se muito mais interessante e progressista do que o poder presidencial, cujas medidas no sentido de uma ampliação dos conflitos mundiais mereceriam um outro artigo.
A ampla cobertura pela mídia – sobretudo a televisiva – suscita breves comentários: ao menos nos primeiros dias, a repetição das imagens à exaustão tinha um efeito bastante dramático, longe de tornar, ao menos aos meus olhos, o evento um pouco mais banal. Houve realmente imagens não transmitidas nas emissoras norte-americanas, como as pessoas que se jogaram durante o incêndio, os corpos ou pedaços encontrados, os funerais ou mesmo caixões: enfim, um ocultamento das imagens mais diretas da morte, de certa forma recorrente na cultura norte-americana. No mais, a busca de sobreviventes e as movimentações em torno da região atingida ocuparam a maior parte dos noticiários, enquanto os demais espaços públicos da cidade pareciam desertos – uma exceção era um grupo de nova-iorquinos postado na rota das equipes de resgate, tentando manifestar, pela primeira vez até então, algum tipo de entusiasmo, no caso dirigido sobretudo aos bombeiros, que tiveram elevada sua imagem de heróis (344 deles morreram ou desapareceram nas explosões). Ao final do dia, entretanto, a ameaça de uma bomba no Empire State Building fechou um dia já bastante soturno. Nos momentos em que saí pelas ruas do Queens, então mais vazias do que o habitual, as primeiras bandeiras dos Estados Unidos já apareciam em frente a casas, lojas, bares e em carros, numa manifestação que aumentou sensivelmente nos dias seguintes (7).
Na quinta-feira, entretanto, um novo desafio se colocou, e junto com ele novas descobertas. Os vôos estavam sendo gradativamente liberados a partir daquela manhã – ainda que horas depois estivessem provisoriamente suspensos, devido a indícios de novos possíveis seqüestros. Meu vôo de volta a São Paulo seria naquela noite, e não havia como contatar a United Airlines pelo telefone. Um colega meu que estava em Manhattan contou-me de um escritório da companhia ao lado do Central Park, e para lá me dirigi de metrô – que havia sido reaberto (8) – para a princípio tentar confirmar meu retorno naquela noite. Após enfrentar uma fila de mais de duas horas (9), soube que os vôos para o Brasil teriam início somente no dia seguinte, e só logrei marcar meu retorno para dali a cinco dias.
A partir de então, era preciso tentar controlar a expectativa quanto à partida, e sair um pouco de frente da TV. A primeira decisão que tomei foi andar um pouco a esmo pelas ruas. Surpreendentemente, as calçadas estavam bem mais cheias, bem como várias lojas e restaurantes. Isso obviamente guardava relação com a gradativa reapropriação da cidade pelos habitantes, mas também dizia respeito à diferença entre o que as imagens da TV vinham ressaltando e o que se passava nas ruas. O Central Park, por exemplo, estava repleto de pessoas, e sua ocupação naqueles dias teve certamente um papel na tentativa de muitos nova-iorquinos de se recuperarem do terror vivido. Era uma ocupação significativa, embora não houvesse tanta interação: muitos ali estavam ensimesmados, introvertidos, à beira dos lagos, sob as árvores. No jardim Strawberry Fields, pequena área do parque dedicada à memória do ex-Beatle e pacifista John Lennon (10) – assassinado ali perto em 1980 –, havia um rosa sobre uma mandala cujo centro está escrito “Imagine” – canção que se refere a um mundo utópico, sem países – e ao lado, escrito em giz, podia-se ler algo que então ganhava um novo sentido: “None can take this dream away from us: peace” (11).
Ainda que alguns museus continuassem fechados, o fato é que a vida nas ruas naquela tarde realmente confrontava-se com as imagens que eu vira na televisão um dia antes, fazendo-me revisitar a velha questão ligada ao ocultamento do real ou à sua “ideologização” – à medida que a parte (no caso a área próxima aos atentados) substituía completamente o todo (os demais lugares da cidade, em sua difícil tentativa de retomar o dia-a-dia). Quando retornei ao Brasil, vi por exemplo que a Folha de São Paulo (12) estampava duas fotos sobre esse dia: na primeira uma freira pelas ruas com uma máscara respiratória (o que talvez fizesse sentido para aqueles que moravam mais próximos à área das explosões, protegendo-se da nuvem de poeira que ainda era muito forte) e na segunda uma prateleira de supermercado totalmente vazia, quando ao que tudo indica, não chegou a haver uma crise de abastecimento, mesmo em Manhattan. As imagens em si – e seu reconhecido poder de persuasão – transmitiam, enfim, uma idéia de caos que não traduzia toda a experiência urbana dos nova-iorquinos. Alguns que me telefonavam nessa época talvez achassem que eu devia estar racionalizando ao falar do que via da cidade, mas de fato para mim havia coisas que escapavam às notícias apenas catastróficas.
Tal impressão se acentuou no dia seguinte, quando participei de uma expressiva manifestação pacifista na Union Square – grande parte empunhando velas – cujos cartazes e panfletos divulgavam uma agenda antiguerra e anti-racismo de movimentos estudantis, ONGs etc. O jornal Socialist Worker (da International Socialist Organization), ali distribuído ou vendido (13), era explícito nas manchetes: “Don’t turn tragedy into war”; “Stop racist scapegoating of Arabs Americans” (14). Círculos eram formados para cânticos diversos – desde “Give peace a chance”, passando por canções folclóricas, até “New York, New York” – enquanto rodas maiores circundavam verdadeiros santuários formados por fotos de desaparecidos, velas, flores e pequenas bandeiras norte-americanas (distribuídas naquela tarde em vários locais públicos), num deles havia inclusive monges budistas entoando mantras. Apesar da diversidade de significados – políticos, religiosos, e de certa forma, também patrióticos – predominava de toda forma a idéia de prantear os mortos, mas não apoiar uma guerra nem buscar vinganças contra minorias dentro dos Estados Unidos. Ainda que aquilo talvez não traduzisse necessariamente, digamos, o sentimento do “americano médio”, foi muito provavelmente a primeira manifestação pacifista das inúmeras que se seguiram no país e no mundo, traduzindo uma posição pluralista que Nova York foi capaz de produzir apenas três dias após os atentados. Infelizmente, até onde eu pude averiguar, tal evento não foi coberto nem pelas estações de TV locais nem pelos jornais mais importantes. Obviamente emissoras como a CNN e outras estavam tentando tornar um certo apoio à guerra num sentimento “consensual”, e eventos como esse tentavam mostrar que outras vozes também deviam ser ouvidas e consideradas.
Andando nos dias seguintes por outros pontos, foi possível ver como inúmeros locais – em frente a grandes hospitais, postos de bombeiros, entradas de metrô, pontos de ônibus, grades de várias praças – foram também transformados em pequenos memoriais ou altares improvisados, embora os incontáveis cartazes de pessoas desaparecidas (em geral com fotos, sinais característicos, local onde foram vistas pela última vez e telefone para contato) também atestassem uma pequena esperança de vida. A Times Square, por sua vez, teve parte de seus enormes outdoors, luminosos e letreiros publicitários substituídos por bandeiras, slogans nacionalistas e pedidos de voluntários para resgate, doação de sangue etc. Talvez mais do que antes, o grande telão dali ganhou maior importância, com a divulgação de novas notícias, como ocorreu no dia da visita do presidente à cidade, também naquela sexta-feira, à área dos atentados, que teria sido “ovacionado” pela população, segundo parte da mídia (mas qual população, as equipes de resgate?) (15).
Naquele domingo, os vários cultos religiosos acentuaram o lamento e a reflexão sobre as mortes da terça. Na Abyssinian Baptist Church, no Harlem, o pastor Calvin Butts propunha uma relação ativa com o medo, ao ponderar que, durante o incêndio na primeira torre, o medo levara muitos a descer desesperadamente para salvar a própria vida, enquanto que os bombeiros tiveram que enfrentar o mesmo, mas para subir rumo às chamas: era portanto impossível evitar uma enorme apreensão ainda ali presente, mas tal terror não poderia paralisar as pessoas, o que repercutiu de forma muito positiva entre os presentes, a grande maioria negros, numa fala onde o retorno oral da platéia faz parte do ritual (16). Chamou a atenção, do mesmo modo, que parte do dinheiro coletado naquela comunidade pobre fosse também destinada aos gastos com os salvamentos e retiradas dos escombros. Naquele dia, o Emerson String Quartet fez um concerto gratuito no Lincoln Center, “em nome da tristeza e devastação que envolvia a todos, mas também para afirmar a coragem, a resistência e a esperança que a arte e a música inspiram” (17). Ainda naquele domingo, ocorreu um culto ecumênico na Riverside Church (posteriormente exibido na TV) que incluía um cântico religioso baseado no Alcorão, numa demonstração de pluralismo que poucas cidades naquela situação teriam sido capazes de produzir.
Na tarde em que peguei o táxi para me dirigir, enfim, ao aeroporto, sentia-me estranhamente um privilegiado por tudo o que pude presenciar. A alegria de voltar ao Brasil misturava-se à tristeza de deixar aquela cidade e alguns amigos. Fui para o aeroporto num táxi dirigido por um imigrante – parecia paquistanês ou indiano –, repleto de bandeiras norte-americanas, o que não impediu que, num trecho onde o trânsito era lento, um carro ao lado fizesse certos sinais. Ingênuo, perguntei se era indicação de alguma rota alternativa, quando soube que na verdade cobravam que uma das bandeiras estava numa posição errada. Esse tipo de patriotismo me fez lembrar algo que havia lido dias atrás no chão do Central Park – “An eye for an eye makes the whole world blind” (18) –, com a nítida sensação, confirmada cada vez mais pelos eventos recentes, que uma retaliação norte-americana, atualmente em curso, nos levaria a um mundo pior para todos. De toda forma, ficou o registro de que no panorama plural de Nova York, muitos tentavam agora olhar o mundo sob outra ótica.
notas1
Esse texto baseia-se parcialmente em palestra do mesmo título, proferida a alunos e funcionários da UNESP/Araraquara em 1/10/01, a convite do Centro Acadêmico Florestan Fernandes. Meus sinceros agradecimentos e eterna gratidão ao amigo Selmo Norte, com quem compartilhei muito do que está aqui relatado.
2
Ver GALISI FILHO, J. “Comunidade intelectual reage com perplexidade”. Folha de São Paulo, S. Paulo, 12/9/2001 e GALISI FILHO, J. “Habermas comenta atentados em discurso”. Folha de São Paulo, S. Paulo, 10/10/2001.
3
Como ponderou Eric Hobsbawm, talvez tenhamos adentrado numa nova era, em nada similar ao século XX, dadas as características de um novo tipo de guerra que se configurou, ligada a fenômenos da globalização (ver ZANINI, F. “A globalização foi usada como arma”. Folha de São Paulo, S. Paulo, 18/9/2001).
4
O Congresso da LASA – Latin American Studies Association –, com auxílio da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
5
Sem falar de grupos sob forte controle, como alguns ligados ao mercado informal. Em frente ao Metropolitan Museum, p. ex., artistas (fora do circuito das galerias) protestavam contra a proibição da venda de quadros na área do entorno.
6
Em alguns locais, teria havido aumento na compra de armas, segundo a imprensa.
7
Ainda que em alguns casos as bandeiras também fossem usadas por vítimas potenciais de preconceito, como um comerciante paquistanês ou uma casa com migrantes latinos, ambos próximos de onde eu estava hospedado.
8
Com várias linhas remanejadas, em função da suspensão do transporte na área atingida.
9
Mais de uma vez ouvi a menção, entre norte-americanos da fila, sobre a sofisticação dos ataques.
10
Memorial custeado e mantido por Yoko Ono.
11
Trad.: “Ninguém nos pode tirar esse sonho: a paz”.
12
Ver RIBEIRO, T. “NY começa a retomar sua dia-a-dia”. Folha de São Paulo, S. Paulo, 14/9/2001.
13
A preço de 50 cents.
14
Trad.: “Não transformem a tragédia em guerra”; “Parem de usar os Árabes-Americanos como bodes expiatórios do racismo”. Outro jornal alternativo, como o Indypendent, fazia também, num tom um pouco mais moderado, críticas à cobertura da mídia e ao racismo. Já o Village Voice, tradicional defensor de várias minorias, trazia uma manchete com um tom bem mais pesado contra os terroristas: “The bastards”.15
Várias pessoas com quem conversei naquele dia – brasileiros e norte-americanos – acharam demagógico o discurso do presidente em Nova York, com um dos braços em volta do pescoço de um bombeiro.
16
Sem falar dos belíssimos gospels ali cantados.
17
Com base no folheto distribuído antes da exibição.
18
Cuja tradução literal seria: “O ‘olho por olho’ faz o mundo inteiro cego” (aparentemente uma frase proferida por Mahatma Gandhi).
sobre o autor
Heitor Frúgoli Jr. é professor de Antropologia da UNESP Araraquara e autor de "Centralidade em São Paulo", Cortez / Edusp / Fapesp, São Paulo 2000.