Uma conotação regional para o conceito de lugar
Há um crescente interesse no retorno ao debate sobre lugar na área de Arquitetura e Urbanismo, interesse esse que só encontra paralelo na também crescente discussão sobre as práticas que vêm ocupando as pautas do chamado urbanismo pós-moderno. À medida que avança o que, convencionalmente, está-se chamando de pós-modernidade, avança também o interesse pelo estudo de como os lugares vêm sendo produzidos nesses novos tempos. Neles, discute-se desde a construção de lugares fantasiosos, voltados a práticas consumistas ditadas por um urbanismo comandado pelo city marketing – como nos ambientes tematizados – até a (re)construção de lugares que reforçam as imagens que povoam a subjetividade dominante num certo contexto, e que mimetizam as formas mais representativas desse contexto – como nas requalificações de áreas históricas degradadas. É nesse último caso que um novo olhar nos estudos de lugar se faz particularmente interessante, em especial quanto ao papel cada vez mais decisivo que a subjetividade vem trazendo às eventuais releituras das bases mais clássicas do conceito. E de como esses novos lugares vêm garantindo que essa subjetividade permaneça sustentável entre os grupos humanos que lhes dá origem. Em outras palavras, da sustentabilidade da subjetividade, condição que se faz necessária para os lugares do urbanismo pós-moderno.
Lugar é um componente essencial no campo do projeto arquitetônico-urbanístico. Só que seu maior peso costuma recair em seu papel geográfico, isto é, na participação físico-espacial que detém em decisões projetuais. De fato, por longo tempo, foi o gênio do lugar o que demonstrou revelar maiores potencialidades na vinculação entre sítio, e a vocação de que este sítio está dotada para realizar certas funções arquitetônicas. Só que, em sua evolução, o conceito de lugar transita de um papel funcional, que lhe cabia quando do desempenho das metas que um urbanismo dito Modernista lhe atribuía, para uma posição, agora já após o Modernismo, que passa a nele reconhecer, mais acentuadamente, as manifestações simbólicas de natureza subjetiva, que ficam associadas aos significados que os moradores de um determinado contexto vinculam às características ambientais ali presentes.
Para o autor é bastante clara esta associação entre as dimensões psicológica e física da conceituação de lugar: lugar é um espaço da cidade que se torna percebido pela população por conter significados profundos, representados por imagens referenciais fortes. Por isso mesmo, a gênese de um lugar urbano comporta necessariamente um somatório de fatores físicos + fatores psicológicos, que tanto têm a ver com o desenho da configuração morfológica urbana, quanto com o comportamento interativo adotado pelas pessoas na utilização dessas formas (2). Ora, isso por si só já se constitui num tema interessante a investigar, mas, pode também levar a perspectivas novas para os estudos de lugar, como, por exemplo, a de se extrapolar a dimensão urbana – costumeiramente associada a lugar – passando a indagar como se dariam as coisas numa escala regional: haveria algum limite, em termos de extensão territorial, para que se manifestasse o fenômeno de lugar? Seria viável especular-se sobre a ocorrência de lugares em nível regional? Isso implica reconhecer que, mesmo que os fenômenos sensoriais variem de acordo com variações nas características locais – mesmo que esses fenômenos sejam sentidos individualmente e em lugares individualizados – tudo, na essência, em termos subjetivos, proviria de uma experiência adquirida regionalmente (3).
Esse será o tipo de reflexão que, no fundo, ocupará as preocupações do presente texto. O lugar nele analisado é de uma região da Alemanha, a região do Ruhrgebiet. Nela, destaca-se o papel que um projeto denominado IBA Emscher Park passou a representar para a população de toda a região, em especial, no campo subjetivo. O momento, para o texto, parece aprazado: o recente Informativo Vitruvius n. 4 (setembro 2003) trouxe-nos o relato de todos os acontecimentos ocorridos no “Fórum de Debates” da 5ª Bienal Internacional de Arquitetura e Design de São Paulo, no qual, um dos temas de interesse foi o Projeto IBA Emscher Park. De forma análoga, o IAB-RS está promovendo, em Porto Alegre, o Ciclo de Palestras “Trânsitos Sem Fronteiras – a subjetividade contemporânea na Arquitetura, Urbanismo e Paisagismo”, no qual, a descrição do IBA Emscher Park foi uma das matérias apresentadas (4).
A experiência do projeto Iba Emscher Park
O Projeto denominado Internationale Bauausstellung (Exposição Internacional de Construção), conhecido simplesmente por IBA Emscher Park (5), foi estabelecido na região do Ruhrgebiet, na Renânia do Norte/Westphalia (6), a partir de 1989, com duração pré-estabelecida e encerramento fixo marcado para 1999. Não se trata propriamente de uma Exposição no verdadeiro sentido do termo, mas, sim, de uma programação de atividades unindo diversos organismos (administrações locais, empresas industriais, ONGs, grupos de pressão, e a população em geral), cujo objetivo maior é o de impulsionar novas idéias e projetos, adotando nisto um papel instigador. Seus objetivos específicos se prendem às áreas de desenvolvimento urbano, social, cultural e ecológico, considerados como setores básicos para impulsionar e direcionar as mudanças numa antiga região industrial em processo de transformação.
O projeto existe para assistir a esse processo: ao empregar uma exposição da construção como instrumento prático, o IBA transforma essa exposição numa central de discussões políticas e profissionais, voltada especificamente ao debate do desenvolvimento da região. Em seu conjunto, abrange 17 comunidades locais junto ao rio Emscher e procura atuar de duas maneiras simultâneas: como um moderador e como um motivador de projetos. Os projetos, entretanto, são executados através de contratos autônomos, realizados pelas administrações locais, por empresas independentes, ou, ainda, por organismos promotores de iniciativas desenvolvimentistas. Trabalharam na organização do programa cerca de 30 pessoas, sob a coordenação do Professor Karl Ganser, além de um colegiado de 18 consultores de disciplinas específicas (7).
A região do Ruhr, com o carvão e o aço, se tornou uma das mais formidáveis regiões industriais do mundo. O preço a pagar por isto foi o da alta poluição ambiental e da dependência econômica concentrada exclusivamente num só setor. As mudanças não tardaram a surgir. O carvão passou a ser substituído pelo petróleo, pelo gás natural e, mais recentemente, pelo carvão importado, que acaba custando menos do que se fosse extraído no local. Em conseqüência, a região entrou em decadência, enfrentando crises sucessivas, determinando um elevado desemprego de 20% nos últimos anos. Além da deterioração natural, os ambientes urbanos também entraram em declínio e, ao mesmo tempo, surgiram os brownfields, numerosos e desoladores. Foi esse o contexto no qual se estabeleceu o IBA Emscher Park em 1989.
O IBA iniciou fazendo um chamamento – um concurso de idéias – atendido por mais de 400 participantes, dispostos a emitir posições a respeito de assuntos culturais, ecológicos, econômicos, arquitetônicos, urbanísticos e sociais.
Um dos pontos de partida foi o de considerar a paisagem natural e a bacia hídrica como recursos de infraestrutura. Os monumentos industriais passaram a ser concebidos conceitualmente como transmissores de uma mensagem subjetiva de cultura, isto é, vistos como signos numa paisagem que se esvaziava de marcos orientadores, e na qual passaram a representar o papel simbólico da presença de uma identidade regional.
O começo heróico do projeto foi bastante prejudicado pela queda do Muro de Berlim (coincidentemente, o projeto iniciou em pleno ano de 1989) e pela união das duas Alemanhas. Na época, a maior ênfase das preocupações do Estado alemão recaiu, coerentemente, na busca de estratégias de nível nacional, destinadas a reconstruir o considerável caos deixado pelo comunismo na Alemanha Oriental. Para superar as dificuldades iniciais, o IBA, num segundo momento (após 1994, ano da apresentação-ínterim sobre o andamento dos trabalhos), necessitou introduzir visões novas de planejamento, algumas até bastante peculiares (8):
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A filosofia geral do projeto passa a ser a de promover reformas estruturais – mas, quase sem reformas. Por exemplo: os projetos não buscam negar o passado industrial que dominou na região, não almejam disfarçar, criar paisagens novas, arcadianamente bucólicas e limpinhas. Prevalece neles um espírito de mudanças contidas: inovação, sim, mas com moderação!
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Os projetos vão se precipitando, ocorrendo praticamente na ausência de grandes planos globais. Isto é: os projetos vão sendo lançados sem aguardar os resultados dos planos nacionais, regionais, institucionais, em pauta no país. Ora, isso implica em uma forma de pensar rara e difícil para as concepções tradicionalmente ortodoxas, predominantes na mentalidade européia de planejar. O pensamento que prevalece no IBA adquire uma audácia inesperada: os planos é que poderão aprender depois o que os projetos, já em ação, passarão a lhes ensinar, introduzindo-se, com isso, uma espécie de improvisação metodológica bastante inusual, calcada em bases semi-intuitivas, e que trabalha muito com a percepção de fenômenos em ação no ambiente – vale-se de um timing fenomenológico.
Compreensivelmente, numa região tão maltratada em termos ambientais, a sustentabilidade é buscada com vigor. A inovação se faz presente também aí: busca-se uma sustentabilidade sem manual, ela mesma lançando mão de alternativas experimentais. Nesse raciocínio, os projetistas passam a se perguntar sobre proposições insólitas: por que não reusar um daqueles velhos gasômetros, enormes e cilíndricos, ostensivamente obsoleto, agora esvaziado de todo o gás, enchendo-o de água, e nele inaugurando, por exemplo, um tanque para aulas práticas de uma inusitada escola de mergulhos subaquáticos? Surpreendentemente, a criatividade germânica não hesita em implementar alternativas assim singulares. Afinal, não foi essa mesma ousada criatividade que, outrora, deu origem à pujança econômica da região? Em essência, pode-se dizer que prevalece nos trabalhos a idéia da recuperação da imagem da região, da identidade da região, de iniciativas que assegurem a permanência da subjetividade que a população mantém a respeito de seu habitat, que regenerem a auto-estima esmaecida. Que façam o gênio do lugar voltar ao lugar de onde ameaça se afastar. Ainda mais que este lugar ocupa hoje uma vasta extensão regional.
As principais frentes de trabalho recaíram sobre cinco temas: Monumentos industriais (reuso de Brownfields como fonte de revitalização das bases culturais); Trabalho (reuso de Brownfields como parques tecnológicos); Habitação e desenvolvimento urbano (recuperação e novos empreendimentos); Paisagem (criação de parques paisagísticos); e Ecologia (regeneração do sistema hídrico). Escusado comentar que todos ficaram embasados por um alentado programa de iniciativas sociais, visando à retomada do emprego e à criação de novos recursos humanos.
Exercícios de sustentabilidade à luz da subjetividade
Isto não é um gasômetro
Há um limite bastante tênue entre a magia de um lugar e aquilo que pode se tornar um símbolo dessa magia. Saber reconhecer a presença do genius loci de que um lugar está imbuído, é mais que meio caminho andado para conseguir fazer ali aflorar de verdade o gênio de um lugar, materializando-o por meio de uma construção. Há pelo menos um dos projetos IBA que não só comprova isso, como o faz com enorme competência: o monumental ícone regional representado pelo Gasômetro, em Oberhausen (e, claro, a genial escultura The Wall, construída pelos artistas plásticos Christo e Jeanne-Claude que nele está instalada).
Toda a riqueza da região foi gerada em cima dos pesados maciços que se avolumaram ao longo dos mais de 150 anos de industrialização. Como testemunhas da pujança de um passado recheado de empreendimentos notáveis, as construções representam relíquias valiosas. Mas no Ruhrgebiet o passado não passa. As relíquias remanescentes não hesitam em se tornar voluntárias para, diligentemente, narrar a história da região. E não só a história arquitetônica, mas a história da própria vida da região, da formação social de toda uma população, da subjetividade entalhada nas mentes dessas pessoas.
Aquele que é o maior gasômetro da Europa transforma-se no grande símbolo a estimular o potencial cultural da região. Com seus 117 metros de altura e um diâmetro de 67 metros, o Oberhausen Gasometer é um grande objeto oco, cujo vazio está sendo preenchido por uma vida que renasce, tornando-o um símbolo emblemático de onde se gesta toda uma nova era para a vida da região. E o marco permanece. Ele é um gasômetro, mas é também um monumento aos novos tempos, ele inspira uma reinterpretação dos feitos humanos, ele ingressa no universo cultural – como bem o indica com requintado humor o registro de artistas locais, ao imaginá-lo inserido em obras de arte notórias. No interior do Gasometer, The Wall, uma cortina de tonéis multicoloridos rememora o destino da região no campo energético, desde o ouro negro do carvão até o do petróleo e funde, simbolicamente, num só recinto, as duas metades da subjetividade alemã, há bem pouco tempo separadas por uma cortina de ferro.
Talvez seja mesmo nas pautas culturais que recaiam as experiências mais gratificantes dos projetos IBA Emscher Park. Pelo menos um outro grande destaque está a indicar isso, a exposição Sonne, Mond und Sterne (Sol, Lua e Estrelas), na mina de Zollverein, em Essen. Lá, na própria usina de transformação do carvão, realiza-se uma mostra centrada em acompanhar a evolução da energia, desde os tempos em que era obtida a partir da extração mineral até a produção mais recente, empregando tecnologias calcadas na captação solar. O magnífico projeto arquitetônico original (1928), de Fritz Schupp e Martin Kremmer, muito na linha Bauhaus, introduziu inovações que até hoje exaltam a engenhosidade germânica, como a da completa automação do transporte de carvão por meio de um sistema de esteiras rolantes, que o conduz até os altos fornos mediante o simples acionar de um botão (isto, em plenos 1920s). Destaca-se também a intervenção de Norman Foster na mina Zollverein, para nela abrigar o Design Centre da Renânia do Norte/Westphalia (1990s).
Mas o desfile de idéias para promover a re-arquitetura do patrimônio histórico-industrial não pára por aí. O IBA apresenta uma sucessão de variações exemplares através das quais ensaia como promover o re-uso simbólico do significado cultural oferecido pela arquitetura. Agraciada por obras do início do século XX que marcaram a arquitetura industrial de boa parte do mundo (América do Sul, inclusive), desenhadas por arquitetos do teor de um Peter Behrens, por exemplo, a região está conseguindo manter alguns de seus exemplares intactos. O IBA fez sua parte ao ressuscitar construções fadadas ao desaparecimento, como o projeto para o GAAG – Galerie Architektur und Arbeit, numa antiga usina de mineração, hoje destinado a sediar congressos e exposições (9); e, também, exemplares de outras eras, como o projeto de envelopamento por meio de uma pele de vidro para o Schloss Horst, castelo renascentista datado de 1556 e, hoje, um centro cultural em Gelsenkirchen.
Sai o carvão, entra o sol
Quando as minas de carvão e ferro e as usinas de aço deixaram o Ruhrgebiet, deixaram igualmente espaços vazios nos centros das cidades. Sob o mote “trabalhando nos parques”, o IBA passou a neles estabelecer pólos de alta tecnologia. Esses projetos, resultantes de parcerias públicas e privadas, seguem as diretrizes dos modernos parques tecnológicos mundiais, como a abundância em áreas verdes, altos padrões arquitetônico-ecológicos, e inclusão de berçários para novas empresas.
O premiado Wissenschaftspark, de Uwe Kiessler (1990), na antiga usina Rhein-Elbe em Gelsenkirchen, apresenta um desses parques no sítio antigamente ocupado pela indústria, articulando, ao prédio original da administração da empresa, um moderno centro de pesquisas de energia solar. É uma obra que desbrava novos rumos para os lugares da pós-modernidade porque sabe usar a percepção da migração da memória cultural de um período histórico para outro – do período da industrialização para o período da alta tecnologia – propiciando, à subjetividade das pessoas, uma interessante explicação teórica do que está acontecendo em sua sociedade, em termos de construção e reconstrução dos lugares por ela gerados. Desta maneira, a herança industrial não só permanece intensa e objetivamente atuante em termos pragmáticos, como se mantém viva também na esfera subjetiva.
Outro exemplar que reafirma aos moradores a percepção de um passado repleto de engenhosidade (e que lhes assegura potencialidades para o futuro), é apresentado pela construção que hoje toma o lugar da antiga Usina Mont-Cenis, em Herne. Lá, com início em 1997, instalou-se um megaprojeto que converte o sítio da antiga mina num complexo urbano com cerca de 25ha, que inclui desde habitações até prédios para o exercício das funções cívicas da cidade. Estes últimos, envelopados por uma grande estrutura de vidro, encontram-se sob um teto com central solar de 10.000 m2 de módulos fotovoltaicos, capaz de gerar 1 megawatt de energia. A micro-cidade de vidro, auto-sustentável, prevê múltiplas atividades, tais como: academia de educação continuada, locais administrativos para a cidade, salões polivalentes para a comunidade, biblioteca, centro de convenções, além de lojas, escritórios, restaurantes, locais de lazer e esportes, incluindo até mesmo um hotel. A concepção arquitetônica do container micro-climático favorece a criação de um ambiente público com condições climatéricas especiais, similares às do Mediterrâneo (10).
Espectros pós-industriais, sim, porém pós-modernos
Mas não é só a metamorfose de velhas carcaças o que fundamenta os projetos IBA. A grande marca regional constituída pelo Gasometer, por exemplo, é fonte também de intensa polarização econômica, que age como potente imã a gerar intensa movimentação comercial. Para isto surge o “CentrO”, um mega-mall regional, verdadeiro centro de infotrenimento para os moradores do Ruhrgebiet e seus visitantes. Assim, à criação (melhor: recriação) de um novo lugar regional de forte conotação subjetiva, garante-se que esse novo lugar se torne sustentável, viabilizando-o também em termos econômicos, ou seja, alia-se ao place-making, uma inteligente estratégia de place-marketing. De carro, trem, bicicleta, ônibus, a pé, o CentrO de Oberhausen está ao alcance rápido e fácil de todos, atendendo a uma extrema diversidade de opções, com um mix de ofertas abrangente, que cobre desde a arena de rock e o centro de compras, até o culto religioso e o lazer infantil. Tudo sob o olhar supervisor da grande torre do gasômetro, que testemunha sobranceiramente como continuará a se dar a evolução da vida na região.
O desenvolvimento urbano sustentável, porém, não se constitui apenas de exemplares de um urbanismo tematizado, de cunho consumista, que tende mais para um meta-urbanismo (11) do que propriamente para aquele urbanismo do dia-a-dia que todos conhecemos. Os projetos IBA vão além de gerar mega-estruturas como o CentrO, e se preocupam também em viabilizar alternativas para a habitação de cunho social, de forte apelo para a população que experimentou, sucessivamente, os tempos áureos da industrialização, o desolador bombardeio das portentosas plantas (já que responsáveis pela produção de maquinaria e armamentos na II Guerra Mundial), as volumosas verbas do Plano Marshall no imediato pós-guerra, e o fechamento e migração das indústrias, causado pela saturação e decréscimo das reservas de ferro e carvão. O IBA abre, assim, perspectivas alvissareiras para o volumoso contingente de imigrantes que se alastrou pela região (hoje, predominantemente, turcos), relegados a uma situação de desamparo após o fechamento das minas e desaceleração da produção siderúrgica.
Dois projetos merecem destaque: primeiro, o do suíço Rolf Keller, vencedor de concurso internacional para a reurbanização do bairro Schüngelberg, em Gelsenkirchen. O bairro é originário de uma política de cidades-jardim novas datada do início do século XX, erguidas junto aos locais de mineração, dentro do conceito dos garden-suburbs ingleses da época. Por força da depressão pós-Primeira Guerra as obras foram interrompidas, mas a parte que chegou a ser concluída gerou um importante patrimônio arquitetônico, agora modernizado e completado pelo IBA e seus agentes. Bem dentro de seu espírito inovador, o projeto buscou nas raízes regionais algumas de suas principais diretrizes. Uma competição entre artistas do Ruhrgebiet indicou o que fazer com os rejeitos minerais, trabalhados sob a forma de uma escultura piramidal, utilizável como área de recreação.
Outra competição valeu-se da percepção dos moradores para escolher a denominação das ruas. Curiosamente, até palavras turcas foram escolhidas, como “tepe”, expressão que designa as hortas que os turcos hoje cultivam nos jardins do antigo garden-suburb. O planejamento dos programas das casas novas teve intensa participação dos residentes, buscando-se com isso identificar os valores percebidos subjetivamente pelos habitantes. Disso resultaram singularidades próprias de um vocabulário arquitetônico enraizado nos costumes regionais, como, por exemplo, a localização do quarto do pai no sótão da casa, antiga tradição destinada a tornar mais silencioso e confortável o sono do mineiro, muitas vezes obrigado a trabalhar no turno da noite.
Também nos arredores de Gelsenkirchen, a área residencial Feldmark, é outro destaque de porte já que abre caminhos para um laboratório de inovadoras experimentações de natureza ecológico-ambiental. O coração do conjunto, por exemplo, é marcado por um lago alimentado pela água da chuva, colhida dos telhados das residências e conduzida por drenagem aberta através de dutos contendo brita para filtragem, e os passeios que a ele conduzem são pavimentados a partir do reuso de detritos de uma velha planta industrial.
Qual Cinderella na paisagem encarvoada
Os paisagistas têm muito que se regozijar com o que os projetos IBA lhes oferecem em termos de desbravamento e audácia projetual. Das desoladoras cinzas deixadas no rastro da exploração extrativa e da industrialização depredadora, despontam novas e atraentes rotas para o desenvolvimento regional. O resultado é a criação do Emscher Landscape Park, o novo espaço aberto do Ruhrgebiet, dentro do qual circula-se em rotas turísticas especialmente desenhadas e sinalizadas, que valorizam a estética dos marcos regionais e ajudam a criar uma “imagem de marca” para o Ruhrgebiet, as rotas Industrie-natur e Industrie-kultur.
Nordstern Park, em Gelsenkirchen, é um dos parques que mais se destacam na paisagem regional. Sua característica mais interessante está na ênfase que o projeto dá às formas e estruturas pré-existentes, tanto em termos de conservação, como de sua conversão a novos usos. O IBA fez aí mudar a percepção que as pessoas tinham a respeito de seu ambiente, movendo-a da percepção de uma paisagem deteriorada para a percepção do valor intrínseco de que estão imbuídos os elementos ambientais construídos pelo Homem, valores estes que costumam encontrar-se apenas latentes nas mentes dos indivíduos. Ao longo de seus 160 hectares, o Nordsternpark conta com muitas atrações, como passeios às margens do rio Emscher e do canal Reno-Herne, playgrounds infantis, equipamento esportivo, anfiteatro e esculturas. Mas o forte do projeto está no uso memorável que faz do vocabulário morfológico dominante, um vocabulário que deriva das, e resume, as formas mostradas pela atividade industrial presente no Ruhrgebiet, especialmente em termos de como são moldados os terrenos e os caminhos industriais. As ilustrações mostram como altas elevações formadas pela escória dos processamentos industriais e extrativos podem se transformar em desafiadores picos para atividades de alpinismo; e como, em pleno brownfield industrial pode despontar um parquinho infantil construído em pleno uso de uma linguagem regional.
Landschaftspark (em Duisburg-Nord, 230 hectares) e Stadtparkwest (em Bochum) completam a grande rede de parques que se espalha por toda a região (12). A concepção básica dos parques procura, de maneira pragmática e econômica, usar e re-usar o que estava lá, tornando os diferentes espaços pré-existentes acessíveis a diferentes indivíduos e diferentes grupos, em diferentes tempos de fruição (13). Destaca-se também o design da iluminação dos monumentos (a cargo do inglês Jonathan Park), transformando-os em verdadeiras lúmino-esculturas. O edifício Kraftzentrale, que estampa em sua fachada uma série de fotos das grandes fornalhas e usinas, abrigou a exposição IBA ’99 Finale, apresentando conferências inclusive do próprio coordenador do projeto, Karl Ganser.
E como fundo, um grande escudo ecológico
Muitas das experimentações narradas acima já dão uma boa idéia dos esforços que os técnicos do IBA despenderam em favor da ecologia. Faltaria apenas acentuar algumas das obras específicas realizadas em relação ao setor. Um exemplo seria o da construção de 15 estações destinadas à limpeza do rio Emscher, dando início ao processo de regeneração de seus quase 70km (com os tributários, a bacia atinge cerca de 350 km). Com a regularização dos cursos d’água, criação de diques e emprego de gradientes artificiais, iniciativas que datam da metade do século XX, as estratégias atuais de saneamento puderam ser enfrentadas a custos toleráveis. Mesmo assim, as estratégias de cunho ecológico tiveram preferência e o intenso cuidado com a regeneração dos verdes e o sistema de parques está restaurando a paisagem e valorizando a qualidade estética e ecológica da região. Muitas espécies raras e em extinção foram detectadas nas áreas em recuperação, nas quais os paisagistas optaram por deixar a vegetação em suas manifestações espontâneas. O resultado tem sido surpreendente, com a brotação de novas comunidades de vegetais surgindo de locais inesperados, como do leito dos trilhos de trem ou mesmo, de terreno marcado pela mesclagem de diferentes resíduos e materiais.
O que o IBA deixou
No limiar dos anos 2000, cumpridos dez anos do IBA, a transformação da paisagem e da vida na região do Emscher já pode ser percebida com maior clareza. Só que o IBA fez essa percepção dos moradores “dar uma volta por cima”, isto é, da percepção de uma paisagem deteriorada, fez neles (re)nascer uma percepção que valoriza os elementos construídos pelo homem na paisagem, uma percepção social da antropização da paisagem, dos valores enraizados na subjetividade.
Nos dez anos de existência foram tocados mais de 120 projetos na região do Ruhr. Os moradores voltaram a trabalhar onde trabalharam seus ancestrais (e eles mesmos, até pouco tempo atrás). Houve, já aí, a emissão de uma mensagem de auto-estima: as pessoas foram lembradas de que vale a pena permanecer apegadas a seu próprio território, que o território que conhecem tão bem ainda tem valor, que elas podem ter seu sentimento de territorialidade reafirmado.
Quaisquer que sejam as futuras propostas, um dos melhores resultados trazidos pelo IBA foi o de aguçar a percepção – tanto dos planejadores como dos cidadãos. E isso foi conseguido porque o processo que foi aplicado soube respeitar as subjetividades, soube lançar um olhar novo sobre o patrimônio industrial, percebendo-o como um potencializador da identidade que congrega a população da região. Assim como soube olhar para os brownfields industriais e neles perceber traços de sua potencialidade de atuar como lugares de suporte da sustentabilidade regional em termos subjetivos – de serem lugares regionais.
O Projeto IBA Emscher Park é uma destacada experiência de arquitetura e desenvolvimento regional – nada menos, mas também nada mais do que isso. É claro que seria exagerado enxergá-lo como um definitivo solucionador dos problemas da região. Mas, ele foi decisivo ao exercer o que – com licença da excessiva liberdade poética – se poderia reconhecer como uma chamada à sustentabilidade da subjetividade coletiva: um instrumento para garantir a permanência da subjetividade, daquela subjetividade compartilhada pelos moradores da Região em relação a seus lugares.
notas
1
O autor agradece à Prof. Arq. Iára Regina Castello por sua colaboração no processamento das imagens que ilustram este texto.
2
CASTELLO, Lineu. Do Desenho animado ao desenho urbano. O urbanismo da meta-realidade. In História da cidade e do urbanismo. Cidades: Temporalidades em confronto. Campinas, SP: PUC. CD-ROM do V Seminário, 1998.
3
Um dos primeiros movimentos sugerindo uma escala regional nos estudos sobre lugar foi trazido por Kevin Lynch. Segundo ele, as qualidades “sentidas” pelos moradores em nível local podem ser compartilhadas no seio de uma mesma coletividade – de uma mesma Cultura. Ou seja, torna possível admitir a manifestação de uma subjetividade em nível regional – de existir um sentido na paisagem cultural de uma região inteira. É precisamente isso o que faz em seu Managing the Sense of a Region, de 1976, onde traz à discussão uma dimensão regional para a percepção ambiental, sugerindo que embora nossos sentidos sejam locais, nossa experiência de vida é regional.
4
As informações do Fórum de Debates podem ser encontradas em http://www.vitruvius.com.br/forum. A palestra, denominada “...E o homem criou o lugar” foi realizada pelo presente autor, em 18/8/2003.
5
Outras exposições do tipo IBA incluíram a antiga “Interbau Berlin” de 1957 e a “IBA-Berlin 1977-1987”.
6
População da região do Ruhrgebiet: 5.401.759 habitantes. Área do Projeto IBA-Emscher Park – 17% do Ruhr; população: cerca de 2 milhões; maiores extensões – norte-sul: 18km; oeste-leste: 80km. Fonte: IBA’99 Finale.
7
GANSER, Karl. Liebe auf den zweiten Blick. Internationale Bauausstellung Emscher Park. Dortmund: Harenberg Edition, 1999.
8
ZLONICKY, Peter. The Emscher Park International Building Exhibition. Goals, Changes and Achievements. In ISOCARP (International Society of City and Regional Planners), Planning in Germany. Gelsenkirchen: ISOCARP, 1999.
9
Sediando, inclusive, o 35º Congresso da International Society of City and Regional Planners-ISOCARP, que oportunizou a visita à região, e no qual o autor apresentou o trabalho The Sustainable Industrial Heritage.
10
Ver OLIVEIRA, Ana Rosa de. Centro de Formação de Herne Sodigen, de Jourda & Perraudin. Texto Especial Arquitextos, n. 135, jun. 2002. <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp135.asp>
11
Para maiores desdobramentos sobre o que o autor categoriza como meta-urbanismo, ver CASTELLO, L., Dona Fifina é Pós-Moderna (e nem sabia). In Arquitextos, São Paulo, SP, n. 89, 2001. <http://www.vitruvius.com.br/arquitextos/arq000/esp089.asp>.
12
É no primeiro deles que se situa o gasômetro utilizado como academia de mergulho submarino, mencionado anteriormente.
13
BROWN, Brenda. Reconstructing the Ruhrgebiet. In Landscape Architecture, vol.91, n. 4, abril 2001, p. 65-75; 92-96.
sobre o autor
Lineu Castello é arquiteto, urbanista, pesquisador CNPq, diretor da U&A – Urbanismo & Ambiente e professor titular da UFRGS