“O homem é a medida de todas as coisas”
Protágoras
Antropometria e ergonomia
Este artigo nasceu a partir de uma salutar conversa no telefone, com a indagação da amiga Rosário Toscano, terapeuta ocupacional/Portugal, sobre noções de pessoa, espaço e deficiência na história da arquitetura.
Consideramos a antropometria como o milenar processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes.
Quanto ao espaço físico, o ambiente no qual o homem esta inserido, Vitrúvio (Sec. I A. C.) lega para a arquitetura o exemplo do próprio homem com as respectivas dimensões de suas várias partes do corpo. Este entendimento para o bom uso dos espaços edificados pelo homem - e para uso do homem - é até hoje uma norma seguida. A arquitetura tem por dogma refletir a exemplar regularidade do corpo humano.
Isto acompanha a evolução do homem desde os seus primórdios nas sombras das protetoras cavernas.
Conseqüência do advento da Revolução Industrial pela qual passou a Europa e, posteriormente, o mundo, a ergonomia ganha no século XX grande destaque. A relação do homem com a máquina; a relação do homem com o seu ambiente físico de trabalho; a produtividade desejada e os recursos para que se produza cada vez mais, fazem da ergonomia o estudo da possibilidade e limites do desempenho do homem no trabalho. A ergonomia analisa as interações entre o homem e os outros elementos de um dado sistema, visando melhorá-los quanto a respostas motoras, conforto, fadiga, esforço e bem-estar.
Vitrúvio, o homem e a arquitetura
No Renascimento, os ensinamentos de Vitrúvio passam novamente a ganhar grande importância. É nessa época que os seus livros são traduzidos para a língua italiana. Os dados antropométricos apresentados por ele, são desenhados por Leonardo Da Vinci (± em 1490) no seu célebre trabalho “L’Uomo di Vitruvio” (O Homem de Vitrúvio).
Nessa referida ilustração são apresentadas as teorias de Vitrúvio. Um dos exemplos é colocar um homem com os braços e mãos bem estendidos. A medida obtida entre uma mão até a outra é equivalente à medida da sua altura. Coisa simples! Mas é com isto que Vitrúvio demonstra a proporcionalidade entre as partes do corpo do homem e chama a atenção para o entendimento do projetar as edificações a partir do mesmo princípio. As diferentes partes do corpo do homem formam um interessante conjunto de proporções que cabem em um círculo, bem como em um quadrado. Para Vitrúvio a arquitetura deveria seguir o mesmo entendimento de ter a proporcionalidade das partes para completar o todo harmoniosamente, pois as partes formam o todo. Para ele a composição dos “recintos dos deuses imortais”, ou seja: os templos, depende da proporção. Para ele “nenhum templo pode ser bem composto sem que se considere alguma proporção ou semelhança, a não ser que tenha exatas proporções, como as dos membros segundo uma figura humana bem constituída”.
O belo e o desprezível na plasticidade e formas arquitetônicas e humanas
Assim, o homem forte, com o corpo construído ou “edificado” na robustez e proporções harmoniosas, denotando firmes alicerces, simetrias, regularidade, preenchendo o espaço de maneira geometricamente calculada, tem por base uma “figura humana bem constituída”.
Este é um exemplo evidente que a construção de conceitos, ou concepções, referentes à pessoa portadora de deficiência, é um fator sócio-histórico sedimentado pelos séculos.
A importância social do homem sempre foi analisada ou atribuída mediante a sua capacidade de produção. Constituir-se em um ser produtivo frente aos mecanismos sociais sempre foi o desafio para a aceitabilidade ou exclusão.
Desde a Antiguidade agro-pecuária de Senhores e sub-humanos, a Idade-Média de Nobres feudais e servos, o Renascimento com o Novo Humanismo, à Modernidade asfixiada pelas várias fases de evolução do Capitalismo, as pessoas se dividem em produtivas e não produtivas.
Historicamente a pessoa portadora de deficiência representou no coletivo social o não produtivo. Em uma abordagem sócio-político-econômica o conceito de pessoa portadora de deficiência faz dela um produto não produtivo. Ela representou o não rentável, um peso para o social, sendo ela, portanto, por séculos, o exterminável, desprezível, intolerável, abandonável, enclausurável, institucionalizável, Foram estas as várias formas de dizer ‘banível’ que no passado a avaliação social de produtividade impôs à pessoa portadora de deficiência.
Sobre as fases da vida à pirâmide funcional
Após ter feito uma pequena incursão nos valores sócio-históricos, apontamos o caminho tomado pela arquitetura teórica de Vitrúvio, é momento de agregar evolução, complicar o já complexo. Em 1946 o arquiteto Le Corbusier(1887-1965), dentro dessa mesma corrente, estabelece o seu “Modulor” com dimensões para a escala humana, aplicável universalmente na arquitetura.
Mas apontamos que ainda se tratava da escala humana para o homem de Vitrúvio, para a “figura humana bem constituída”. Sabemos que um módulo é uma medida reguladora das proporções de uma obra arquitetônica. Com o seu trabalho Le Corbusier quis mostrar que a natureza é matemática. Ele criou a sua escala humana por entender ser complicada a existência e uso de dois sistemas de medidas: o anglo-saxão e o métrico decimal. Suas pesquisas sobre a escala humana se basearam nos estudos de Leonardo Pisano Fibonacci(1170-1250), na seção áurea e na procura da harmonia visual na arquitetura. No entanto é importante lembrar que os sistemas métricos e o de polegadas dificultam a aproximação e entendimento dos diferentes países quando dos tratados de antropometria, de ergonomia, das normas e critérios de acessibilidade para pessoas portadoras de deficiência ou pessoas idosas.
Mas estes detalhamentos são tão interessantes e complexos que dariam um outro tema de estudos.
Harmonia visual e funcionalidade humana.
Junto ao entendimento do papel da arquitetura, da antropometria e da ergonomia para garantir o homem produtivo e banir o não produtivo, vemos hoje que é importante analisar e comparar os aspectos dimensionais e funcionais da relação homem-ambiente, pois vários conceitos caíram e novos foram forjados sobre o desenvolvimento e o papel do homem em relação a sua potencialidade e capacidade.
A partir da década de 60 muitas coisas mudaram nas sociedades. Constantes questionamentos sobre os direitos sociais; maior quantidade e diferentes estudos sobre as populações; novos embasamentos técnicos e demográficos, auxiliaram para que essas mudanças ocorressem.
A constatação do grande número de pessoas portadoras de deficiência, as necessidades das pessoas idosas e os avanços da medicina, impulsionaram para o completo entendimento de que os homens não são iguais.
São os países nórdicos e a Inglaterra que iniciaram o questionamento de que o entendimento vitruviano da “figura humana bem constituída” pode ser substituído pelo do homem concebido, respeitado e analisado dentro da sua diversidade de capacidades e, também, incapacidades. O questionamento está sobre a idéia secular do homem padrão cheio de força, de capacidades físicas, locomotoras, sensoriais e cognitivas. Começou-se aí a exigir que o homem seja aceito como indivíduo em constante evolução. Para isto inicia-se o entendimento da pirâmide da evolução durante as idades da vida. Nesta pirâmide o indivíduo apresenta diferentes capacidades ou incapacidades de acordo com o avanço de sua idade. E esta evolução também acontece com as pessoas portadoras de deficiência.
Então, é nesse contexto presente na década de 60 que Selwyn Goldsmith torna-se um dos primeiros autores a introduzir nas medidas antropométricas as variantes de sexo, idade e capacidades das pessoas. A pessoa adulta em cadeira de rodas passa a figurar nos manuais de antropometria. A partir deste fato, os objetos, as dimensões nas edificações, e o mundo, também poderiam a ser vistos, tendo por base a realidade do homem em uma cadeira de rodas, as suas possibilidades de alcance e uso do meio onde vive.
Depois, na década de 80, o “Human Scale”, de H. Dreyfuss, acrescenta a figura da criança nos seus conhecidos estudos antropométricos. E no caso, também a criança em cadeira de rodas. Portanto tínhamos o homem e a mulher adultos e a pessoa adulta em cadeira de rodas. Com Dreyfuss passamos a ter também a criança e a criança em cadeira de rodas.
As ajudas e barreiras dos fatores ambientais e as incapacidades latentes do homem
Recentemente Selwyn Goldsmith, pensando no desenho arquitetônico para todos, formatou uma nova pirâmide constituída por oito diferentes realidades nas quais as pessoas estão inseridas. Nesta pirâmide, as pessoas se agrupam de acordo com as características funcionais que elas apresentam. Isto independe do seu sexo, da sua idade; depende exclusivamente dos seus aspectos funcionais frente aos fatores ambientais nos quais ela está inserida. Como exemplo temos os edifícios de uso público que podem representar grandes obstáculos para as pessoas. Esses edifícios nem sempre são pensados para garantir o uso das pessoas nas suas diferenças e diversidade de habilidades, na sua funcionalidade e incapacidade de acordo com as diferentes esferas da existência. Essas pessoas são desde as que pulam, saltam, sobem escadas, carregam bagagem; pessoas hábeis, mas não com habilidades atléticas; pessoas com necessidade de ir com maior freqüência no sanitário (necessidade de quantificação racional de sanitários na edificação) ou necessidade de sentar-se ou descansar; pessoas idosas que começam a perder ou apresentar a diminuição de algumas de suas habilidades, pessoas empurrando carrinhos; pessoas com deficiência ambulatória parcial; pessoas em cadeira de rodas com sua locomoção autônoma; pessoas em cadeira de rodas que necessitam de auxílio de terceiros para a sua locomoção; pessoas totalmente dependentes.
O papel da arquitetura pensada para o conforto e uso do homem, para servir e acolher o homem – além dos valores estéticos, simbólicos, culturais – está em seu novo paradigma vinculativo do entendimento da discriminação arquitetônica como o grande antônimo do conceito da arquitetura inclusiva.
Discriminação Arquitetônica x Arquitetura Inclusiva
Agir na dicotomia discriminação arquitetônica/arquitetura inclusiva é atuar, sobretudo, nos dados antropométricos. Ter a compreensão das medidas das várias partes do corpo humano nos possibilita o cálculo da área necessária para o alcance e possibilidade de manipulação, uso ou acionamento de um objeto.
Quanto mais os projetos forem pensados para atender conjuntamente as necessidades funcionais do maior número possível de pessoas, mais estaremos praticando a arquitetura inclusiva.
Para a realização dos projetos de arquitetura, ou mesmo de ergonomia, é capital a existência de dados da mensuração da população do país. É evidente que cada país deve arquitetar, prover os seus projetos, levando em consideração a média antropométrica da população. Com estes dados torna-se viável, mais racional e eficiente a intervenção nos espaços naturais ou construídos. A partir desses dados podemos melhor solucionar as necessidades de mobilidade, visuais, táteis, cognitivas e auditivas das pessoas.
A arquitetura inclusiva deve exercer o papel de compensador e facilitador das diferentes capacidades de uso apresentadas pelas pessoas.
As regras de acessibilidade devem seguir os dados antropométricos. Devem refletir e basear-se nos dados médios da população e apresentar critérios que atendam o uso do maior número possível de pessoas. Sem esse princípio as normas não serão igualitárias e correm o risco de atender somente uma parcela específica da população, ou tipos específicos de incapacidades de uma porcentagem da população.
O homem em sua diversidade
Como exemplo desse amálgama podemos colocar juntas pessoas de uma mesma origem: um homem adulto em pé, uma mulher adulta em pé, uma pessoa adulta em cadeira de rodas e uma criança em pé. Estas pessoas terão a altura de sua mão sempre dentro do que chamamos “eixo de excelência”. Alturas muito próximas umas das outras, independentemente se estão sentadas ou em pé. Quem está em pé pode abaixar o braço e quem está sentado pode esticar o braço e a criança pode erguer o braço. O eixo de excelência está em média entre 0,80 m do chão até 1,10 m de altura. É dentro deste princípio no plano horizontal que se estabelece a colocação dos objetos como acessórios, maçanetas, botoeiras, pegadores, barras de apoio, corrimão, guarda-corpo, interruptor, teclado de computador, telefônicos públicos, mobiliário urbano, entre outros.
Sabemos também que muitas pessoas portadoras de deficiência fazem uso de cadeira de rodas, bengalas, muletas, andador, ou andam com auxílio de um acompanhante ou um cão guia. Com isto os espaços devem ser dimensionados não somente para a pessoa, mas também para bem receber e não obstaculizar a órtese, o acompanhante ou o cão-guia.
Como tentamos mostrar nos exemplos acima, as pessoas não são idênticas, nem em dados antropométricos, nem em funcionalidades. Cada pessoa possui as suas particularidades e é muito difícil normatizar o homem em sua diversidade. O ser humano sofre muitas alterações com o passar dos anos. Isto possibilita a aquisição de muitas habilidades ou também a perda de capacidade.
Para além do normológio, do normodotado, a arquitetura inclusiva nos edifícios, meios urbanos, veículos, objetos, mobiliários, equipamentos de saúde, entre outros, desempenha um papel de extrema importância para propiciar a participação das pessoas com incapacidades na sociedade. Prover a arquitetura inclusiva a partir de estudos minuciosos, abrangentes, seguros, que levem em consideração as fases da vida, a antropometria, o design inclusivo, a funcionalidade e a tecnologia, é fundamental para não gerarmos inadequação, segregação, exclusividade, prioridades de uso. Ela é essencial para propiciarmos a participação e o reconhecimento de todos.
Do Inclusivo – A arquitetura e design
Em resumo, o homem só pode produzir bem e satisfatoriamente se as ajudas técnicas estiverem ao seu favor. Na maioria dos casos as ajudas técnicas são nada mais que um batalhão de profissionais das mais diversas áreas, trabalhando e produzindo para que as pessoas portadoras de deficiência consigam exercer o máximo da sua capacidade. A arquitetura e design (arquitetura inclusiva e design inclusivo) são ferramentas importantes para este propósito. Como simples exemplo pode-se imaginar que eles estão presentes nos espaços edificados dos escritórios (rampa, elevador, altura de janelas, revestimento de piso, cores, iluminação, corredores) bem como nos seus mobiliários e equipamentos (dimensões de mesas, cadeiras, armários, teclado de computador, aparelho de telefone, maçaneta de portas e de armários) desenhados para atender as necessidades dos usuários. Este é o papel da arquitetura inclusiva em cooperar com o atual conceito/concepção sócio-histórico da deficiência, possibilitando condições biologicamente fundadas sobre a diversidade humana para que as pessoas portadoras de deficiência tenham igualdade de oportunidades, respeitando-se as suas limitações na atividade, mas adequando os fatores ambientais para que elas possam se mostrar produtivas, integradas.
Se pegamos todos estes recursos e colocamos em altura, lugar ou para prioridade desta ou daquela pessoa, não temos uma Arquitetura Inclusiva, temos somente uma proposta de adequação ou adaptação na arquitetura. Tão exclusiva quanto excludente.
notas
1
Artigo elaborado com base no publicado originalmente na Revista Nacional de Reabilitação, Ano VI, número 30, janeiro/fevereiro 2003, paginas 13 à 15, São Paulo.
Todas as imagens são figuras editadas e modificadas na JALFACCESS Arquitetura e Consultoria com o enfoque da acessibilidade e incapacidade.
sobre os autores
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José Almeida Lopes Filho é arquiteto especialista e professor universitário em "Acessibilidade para Todos". Membro da Rehabilitation International; Membro do Centre for Accessible Environments; Formador em “Arquitetura Inclusiva” pelo Fundo Social Europeu; e Consultor da JALF ACCESS Arquitetura e Consultoria.
2
Sílvio S. Silva tem mestrados em Integração de pessoas portadoras de deficiência pela Universidade de Salamanca, na Espanha e Universidade de Nice, na França. Professor formador em “Arquitetura Inclusiva” pelo Fundo Social Europeu. É consultor da Jalf Access Arquitetura e Consultoria.