Tempos difíceis no inverno de 1977. O quadro para arquitetos recém formados era de pouco trabalho e nenhum emprego. Duas coincidências me levaram ao Rio de Janeiro. A primeira foi à leitura de uma reportagem de jornal que noticiava que o arquiteto Sérgio Bernardes fora contratado para projetar um grande conjunto de moradia, comercio e serviços. Havia trabalho, portanto. Segunda coincidência, um parente meu no Rio de Janeiro conhecia o arquiteto Sérgio Bernardes e me conseguiu uma apresentação. E numa manhã ensolarada do inverno carioca adentrei no escritório do arquiteto Sérgio Bernardes para uma entrevista em busca de emprego.
O escritório ocupava um prédio em três níveis projetado por Sérgio e está situado na av. Sernambetiba na orla da Barra da Tijuca. Edificado em concreto aparente e com uma forma intrigante, sugerindo algo de naval, como um navio aportado pelo lado do continente da avenida beira mar. O pavimento térreo fica elevado em relação ao nível da avenida e abriga a recepção e sala de espera. No nível inferior, acessado por uma escada, há um grande salão de trabalho, e que com um pé direito mais alto, permitia que desfrutássemos a vista do mar. Ainda neste nível há uma copa e cozinha com sala de refeições e banheiros. No fundo da área de trabalho, separada por portas de vidro, havia uma área descoberta ajardinada. No pavimento superior estava a sala de trabalho do arquiteto Sérgio Bernardes.
Depois de algum tempo de espera o Sérgio me atende e ao se inteirar do assunto me disse:
– Os paulistas ainda são bandeirantes. Sair de São Paulo em busca de emprego no Rio de Janeiro, nesta conjuntura, é coisa de paulista.
Perguntou onde eu tinha estudado, o que fizera e o que não fizera e me disse que eu ficaria trabalhando quinze dias em experiência, se desse certo eu continuaria, senão, eu seria dispensado. Desci para o salão onde ficavam os outros arquitetos e desenhistas, assim como os três sócios. Havia uma prancheta vazia e ali me instalei para iniciar, trabalhando num prédio residencial que me lembrou o Conjunto Nacional pelo emprego da solução vertical partindo de uma base retangular e horizontal. Tratava-se de um conjunto residencial solucionado por uma torre que brotava de um embasamento em cujo interior estavam previstas as garagens. A face externa do volume horizontal era composta por unidades residências independentes e em dois pavimentos, com acesso direto pela rua e acesso pelos fundos pela garage. O arquiteto Lúcio Costa, numa visita ao escritório e ao comentar este projeto com o Sérgio, apelidou estas unidades de "maisonetes". A laje de transição funcionava como térreo da torre de apartamentos, agregando área de lazer e recreação.
Trinta dias depois ninguém tinha me procurado para dizer se eu tinha sido aprovado ou não no estágio probatório de quinze dias. Procurei novamente o Sérgio Bernardes, que chamando o Dr. Murilo, que era seu sócio e uma espécie de coordenador técnico do escritório perguntou:
– Murilo, o paulista se saiu bem ou mal? – Alto e em bom som, com todos no escritório querendo saber a resposta. Claro que o Dr. Murilo, elegantemente, respondeu que eu me saíra bem. Acho que ele não me crucificaria ali na frente de todos.
– Pois bem, disse Sérgio, procure o contador para a contratação. – E foi assim que eu que estava em busca de experiência conheci mais que um grande mestre de arquitetura, uma grande figura humana.
Sérgio era absolutamente devotado ao trabalho, chegava no escritório antes de todos e quando saíamos ainda estava desenhando em sua prancheta. A cidade era sua preocupação primeira. Pressentia, já naquela época, que a dicotomia entre o Rio de Janeiro dos bairros e o Rio de Janeiro dos morros causaria a ingovernabilidade da cidade. Propôs uma alternativa no mínimo polêmica. Grandes torres residenciais espaçadas várias quadras entre si, gerando um enorme adensamento populacional que abrigasse os moradores dos prédios existentes e os moradores dos morros próximos, em edifícios com várias tipologias de moradia. Ao mesmo tempo em que criaria nos bairros da orla uma grande área de parque, que ligaria a praia e os morros, sendo atravessada por avenidas expressas e coletoras, recebendo no primeiro terraço as linhas de metrô. Era como se fora um aterro do Flamengo com prédios de moradia.
Sua tese era de que a modernidade deveria ser dividida entre todos, sob risco de não poder ser alcançada por ninguém. Estava sempre pondo em evidência para todos nós a relação da cidade com o mar, ou seja, como aproveitar a proximidade com o oceano, a fruição visual que a presença da água permite, e ao mesmo tempo estabelecer uma relação produtiva e eficaz sem a predação e a poluição destes recursos conforme se fazia e se faz ainda hoje no Brasil.
Sérgio com seu espírito libertário cogitou certa época, transferir o escritório para uma ilha no meio da baia da Guanabara, alterando os dias de folga de Sábado e Domingo, para Domingo e Segunda-feira, de forma que todos pudessem ter um dia útil livre na segunda-feira para que pudessem resolver seus problemas de banco e etc.... Acreditava que ao usufruirmos a exuberância da paisagem da baía da Guanabara aumentaríamos nossa produtividade de arquitetos. Uma vez numa virada de fim-de-semana para adiantar um projeto, o Sérgio me dispensou do trabalho argumentando que como eu era recém chegado ao Rio de Janeiro, deveria me ambientar na cidade. Disse que quanto mais rápido eu o fizesse melhor seria para o escritório, pois em sua opinião era impossível exercer arquitetura sem um bom ambiente de trabalho.
Uma idéia caríssima ao Sérgio era o LIC, Laboratório de Investigações Conceituais. O Laboratório era no primeiro momento, uma maneira de difundir e divulgar entre os membros da equipe as soluções alcançadas para os problemas arquitetônicos que estavam sendo tratados pelo escritório. Ou seja, o laboratório destinava-se a buscar generalizações que pudessem aumentar a qualidade do projeto arquitetônico do escritório. Visava ser um estimulador de pesquisa em vista ao projeto de arquitetura, enfatizando a pesquisa e o conhecimento na área de materiais e no desenvolvimento de pormenores.
Vivia-se um ambiente extremamente estimulante, visto que o debate e a conversa sobre arquitetura e urbanismo eram fortemente estimulados pelo Sérgio. Muitos dos arquitetos eram originários de outros estados, gaúchos, mineiros, pernambucanos. Havia também um alemão e um angolano. Esta diversidade na formação dos profissionais gerava idéias e opiniões que na visão do Sérgio deveriam ser consolidadas ou agrupadas em generalizações possíveis, que ele denominava conceitos. Esta busca do novo e o estímulo ao debate nos parecia um oásis num Brasil onde o General Silvio Frota tentava dar um golpe visando conduzir o país ainda mais à direita do que pretendia o presidente Geisel.
Sérgio não estava atrelado ao pensamento dominante da esquerda da época. Era um arquiteto independente e com uma visão clara de seu país. Democrata convicto, suas propostas tinham endereço certo, qual seja a de produzir melhoria na qualidade de vida do brasileiro. Exerceu sua arquitetura com sinceridade e dedicação. O que diferenciava o arquiteto Sérgio Bernardes é que foi capaz de produzir arquitetura com muita inventividade e acima de tudo com enorme bom humor.
notas
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Leia mais sobre Sérgio Bernardes em Vitruvius:
MEURS, Paul. "Pavilhão brasileiro na Expo de Bruxelas, 1958". Arquitextos. Texto Especial nº 034, São Paulo, Portal Vitruvius, dezembro 2000 <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp034.asp>.
NOBRE, Ana Luiza. "Sérgio Bernardes: a subversão do possível". Arquitetura.Crítica nº 009, São Paulo, Portal Vitruvius, junho de 2002 <http://www.vitruvius.com.br/ac/ac009/ac009.asp>.
PONTES, Ana Paula. "Sérgio Bernardes e Eduardo de Almeida: arquitetura que ensina". Arquitetura.Crítica nº 009, São Paulo, Portal Vitruvius, junho de 2002 <http://www.vitruvius.com.br/ac/ac009/ac009.asp>.
sobre o autor
Antonio Claudio Pinto da Fonseca é arquiteto, professor das Faculdades de Arquitetura de Santos e Mackenzie, doutorando na FAU-USP e sócio diretor da Construtora e Administradora MG Ltda