Da consciência museológica francesa aos museus-supermercado de Gregotti
Segundo alguns especialistas, os primeiros exemplares de edificações utilizadas como museus, datam do início do século XIX. Joseph Rykwert, em seu livro El Culto Al Museo, afirma que “a primeira tentativa de formulação tipológica foi levada a cabo na Galeria Dulwich, projetada por Sir John Soane em 1811. (...) o primeiro edifício característico do tipo é provavelmente o Altes Museum de Berlim, projetado por Karl Friedrich Schinkel em 1822/1823. Ele não traçou o tipo, que já havia sido criado em princípios do século na École Polytechnique de Paris; Schinkel, contudo, fez dele uma forma construída” (1).
O Altes Museum de Berlim persistiu durante muito tempo como exemplo de tipologia arquitetônica perfeita para receber e exibir peças museológicas. O século XX, porém, abrigou um outro conceito marcante na história da concepção dos museus – fruto até certo ponto do pensamento arquitetônico modernista. Essa proposta antevia os museus como grandes caixas de concreto, aço ou vidro, basicamente elementos neutros, mais emblemáticos pelas obras que abrigariam do que pelos volumes de que fossem compostos. Essa concepção adveio de uma tendência muito difundida entre museólogos e curadores de exposições, que rezava a neutralidade do envoltório como elemento essencial para a exacerbação do valor e da qualidade das obras expostas em seu interior. A Nova Galeria de Arte Nacional, projeto de Mies van der Rohe em Berlim, e no Brasil, o MuBE, de Paulo Mendes da Rocha, são alguns exemplares dessa tendência.
Em 1977, entretanto, surgiu outro divisor de águas na evolução do conceito de projetos para museus. Projetado por Renzo Piano e Richard Rogers e construído no Plateau Beaubourg, em Paris, o Centro George Pompidou, marcou a transição entre a “tradição moderna” (2) dos museus neutros e a tendência que norteou sua construção a partir da década de 80.
A própria descrição de Jean Baudrillard: “Com seus tubos entrelaçados e seu ar de ser o espaço para uma exposição universal, com sua (calculada?) fragilidade tão distante da mentalidade ou da monumentalidade tradicional, ele abertamente proclama que nada é permanente em nossos dias e em nossa época, e que a nossa própria temporalidade é a do ciclo que aceleradamente se recicla (...) O único conteúdo do Beaubourg é seu próprio volume, como um conversor, como uma câmara escura ou (...) exatamente como uma refinaria de petróleo” (3), demonstra o êxito dos arquitetos na criação de um museu à semelhança das embalagens de produtos (aquilo que Baudrillard chamou de simulacro), na intenção de tornar o museu um foco de atividade cultural, de horizontes muito mais amplos do que o conferido pelo seu acervo em si.
Na verdade, o museu parisiense já era fruto de constatações de pensadores da época, que davam conta da proximidade existente entre os museus e as grandes lojas de departamentos (como Walter Benjamin) e entre os museus e os supermercados (como Vittorio Gregotti). Além disso, há os que consideram o Guggenheim de Nova York, projeto célebre de Frank Lloyd Wright, com seu corpo cilíndrico derramando-se sobre a 5ª Avenida, como o principal precursor dessa arquitetura auto-referencial de museus.
Essa época, que se iniciou na França da década de 70 e culminou nos fins dos anos oitenta, ficou conhecida como “era da cultura”. Assim como o Beaubourg, tudo é passível de associações simbólicas, e qualquer objeto pode ter referências a práticas e tradições da sociedade. A noção que a sociedade fazia de cultura, acabou por se expandir e englobou praticamente todas as esferas do que conhecemos por vida social. Nos anos oitenta a política dos grandes Estados voltou-se para a cultura como meio de incluir os que eram excluídos social e economicamente.
Essa tendência originou-se em uma série de fatores, dentre os quais o mais importante são os interesses capitalistas. Segundo a historiadora Otília Arantes, a cultura deixou de ser um direito conquistado pelos trabalhadores no processo da Revolução Industrial para se tornar a mola propulsora da máquina que rege o capitalismo. Dessa forma, os centros culturais passam a ser centros de convivência e, acima de tudo, centros de conveniência, onde as pessoas possam encontrar bens de consumo e serviços que as propiciem ficar o maior tempo possível nesses lugares, desenvolvendo um número cada vez mais diversificado de atividades.
Diante desse novo panorama, instituições culturais renomadas, como o Guggenheim, o Metropolitan Museum e o Withney Museum, estão transformando-se em centros de lazer e comércio voltados para as massas, com estratégias agressivas de marketing, planos ambiciosos de expansão e projetos arquitetônicos de vanguarda. Cerca de 25 redes de museus americanos estão, atualmente, planejando gastar U$ 3 bilhões de dólares em projetos para a construção de novas filiais em todo o mundo.
Os museus: agentes transformadores do tecido urbano
Em conseqüência desse novo contexto, houve uma enxurrada de políticas compensatórias, visando englobar os excluídos sociais através dos mecanismos impulsionados pelo mercado cultural. A frase do ex-ministro francês da época do governo de François Mitterrand, Jack Lang, “A cultura é o nosso petróleo” (4), demonstra a importância desta “acumulação de capital simbólico” (5), um retorno material ocasionado por essas políticas que é previamente considerado e apreciado pelos produtores culturais. Sucedem-se as organizações de mega-eventos culturais patrocinados por grandes empreendedoras multinacionais, são oferecido pacotes culturais, projetos inteiros contando com infra-estrutura, logística e comodidades, visando estimular o “turismo cultural”. Essas políticas abrem mão, inclusive, da presença física dos visitantes, uma vez que até as amostras audiovisuais itinerantes encontram-se em expansão nestas iniciativas.
No entanto, não seria justo dizer que essa pasteurização da cultura venha recebendo o aval unânime da crítica internacional, que já começou a pôr em xeque a credibilidade, por exemplo, de exposições custeadas por entidades cuja motivação é cada vez mais dependente de aspectos monetários.
O diretor do Art Institute of Chicago, James Wood, declarou que “é necessário ficar atento às relações entre museus e empresas. Embora existam enormes pressões para os museus se tornarem mais competitivos, isso não significa que eles devam ter licença para tudo. No final, você tem de defender a qualidade do que está mostrando. E, se há dinheiro envolvido, isso fica mais difícil” (6).
O crítico Hilton Kramer, do jornal New York Observer, sobre a multiplicação das áreas de lazer, lojas, restaurantes e cafés dentro dos espaços dos museus, observou: “Como a maior parte do público americano não gosta de ver arte, os museus querem atraí-lo com outras atividades como comer pipocas, tirar fotos ou comprar lembranças para a família”, e sobre o patrocínio de U$ 15 milhões de dólares dado pela grife Giorgio Armani para a exposição de suas peças no Guggenheim de Nova York, disse: “Nos círculos de arte, isso criou a impressão – e acho que há muita verdade nisso – de que o museu está à venda” (7).
Conscientes da importância da cultura como fonte de investimento e de retorno financeiro, muitos governos estão realizando esforços hercúleos, inclusive com sacrifícios orçamentários em outras áreas, para aplicar recursos em políticas culturais de retorno rápido e seguro, e para atrair investimentos dos grandes grupos culturais interessados em estender suas atividades pelo mundo ou custear grandes exposições itinerantes.
As grandes redes mundiais de museus também estão interessadas nestas políticas. Muitas delas estão baseando seus projetos de expansão na experiência do Guggenheim Museum de Bilbao, que revitalizou a economia da cidade basca. Utilizando o museu de Frank Gehry como exemplo, há uma forte tendência de implantar estes museus em áreas industriais ou residenciais degradadas de grandes cidades, visando sua valorização e a reestruturação de seu uso futuro, oferecendo a oportunidade para a especulação imobiliária e para o aumento da arrecadação tributária das prefeituras.
Dessa forma, é interessante – tanto por parte dos museus como por parte dos administradores – situar seus projetos nessas áreas, uma vez que a aquisição do terreno é relativamente facilitada (pelo baixo preço de venda e pelos incentivos fiscais), além do aumento da receita dos municípios com impostos cobrados nas áreas posteriormente valorizadas e com o aumento das atividades relacionadas ao turismo e à prestação de serviços.
Sob o ponto de vista da administração, um exemplo interesante diz respeito ao governo britânico, que criou há alguns anos a Millenium Comission, um plano concebido para subsidiar e promover a construção de obras nas áreas de esportes, ciências, artes e lazer que revigorassem o tecido urbano (e por conseqüência, as condições de vida de seus habitantes) das cidades da Grã-Bretanha, em especial da capital inglesa, Londres.
Dentre as obras desse plano, está o Tate Modern Museum, projetado pelo escritório suíço Herzog & de Meuron e instalado em uma antiga estação de energia desocupada às margens do Rio Tâmisa. Seguindo a tendência de renovação de áreas industriais desvalorizadas, o Tate Modern colaborou para a revitalização da região de Bankside, em Southwark, uma zona portuária extremamente degrada. Próximas ao museu estão as obras de reconstrução do Globe Theatre e a Millenium Bridge, também inseridas no “pacote” de revitalização de Bankside.
Outra intervenção que faz parte deste plano é a Queen Elizabeth II Great Court, inaugurada em 2000. O projeto, que é uma remodelação do pátio central do Museu Britânico de Londres, ficou a cargo de Norman Foster, e valorizou uma área importante, responsável pelo acesso a todas as dependências do museu. Com as modificações, a Great Court pode ser utilizada a qualquer hora do dia e em quaisquer condições climáticas, o que cabe bem aos propósitos de seus empreendedores, que visam acomodar e incrementar a demanda de 300 mil pessoas que visitam o lugar a cada ano. Para isso, será aberta ao público da Great Library, uma biblioteca situada no centro do complexo e que desde 1857 nunca esteve acessível. Além disso, para ampliar as atividades do museu (e nisso reside todo o interesse do projeto para esse estudo), a praça abriga uma escola, dois cafés, um restaurante e uma livraria.
Outra política, que ilustra o interesse das grandes redes de museus nessa nova política, é a expansão agressiva da rede Solomon Guggenheim. Além de projetos para filiais, em Veneza, no Rio de Janeiro, e na zona sul de Nova York, o Guggenheim, em parceria com a rede russa State Hermitage, de São Petersburgo, anunciou em 2001 a abertura de duas galerias, totalizando 712 m², no lobby do Venetian Hotel, em Las Vegas.
O projeto, que foi encomendado ao holandês Rem Koolhaas, causou estranheza na comunidade museológica, já que, para uma instituição que abriga e conserva o que há de melhor da produção estética da humanidade, nada mais suspeito que se instalar na capital mundial do entretenimento e do mau gosto. Se considerarmos, porém, que Las Vegas é a cidade americana que apresenta a maior taxa de crescimento, e que apresenta um grande fluxo de turistas que a visitam todos os anos, não é difícil imaginar as intenções dos investidores nestas galerias.
Outra estratégia da rede Solomon Guggenheim, muito conhecida e comentada no Brasil, é a instalação de uma filial na cidade do Rio de Janeiro. Nomes como o do próprio Frank Gehry foram cogitados para projetar o museu, que acabou sendo confiado ao francês Jean Nouvel.
A nova unidade será implantada no cais do porto, na região conhecida como Píer da Mauá, desativado há mais de uma década, e deverá atender as diretrizes do Plano de Revitalização da Zona Portuária (o programa prevê a recuperação desta zona através da construção de nova estrutura viária, entre outras coisas). O contrato firmado entre a rede e a prefeitura do Rio de Janeiro, prevê a construção, além do museu, de um hotel, uma casa de espetáculos e um centro de convenções. Segundo o prefeito carioca César Maia, “o Guggenheim, por ficar na fronteira entre a arte e o entretenimento, constitui-se numa maneira de trazer a população aos museus” (8). Essa observação apenas corrobora a posição dos novos museus como agentes transformadores do tecido urbano e a posição das políticas culturais como supostas reabilitadoras da população excluída, na visão dos administradores das cidades.
Mas como os museus se tornaram catalisadores tão importantes da dinâmica das grandes cidades? E como se dá esse processo? Há aproximadamente dois séculos, os surtos de criação de espaços museológicos acompanham as fases de grande concentração de capitais, aliando-as à necessidade de exibir a produção geradora e representativa de expansão econômica e comercial. Segundo Françoise Choay, em seu livro A alegoria do patrimônio, o monumento histórico sofreu um processo de valorização com o passar dos anos, e com a nova política cultural das últimas décadas, criaram-se mecanismos destinados a valorizar o patrimônio – no caso dos museus, receptáculos deste patrimônio – e a transformá-lo em produto econômico, dentre as quais destacam-se a restauração, a revitalização, o mise-en-scène, e a animação cultural.
Nos exemplos que encontramos com mais freqüência na atualidade, o mise-en-scène e a animação cultural consistem nas operações mais utilizadas pelos museus. Enquanto o mise-en-scène trata de apresentar o museu como um espetáculo (e a arquitetura contribui definitivamente para esse fato), de uma tentativa de mostrá-lo sob seus ângulos mais favoráveis, a animação cultural propõe tornar o museu mais consumível através de recursos alheios à sua apropriação pessoal. No entanto, a utilização indiscriminada desses recursos pode trazer prejuízos, sim, para o próprio museu, que pode perder seu valor cognitivo e artístico. Segundo Choay, “associam-se exposições, concertos, óperas, representações dramáticas, desfiles de moda ao patrimônio, que os valoriza; este por sua vez pode, em decorrência dessa estranha relação antagônica, ser engrandecido, depreciado ou reduzido a nada” (9).
Os museus e a gentrificação: o viés da moeda
É no plano social do planejamento urbano, no entanto, que se verifica a precariedade da elaboração destas políticas culturais na tentativa de propor uma nova relação entre a urbis (o suporte físico da cidade e marco da urbanidade) e a civitas (condição de civilidade, de cidadania).
O planejamento estratégico das cidades deve ser discutido entre viabilizadores (o poder público), investidores (o capital privado) e usuários (a comunidade), identificando-se os planos e programas que maximizem e compatibilizem os esforços e investimentos, e norteiem a implementação integrada de ações e projetos a curto, médio e longo prazos. Os resultados positivos, por sua vez, acabam por realimentar o processo atraindo novos investidores, novos moradores e, conseqüentemente, novos consumidores, gerando um círculo virtuoso de concepção e aplicação destes programas urbanos.
Já sabemos, entretanto, que não é dessa forma que ocorre. Na competição entre as grandes cidades por novos investimentos que alavanquem a economia regional e gerem novos recursos, e na pressa das grandes corporações culturais em agregar novos mercados para o seu produto, os administradores e os investidores raramente levam em consideração as verdadeiras conseqüências sociais das transformações urbanas geradas pela política de culturalização e pela implantação de grandes museus nas condições de vida da população das áreas pretensamente “revitalizadas”. Com os ventos da economia globalizada e a violência da especulação imobiliária, os habitantes originais das áreas que sofrem a influência econômica de um museu, acabam sofrendo com um mal relativamente novo no quadro da dinâmica social: a gentrificação.
O termo gentrificação é um neologismo que deriva do termo gentrification, que pode ser traduzido como enobrecimento. É um termo relativamente novo no vocabulário urbanístico e diz respeito à alteração da composição social original de determinadas áreas de uma cidade em decorrência de programas de requalificação de espaços urbanos estratégicos, quando estes visam interesses imobiliários, empresariais e financeiros. Em outras palavras, significa a expulsão de moradores de áreas urbanas degradas, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, em decorrência da valorização desta área por uma intervenção urbana.
Essa expulsão ocorre basicamente de duas formas: com a valorização das áreas anteriormente degradadas, a bolha especulativa acaba tornando o custo de vida e o preço dos aluguéis inviáveis aos padrões dos moradores originais (ou torna sua venda atrativa), forçando sua mudança para áreas mais distantes ou igualmente degradadas; a outra forma de gentrificação é promovida pela própria administração pública, através da reintegração de posse, que nada mais é que a reapropriação dos imóveis abandonados ou em contrato de comodato pelo governo através da lei, ou pela intimação à mudança das famílias que os habitam (como aconteceu em Salvador, no Pelourinho).
O exemplo da cidade de Bolonha – descrito por Silvio Mendes Zanchetti – não diz respeito propriamente a museus, mas serve para ilustrar como a política de revitalização urbana através da culturalização favorece a especulação imobiliária, originando a gentrificação. Nessa cidade, iniciou-se uma política de revitalização dos bairros residenciais populares localizados nas proximidades do centro histórico, visando tornar a cidade um pólo aglutinador de recursos destinados à promoção cultural. A proposta inicial de recuperar os exemplares construídos para o uso dos habitantes locais foi a grande bandeira política dos administradores da municipalidade e da intelectualidade urbanista que pactuava com essa política.
Durante os primeiros anos, o sucesso do projeto de conservação foi indiscutível. Os bairros recuperados permaneceram residenciais até a década de 80. A partir daí, porém, a instalação da nova Universidade de Bolonha nos bairros recuperados e o crescimento do comércio terciário sofisticado da cidade provocaram um aumento considerável no preço dos imóveis na área de projeto. As residências populares foram transformadas em residências estudantis ou de professores da universidade. As áreas térreas, por sua vez, foram ocupadas por restaurantes, bares, livrarias, clubes de música, galerias de arte, enfim, por todo o tipo de comércio e serviço ligado à vida intelectual da universidade.
O centro histórico de Bolonha, então um dos mais sofisticados da Itália, expandiu-se fortemente nas duas décadas finais do século passado, avançando sobre a área recuperada de residência popular, reforçando o processo de gentrificação (10). Atualmente, a política de recuperação da área histórica de Bolonha acabou por aceitar a gentrificação, buscando somente minimizar seus impactos em famílias mais pobres e idosos.
Na área das políticas culturais, podemos voltar ao caso das Docklands de Londres. Essa área surgiu no início do século XIX, com a Revolução Industrial, para atender as necessidades de escoamento da produção industrial. Com a evolução do processo e a mudança das indústrias para áreas mais afastadas, muitas empresas faliram e os prédios ficaram, restando o bairro. As condições da área, agravadas pela distância das áreas centrais, acabaram desvalorizando o preço dos imóveis, o que induziu sua ocupação pela população de baixa renda, de pouco poder político e com uma infinidade de problemas sociais. O crescimento territorial da capital inglesa, no entanto, trouxe à tona o problema da área, que acabou ficando próxima a áreas mais valorizadas.
Foram programados planos urbanísticos, intervenções espaciais, incentivos fiscais e reduções de impostos (através da arquicitada Millenium Comission) tentando atrair investidores para permitir a revalorização cultural da área. Após muito investimento público e privado, e com a instalação do Tate Modern Museum, juntamente com o Globe Theatre e a Millenium Bridge, as Docklands constituíram-se na menina dos olhos de Londres, apresentando atualmente o metro quadrado mais caro da Europa.
Por outro lado, com valor venal suficientemente alto para devolver com juros cada libra aplicada, a manutenção dos imóveis acabou insustentável para seus antigos moradores, que acabaram obrigados a migrar para lados mais baratos da cidade, carregando consigo as mesmas limitações e problemas. E a história toda foi se repetir em outro lugar. Em outras palavras, aparentemente solucionado um problema, outro foi apenas transferido, e este continuará cobrando seu preço à sociedade até ser permanentemente resolvido.
Outros museus: alternativas para o processo
Devido ao impacto causado pela dimensão monumental de projetos como o do Guggenheim de Bilbao, e devido à discussão causada pelos investimentos necessários para viabilizar esses planos, já há uma reação da intelectualidade internacional a esse processo. Essa crítica, contudo, tem optado pela saída mais óbvia: o mero desvirtuamento. Se por um lado, muito se alardeou acerca das políticas culturais, da transformação de museus em shopping-centers, e da expulsão das populações de seus locais de origem, por outro lado, parecemos mais empenhados em livrar as cidades da existência dos museus do que em buscar uma solução para que os centros culturais incentivem o desenvolvimento das cidades também no sentido social.
Na contramão desta vertente, começaram a aparecer – embora raros e de difícil estudo – alguns exemplos de museus preocupados com a escala social. Essa política de implantação, que vem sendo chamada de política de “desenvolvimento durável”, preocupa-se em utilizar as justificativas culturais para revitalizar áreas históricas importantes da cidade, porém preservando seu entorno e integrando os atuais habitantes às atividades desenvolvidas no novo contexto criado.
Na Bélgica francesa, o Museu de Arte(s) Contemporânea(s) da Bélgica, conhecido como MAC’s, constitui-se em uma experiência pioneira. Para os padrões europeus, a Bélgica possui um panorama social delicado, com 40% da população economicamente ativa do país atualmente desempregada. Dessa forma, a equipe responsável pela instalação do museu – que abriu suas portas em setembro de 2002 – preocupou-se desde o início em não transformar o equipamento cultural em uma nave alienígena cercada deste mundo simples por todos os lados.
Caso o plano de implantação do MAC’s fosse semelhante ao do Guggenheim de Bilbao e dos outros museus arquicitados, fatalmente a população original acabaria sendo obrigada a se mudar para locais menos valorizados. Optou-se então por um enfoque completamente oposto ao do urbanismo vigente nas grandes metrópoles, procurando criar uma identificação cada vez maior entre o museu e a população vizinha e entre esta e o seu território. Após seis anos de trabalho e quase sete milhões de euros gastos, o MAC’s transformou-se no protagonista no plano de revitalização desta área da capital belga.
Situado no local da antiga mina de carvão Grand Hornu, próxima a Mons na região conhecida como Borinage, o Museu de Arte(s) Contemporânea(s) (MAC’s) é um importante acontecimento da Comunidade Francesa da Bélgica. Projetado por Pierre Hebbelinck, figura importante na recente restauração arquitetônica da região da Wallonia, o novo museu é o auge dos esforços iniciados no final da década de 1980 por Claude Durieux para transformar o local.
A Grand Hornu é um dos mais soberbos exemplares de arquitetura industrial da Europa Setentrional construído sobre as bases da filosofia dos familistérios. Sua arquitetura em estilo neoclássico reflete os ideais utópicos para comunidades proletárias que teve sua expressão mais forte no trabalho do arquiteto francês Nicolas Ledoux. De fato, foi um dos discípulos de Ledoux, Bruno Renard, o escolhido pelo empresário Henri de Gorge para executar este projeto visionário (11). Construída entre 1810 e 1830, a Grand Hornu é um dos mais impressionantes complexos arquitetônicos concebidos para propósitos de organização de força de trabalho. Mantendo sua vocação como edifício multifuncional, transformou-se no começo dos anos 90 em ponto turístico e em centro de empreendimentos culturais e científicos. Tomando seu lugar ao lado do Grand Hornu Images, edifício que recepciona os visitantes e organiza exposições de ciência popular e arte aplicada, e o Centro para Tecnologias Avançadas, uma instituição educacional, o MAC’s acabou achando seu locus natural.
O programa arquitetônico do MAC’s inclui restaurações e novas edificações, e foi resultado de estreita colaboração entre os donos da instituição, os usuários e o arquiteto. Equilibrando funcionalismo, criatividade e economia, a forma da edificação harmoniza com seu entorno ao mesmo tempo em que ressalta seu visual contemporâneo. Isso explica sua horizontalidade, seu alinhamento com a estrutura que abrigava anteriormente as oficinas da mina, e suas numerosas aberturas para o terreno da Grand Hornu.
Localizada na antiga oficina de confecção de postes, a recepção serve aos usuários do museu e aos visitantes do terreno da mesma forma, incentivando os portadores de ingresso a descobrir ambos os componentes na ordem e no ritmo que melhor lhes convier. As galerias de exposição variam em tamanho e em forma a fim de otimizar a apresentação das obras de arte e permitir uma experiência arquitetônica única para o público. Complementando as galerias, depósitos e escritórios, o MAC’s possui um auditório para 60 lugares, uma oficina de atividades para crianças, um café, um saguão e uma livraria.
Da mesma maneira que o museu busca uma maior integração com a população local, através de exaustivas campanhas educativas, a arquitetura promove a relação entre os ambientes e o que a natureza local oferece. Uma luz cinzenta, invernal, domina o ambiente. O teto intercalado de vidro e concreto deixa os tênues raios solares se espraiarem nas paredes onde estão expostas as obras de arte da Square Room, por exemplo. O vidro prioriza a luz natural, e deixa também se estabelecer o diálogo entre o contemporâneo e o patrimônio histórico. “Não era necessário santificar o que já existia, mas aproveitar suas belezas e potencialidades” (12), explica o arquiteto Pierre Hebbelinck.
Porém, o grande diferencial do museu belga são suas políticas de integração com a população vizinha original da área, não apenas atualmente, mas também durante todas as etapas de seu planejamento e construção.
Boa parte do orçamento do museu foi destinado à formação dos vigias, todos recrutados na vizinhança, entre desempregados sem atividade há quase dois anos. Todos os quinze recrutados receberam treinamento específico, incluindo noções de história da arte e visitas a outros museus, além das noções básicas de segurança. Segundo o diretor do museu, Laurent Busine, “não são apenas quinze pessoas, são quinze famílias que vão se restabelecer socialmente e viver de um contato com a arte” (13).
Um dos objetivos primordiais dos empreendedores é reforçar a relação do museu com a história do lugar, e a própria relação das gerações futuras com suas raízes. Durante os dois anos e meio que antecederam a inauguração do museu, adolescentes foram incentivados a entrevistar os antigos trabalhadores das minas de Grand Hornu, como parte do estudo da primeira obra da coleção do MAC’s: uma parede de caixas de latão com nomes e fotos de gente do local, obra do polêmico artista francês Christian Boltanski. Segundo o próprio diretor do museu, Laurent Busine, “não vamos reunir peças da mitologia da arte contemporânea, como fazem tantas instituições européias. A universalidade à qual aspira o MAC’s é fundada na capacidade dos artistas em evocar a diversidade do mundo na singularidade da sua criação”.
Além disso, o departamento de atividades culturais do MAC’s organiza e conduz eventos especiais para jovens e adultos interessados em aumentar sua compreensão de arte contemporânea. Desenvolvidas no museu ou em outros locais da comunidade, as atividades são projetadas para incentivar os participantes, independente de sua idade e experiência, a se aproximarem de forma ousada e crítica da arte, com as mentes abertas. O enfoque é direcionado nas formas interdisciplinares de arte cujo ímpeto criativo baseia-se em fontes parcialmente não-verbais, não racionais. Somadas às atividades isoladas, o MAC’s regularmente agenda uma grande variedade de eventos educacionais para os diferentes segmentos da comunidade.
Todas essas atividades fazem parte de um lento processo de multiplicação, que abrange todas as gerações, embora as crianças sejam o alvo privilegiado. A primeira sala do museu é completamente dedicada a elas, onde meninos e meninas desenvolvem atividades artístico-pedagógicas.
Um dos programas que assegura a difusão da arte contemporânea através da aproximação desta com as famílias é o chamado Chez le Voisin (“casa do vizinho”). Esse programa consiste em uma dúzia de convidados reunidos em torno de uma obra de arte contemporânea temporariamente instalada na sala de estar de um membro da comunidade. Um membro da administração do museu está presente para discutir a obra em um ambiente informal, de convivência.
Outra iniciativa interessante são os Mini MAC’s, cadernos infantis para serem utilizados em casa ou na escola, com os pais ou professores. Cada edição enfoca uma única obra da coleção do museu, descrita e discutida em linguagem simples. Contêm também um calendário dos eventos patrocinados pelo museu. Desdobrado, o documento torna-se um pôster.
A L’Heure de l’Art (“hora da arte”) é uma atividade itinerante de 2 horas sobre arte contemporânea para crianças ou adolescentes. Ela acontece nas instalações de bibliotecas, centros e associações sócio-culturais da comunidade que também estejam participando do projeto. Os jovens descobrem, durante a apresentação dos slides a linguagem e o método do artista contemporâneo. Graças ao workshop que se segue, eles conseguem um entendimento maior dos conceitos característicos do trabalho deste artista. Essa atividade também é possível de ser organizada em sala de aula, como uma atividade preparatória para visitas ao museu.
O MAC’s justifica assim, sua existência em uma das áreas de maior densidade cultural da Europa e já saturada de museus: arraigando-se na história do local e direcionando-se ao universal, entre o social, o econômico e o artístico, apoiando-se no passado para elaborar seu presente e seu futuro. Além disso, outros museus, como o Museu Mediterrâneo de Arte Contemporânea de Palermo (MMAC), já estão incluindo o MAC’s como fonte de inspiração em seus objetivos de reativar antigas áreas industriais da cidade através de um museu (14). Embora não sejam em número suficiente para constituir uma tendência, serão sempre alternativas interessantes para os problemas acarretados pelas novas políticas culturais.
notas
1
ZEIN, Ruth Verde. "Duas décadas de arquitetura para museus". Projeto, n. 144, São Paulo, 1997. p. 30.
2
Idem, ibidem.
3
BRAUDILLARD, Jean. "The singular objects in architecture". Architectural Review, n. 97, Londres, p. 53.
4
ARANTES, Otília. "A era da cultura". In: Urbanismo em fim de linha. São Paulo, Edusp, p. 152.
5
Idem, ibidem.
6
Apud CALIL, Ricardo. "Campeões de bilheteria". Gazeta Mercantil, São Paulo, 2002, p. 12.
7
Ide, ibidem.
8
FIGUEIROLA, Valentina. "Guggenheim-Rio à vista". AU – Arquitetura & Urbanismo, n. 96, São Paulo, 2001, p. 16.
9
CHOAY, Françoise. "O patrimônio histórico na era da indústria cultural". In: Alegoria do patrimônio. São Paulo, Edusp, 2000, p. 216-217.
10
ZANCHETTI, Silvio Mendes. Novas estratégicas de conservação e gestão urbana, <www.urbanconservation.org>.
11
El complejo urbanístico incorpora operaciones de extracción de carbón, abrigos de trabajadores, además de equipamientos sociales, médicos y educacionales, y grande viviendas para los ejecutivos y administradores.
12
ALBEA, Rodrigo. "Museu correto". Correio Braziliense, caderno Pensar, Brasília, 2002, p. 6.
13
idem, ibidem.
14
PAGLIA, Valeria La. "Presentato il progetto di um museo meditterraneo di arte contemporânea". Rivista Prometheus, n. 3, Palermo, 2002, p. 7.
sobre o autor
Marcelo Borges Faccenda é estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília - UnB. Colaborou com o Prof Nonato Veloso nos concursos para a nova sede do Grupo Corpo de Dança (menção honrosa) e para a nova sede do Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia de Alagoas - CREA-AL (2º lugar) e integrou a equipe do arquiteto Paulo Henrique Paranhos no concurso para o Memorial à República de Piracicaba (destaque)