Origens
O movimento moderno nasce de desejos: desejo por abstração, por novidade, por racionalidade, por artificialidade, pela ordem visível, por sex-appeal técnico, por deslumbramento diante da renovação humana, pela fé na ciência e sua brutalidade, pelo militarismo arquitetônico, por trabalhos definitivos, por objetos na maior escala possível e acima de tudo pela centralização da autoridade confiada nas mãos de políticos, técnicos e oficiais de governo; todos empenhados em fazer a felicidade do povo; um povo que por milhares de anos foi acostumado a decidir por si mesmo sobre seu própio ambiente, se encontra reduzido ao silêncio. (2)
O movimento moderno representa a recusa: de tradição, de emoções, de caos e desordem, de irracionalidade, de sentimentalismo, do subconsciente e do inconsciente, da escuridão da Idade Média, da inadmitida influência do corpo humano sobre o ambiente ao redor, da confiança nas decisões tomadas por grupos de leigos, da capacidade de tranqüilo auto-gerenciamento, etc.
A atitude contemporânea nos reconcilia: esta atitude não expressa o racional, mas o relacionamento entre pensamento inteligente e emoções do coração, a proteção da cultura étnica, um amor pela inteligência criativa da Idade Média, atos homeopáticos, a visão holística da realidade, evolução, a pequena escala de intervenção, um interesse numa cultura étnica em vez de uma cultura técnica, uma atitude anti-autoritária, uma necessidade urgente de ajudar nossos atuais tomadores de decisão a entender o tempo histórico no qual estamos vivendo.
Subsidiaridade de decisões
Em matéria de planejamento do ambiente residencial, existem duas abordagens que são diametralmente opostas. A primeira é centralizada e funciona de forma impositiva de cima para baixo: os menores detalhes devem obedecer ao topo. Essa abordagem foi criada tendo como imagem a realeza, sendo então inspirada pelo sufrágio universal do século 19, e fundada na tecnocracia e atual globalização financeira.
A tendência presente é sem dúvida usar uma abordagem ramificada, a abordagem da subsidiaridade. O mundo falou muito em subsidiaridade (subsídio) no intuito de impor o tratado de Maastricht, mas agora que o tratado já foi assinado, não se fala mais nisso. Nessa abordagem os detalhes espontaneamente aglomeram-se em grupos que são então tomados por entidades mais substanciais e sucessivamente tornam-se parte de decisões de grande escala, dependendo do peso das questões. Este sistema é comparável a organização psicológica de grupos.
Esta segunda atitude representa o contraponto mais radical à primeira, e inevitavelmente produz uma imagem igualmente inversa. Isto é como o futuro exigirá que todos os líderes assumam o papel do servente atento e cortês em vez do papel do mestre surdo e bruto.
Composição de subsidiaridade
O novo desenho de áreas residenciais deve ser a imagem fiel de seu sistema de decisão: uma decisão centralizada produz uma imagem autoritária e homogênea: todo detalhe obedece a disciplina do todo.
Uma decisão que diversifica suas atividades em subsidiários oferecerá uma imagem complexa, refletindo heterogeneidade, evolucionismo e cooperação de escalas sucessivas de planejamento.
Assim parece evidente que enquanto a arquitetura estiver aderida a regras de homogeneidade e à repetição de elementos idênticos, à disciplina de materiais, à simetria, ao seu caráter inflexível auto-infligente e imutável, e às três unidades do drama (ação, lugar e tempo), ela permanecerá militarista não sendo capaz de expressar os valores de uma sociedade complexa, criativa, dinâmica e democrática. Não poderá ser, por definição, outra coisa senão um regime totalitário; esta é a situação que caracteriza nossa era.
Motivos
O arquiteto por si só não é capaz de abandonar sua concepção de cultura pré-formada, criada por imagens mentais autoritárias e carregadas: ele deve internalizar a desordem das pessoas que fazem uso de suas criações. Isto só será atingido através da participação calorosa da comunidade (mesmo que um grupo bem pequeno).
Ou isso se dará através do estudo objetivo da complexidade dos usuários (alimentado por respeito étnico) e por prestar atenção nos habitantes reais e não nas abstrações que o arquiteto gostaria que eles fossem (que é o que acontece invariavelmente). Isso evitaria reduzi-los a uma média insignificante.
Ou o próprio arquiteto torna-se um pluralista através de uma empatia que antecipará formas compatíveis com qualquer que seja o direcionamento dos atos espontâneos dos habitantes.
Paralelismos
No caso de desenvolvimento de ambientes residenciais, ações e declarações que sejam muito demonstrativas previnem a participação comum [popular]. Somente abordagens gentis e pacientes (mesmo que elas atinjam resultados revolucionários) podem calmamente atingir seus alvos, embora sem esquecer ou enfraquecer a oposição fundamental a atitudes autoritárias.
Esta evolução encontra seus paralelos no confronto de Davos/Porto Alegre: a diferença real reside na vontade de cada um dos agentes de ver a estratégia de confronto como uma ferramenta [instrumento] para alcançar um equilíbrio ecológico sobre o qual os gerentes são freqüentemente incapazes de decidir, ou simplesmente de entender, devido ao medo de induzir uma desordem que eles não possam controlar.
Mesmo que as razões fundamentais sejam as mesmas, nós estamos falando sobre um auxílio complementar à tomada de decisão por ‘aqueles ignorantes na arte da construção’, em vez de uma crítica violenta. Na verdade, o que estamos descrevendo é um procedimento pacífico de eficiência vagarosa.
Profetas
Deixe-nos pedir a cooperação amistosa de visionários: por exemplo, Ecologist, Attac, Monde Diplomatique, Friends of the Earth, sindicatos, Greenpeace, a Small Peasant Confederation (José Bové), as ONGs da especialidade, por ser vital que sintamos a expressão da sociedade civil em progresso.
O resultado do ambiente urbano recente
A ideologia da habitação moderna tem colhido seus monstruosos frutos: zoneamentos de habitações pré-fabricadas foram estabelecidos em todos os países. Apenas nos países da Europa Oriental, 170.000.000 de pessoas vivem (sobrevivem) em 70.000.000 de unidades de habitação pré-fabricadas… e todas essas habitações estão desmoronando simultaneamente (a Chernobyl da habitação social).
Estes habitats são inesquecíveis a partir de vários pontos de vista: espiritual, cultural, ambiental, técnico, residencial, econômico, social, arquitetural, e a partir do ponto de vista da civilização.
Meios
demolição: impossível, escandaloso, desumano e desesperador.
transformação: não há dinheiro suficiente, levaria um século para fazê-lo.
induzir a evolução: reocupação dos objetos iniciais por meio de adições sucessivas que cubram a estrutura antiga e cresçam através dos anos, afirmando assim uma cultura popular contemporânea compartilhada por uma maioria multicultural (uma mistura de culturas, entidades geográficas e gerações) low-tech (adaptada). O projeto se tornará descentralizado, emocional, ambientalmente amistoso (socialmente, psicologicamente e fisicamente) quando privado da nostalgia de um passado mítico. Um ambiente futuro se fará presente, um ambiente capaz de motivar ativamente as próximas gerações, que já são frustradas com a péssima qualidade do seu patrimônio.
Ações
Reflexão, difusão, o estudo de protótipos no intuito de analisar e corrigir, construção em pequenas porções relacionadas ao contexto, intervenções em pequena escala, participação direta dos habitantes, uso simultâneo de instrumentos técnicos e organizacionais mais sofisticados e atualizados. Libertação da ideologia do mercado livre no intuito de permitir desejos de reconhecimento do Outro, eqüidade universal em progresso, ganhos materiais pela cessação de conflitos homicidas (eles custam mais que alimento).
Estilos
Se é verdade que não existe um estilo de arquitetura ou planejamento de cidade que seja especificamente ajustado à ecologia (estilos tem que permanecer locais) certamente alguns estilos são brutalmente incompatíveis com o conceito de ecologia. Uma arquitetura humanizada não pode expressar-se com os conceitos de auto-colonização e as ideologias de consumerismo mundial; sem dúvida, será ao longo de uma trilha espiritual que a arquitetura encontrará novas formas de expressão.
Unanimidade
O impulso ambiental é sempre contagiante: esse impulso freqüentemente ajuda na cooperação entre parceiros heteroclíticos (3): estes tornam-se generosos. Nós sabemos disso por experiência.
Fatalidades corporativas da classe conceptora
Para realizar projetos, arquitetos e planejadores são destinados a obedecer seus clientes, públicos ou privados; sem eles a profissão de arquiteto não existiria. Alguns clientes (não muitos) mostram seu verdadeiro caráter heróico provando que são capazes de operar sob uma democracia verdadeira, sem restringir a si mesmos ao sempre-tecnocrata mundo das políticas tanto públicas quanto privadas e invariavelmente comercializadas.
Alguns experimentos tem demonstrado possibilidades ‘fora do sistema’ para comunidades específicas (living communities), mas eles acabam por perder o fôlego devido a competição de instituições, a perigosas formas de financiamento, a conflitos com a administração que nutre um preconceito ruim com relação a ‘amadores sem poder’ freqüentando o território de caçada deles.
Nesses casos as almas desiludidas são forçadas a voltar a sonhar no papel, descrevendo o que poderia ter sido feito e desenhando Utopias frustradas. Elas devem tomar o poder político ou tornar-se carreiristas? Elas se encontram redirecionadas e inúteis.
Reconciliação
Evidentemente, ecologia é a única maneira de reconciliar o habitante com seu habitat: o habitante nunca gostou da modernidade (ele até inventou o kitsch para exorcizá-la). Para reconquistar diversidade e habitabilidade, nós temos que ‘tocar a base’ outra vez, deixar que os leigos, intuitivos e desdomesticados, nos influenciem e então, junto com eles, criar um trabalho de arte.
Qual será o resultado final? Somente a subversão cuidadosamente gentil pode gerar resultado, que não seja dura mas persistente, inabalável e inevitável… (4)
Deixe-nos urgentemente ajudar o G8 a transformar-se num corpo urbano gentil e contemporâneo.
[Tradução para o português a partir da versão em inglês e organização editorial de responsabilidade de Ana Paula Baltazar]
notas
1
NT – Este manifesto foi escrito na ocasião do symposium 'G8 Urbano' em março de 2001 em Pádua, Itália. O tema do Symposium, organizado pelos arquitetos Paola Bassi e Lucien Kroll, foi Urban Sustainable Requalification (Requalificação urbana sustentável). Lucien Kroll faz uma crítica severa ao caminhamento político/financeiro que tem sido dado a globalização, dizendo que "globalização é uma questão espiritual, nunca uma questão financeira", e explica que a participação deles (do atelier dele) no symposium 'G8 Urbano' não se resume apenas a mais um grupo de técnicos pagos para aprimorar os detalhes de uma política duvidosa e maquear um pouco a imagem de tal política, mas que eles estão trabalhando no intuito de reverter essa política vagarosamente, sem nenhuma violência… O texto em inglês publicado pela revista Archis nº 2, 2001, é a base do texto em português aqui apresentado, com permissão da Archis e gentil colaboração de Lucien Kroll, que enviou as versões digitais em inglês e francês.
2
NT – Lucien Kroll usa o termo landscape cuja tradução direta seria paisagem, porém no contexto me parece mais apropriado traduzir como ambiente.
3
NT – Traduzido de heteroclitic (termo não encontrado nos dicionários comuns da língua inglesa)4
NT – O original lê-se: “Only thoroughly gentle subversion will do, not harsh but persistent, unswerving, unavoidable…”
sobre o autor
Lucien Kroll é arquiteto belga e membro honorário do INBAR, Istituto Nazionale de Bioarchitettura.