“A ciência aprende-se com princípios e a arte com exemplos. Em lugar de consultar os catálogos de formas mumificadas (…) procedia a uma revisão da plástica e da estética dos estilos arquitetônicos, assinalando os erros (estruturais nos antigos, e artísticos no gótico) extraindo, no entanto, o sentido da composição e a modulação peculiar, e assim pude fazê-los evoluir no sentido moderno e valer-me de uma liberdade e um acento pessoal”
Antoni Gaudí
Prelúdio
O arquiteto catalão Antoni Gaudí ocupa posição sui generis no cenário arquitetônico da primeira modernidade pela síntese poderosamente cerebral e emocional, ao mesmo tempo equilibrada e visionária, que exala de suas obras. No estilo altamente pessoal – inimitável e inclassificável – estão condensadas, retrabalhadas e intensificadas as questões de fundo e de forma levantadas ou experimentadas a partir de meados do século XIX, na busca da imagem e da representatividade necessárias ao tradicional programa do templo cristão no dessacralizado século XX.
Nos dois edifícios sacros que projetou e construiu parcialmente – a Igreja Expiatória da Sagrada Família (i. 1883), em Barcelona, e a Capela na Colônia Güell (1898-1916), em Santa Coloma de Cervelló, perto de Barcelona – estão tanto a admitida influência do racionalismo estrutural de Viollet-le-Duc, substanciada por original reavaliação estilística do gótico, no uso naturalista dos novos materiais e na exploração empática das formas sugerida por Ruskin (2), quanto o acerto romântico da verticalidade das igrejas medievais, enquanto figuração máxima do ideal religioso, algo onipresente no imaginário popular.
É preciso que, às vezes, os sonhos rebentem, talvez pensasse Gaudí, e essas duas obras, cada a sua maneira, evidenciam isso claramente, como sustenta mesmo breve análise.
Sagrada Família - obsessiva sinfonia inacabada
A notável Igreja da Sagrada Família – sinfonia inacabada –, é uma das sonatas maiores da cidade de Barcelona, destacando-se na paisagem pela plástica irreparável e pela força imagética das quatro torres suspensas, verticalmente, na silhueta urbana da capital catalã. O trabalho, ao qual Gaudí dedicara-se com obsessão nos últimos anos de vida, iniciou em 1883, quando aceitou o encargo de prosseguir o projeto neogótico, já em construção, feito pelo arquiteto Francisco de Paula Villar. Seguiu sem interrupções até 1914, reiniciando em 1919, após a primeira Guerra Mundial, mas ficou inconcluso com o falecimento de Gaudí em 1926, embora prossiga, lentamente, desde então.
A parte mais importante que pôde terminar, a elevação lateral do transepto chamada Nascimento (ou Natividade), foi projetada e construída, em grande parte, entre 1893 e 1904. Nela, Gaudí rompe, drasticamente, tanto com a cripta neogótica construída por Villar, quanto com a própria direção tomada na execução da cabeceira da igreja. A elevação apresenta duas faces distintas: a voltada para a rua tem os portais de acesso em disposição genericamente gótica e está parcialmente povoada de esculturas, enquanto o restante do plano parietal tem caráter floral e abstrato sumamente original, que pela escala e pelo aspecto massivo, tridimensional, transcende a gramática Art Nouveau; a outra, voltada ao interior do templo, é mais audaz e revolucionária, mesclando geometria e arquitetura em estruturalismo gótico, de formas empáticas. As quatro torres-campanário, que tornam muito conhecida e admirada essa fachada – as duas centrais mais altas que as duas laterais – expressam a mesma ênfase simbólica do gótico, na desproporção vertical em relação à altura do corpo do transepto que, todavia, também restou inconcluso.
Importante considerar que a feição naturalista da obra explica-se menos pela via do Art Nouveau europeu, do que pela busca romântica do fantástico e do onírico, aliado ao desejo de reviver aspectos da tradição construtiva catalã e mediterrânea, próprias do estilo maduro de Gaudí (3). Isso se exemplifica pela inspiração formal das torres, provinda de certas construções nativas que Gaudí parece ter visto na África, assim como pelos arremates fantasiosamente plásticos de superfícies multiplanas e policromas da parte superior, diferente de tudo o que Horta ou Guimard já tinham feito, ou algum dia viriam a fazer, na Bélgica ou na França.
Por outro lado, a reinterpretação das formas góticas, usando a tecnologia moderna para superar as conquistas dos construtores medievais, reclamada por Viollet-le-Duc, começa a ser ensaiada na obra da Sagrada Família pela aplicação feita por Gaudí do arco parabólico, estrutura um tanto mais complexa que o tradicional arcobotante e sem precedentes na história da arquitetura, a qual ele experimenta aqui, mas desenvolve, em pleno sentido mecânico e estético, na Capela Güell. Isso porque, na Sagrada Família, o ímpeto estrutural é relegado em favor da criação de um monumento repleto de referências à tradição catalã e à passional religiosidade do povo e do próprio Gaudí – uma imagem-símbolo da fabulosa casa divina na Terra, da ‘igreja como uma rocha’, de Pedro, o apóstolo, e da ‘Montanha Sagrada’, posterior, dos expressionistas.
Mesmo não tendo sido concluída, o estado atingido é tão latente de significado místico e carga emocional ao ponto de Hitchcock apontar que a Sagrada Família “…provavelmente seja o monumento religioso mais importante dos últimos cem anos” (4), transcendendo toda a arquitetura sacra ligeiramente anterior que “…a seu lado, um exemplo de neogótico monumental tão afável como a Catedral de Liverpool começada por Giles Gilbert Scott em 1903, carece de vitalidade e originalidade de expressão, ainda que não de nobreza de escala” (5).
Capela Güell – trunfo mecânico-naturalista
Afirmava Gaudí que todo o estilo havia nascido em torno do templo e que toda a nova arte deveria fazer o mesmo. Partindo das conquistas formais e estruturais que fazia na Sagrada Família, de 1898 em diante, o arquiteto catalão passaria a conceber aquela que seria sua obra eclesiástica mais significativa do ponto de vista litúrgico, ao mesmo tempo que arquitetonicamente revolucionária, pelo original aporte mecânico-estrutural, paradigmático para muitos arquitetos no século XX: o encargo que recebeu para construir um templo na colônia têxtil de propriedade do industrial Eusébio Güell. Iniciado em 1908, quando terminados apenas a cripta e o átrio, em 1914, os trabalhos começaram a elanguescer, tanto pela decadência econômica de Güell, quanto pela carga voraz de trabalho que representava a obra da Sagrada Família. No entanto, como é possível apreender dos expressivos desenhos que ainda se conservam, se a capela tivesse sido inteiramente construída, seguramente representaria síntese mais substancial do pensamento gaudiniano que a Sagrada Família, com a qual guarda relação simbólica, mas avança no sentido funcional e construtivo estrutural.
O templo foi pensado enquanto composição de espaço principal de assembléia, ungido a uma cripta semi-enterrada, a ocupar o cume de uma colina, algo isolada do núcleo de habitações e das fábricas que formavam a colônia. À grande massa do templo chegar-se-ia através de um caminho sinuoso, proporcionando vistas diversificadas do edifício, que estaria colorido em diferentes tons de azul, roxo e verde; elevado sobre as copas das árvores do bosque circundante e dominante sobre as chaminés da fábricas, o templo deveria figurar como símbolo máximo do conjunto – caput mundi, local social de reunião e vida – tal como as catedrais góticas, ou a Stadtkrone, proposta por Bruno Taut anos mais tarde, nos escritos visionários da passagem dos anos 10 para os anos 20.
Configurativamente, a cripta – raíz do conjunto monumental –, é ovóide irregular formada por espaço central, definido por quatro suportes inclinados de grande espessura, terminado em parede absidal e circundado por deambulatório. Dessa ordenação, intui-se o desejo de Gaudí de que o espaço fosse lido desde um centro, algo que, na realidade, a geometria naturalista não permite, assim como qualquer intento de regularidade, também, fica relativizado pelas paredes inclinadas, pelos suportes heterogêneos e pelas incomuns tomadas de luz. No entanto, a articulação, aparentemente desordenada, dada pela irregularidade geométrica do espaço, nada tem de aleatória – é como um grande organismo que se ajusta até encontrar posição mais favorável – e onde, como na máquina vital, cada parte preenche não apenas um espaço, como desempenha uma função importante. Por exemplo, o pórtico exterior constrói-se por onze colunas de formas e texturas díspares que arrancam, inclinadamente, do solo, como se dele buscassem, poderosamente, desvelar-se.
Necessário compreender, para assimilar a singularidade do espaço da cripta e todas as inovações com ela inauguradas, que para Gaudí, a essa altura, não mais interessava a geometria cartesiana, mas uma que seguisse lei natural, mecânica; ao mesmo tempo, é importante dar-se conta de que Gaudí considerava superiores as formas puras às híbridas. Sem que isso represente paradoxo, não eram as formas platônicas as que passara a explorar em sua arquitetura, mas as curvas que, simultaneamente à plástica, resolviam as exigências da gravidade e não aquelas arbitrárias, sem derivação geométrica, apenas ao sabor estético, em voga, internacionalmente, anos mais tarde. Essas eram as formas puras, para Gaudí.
Tal foi o fundamento que o permitiu materializar as preocupações racionalistas de Viollet-le-Duc em um sistema construtivo que, seguindo as linhas naturais de força, resolvesse as pressões horizontais da estrutura e, solucionando, assim, os problemas de carga, eliminasse os arcobotantes, em favor de suportes oblíquos e arcos parabólicos, do que é exemplo magistral a cripta da Capela Güell. Admitido que Gaudí evitou toda decisão sistemática (6), assim como nada há de aleatório no conjunto, conclui-se que seu método é processo inteligentemente empírico, que se utiliza tanto do cálculo matemático, quanto da intuição e da experiência construtiva, para ser (r)evolucionário.
Além da resolução estrutural brilhante, sinal da prodigiosa capacidade de projetista e construtor, a religiosidade ardorosa, quase mística, de Gaudí, lega expressivas chaves simbólicas na representação do templo. Nesse sentido, a cripta semi-enterrada pode ser lida enquanto representação da caverna cristã primitiva ou como figuração, quase literal, das raízes que unem a terra ao universo, ou que prendem aqui o homem, na busca incessante pelo paraíso. Se o espaço não está escavado na colina, como era de se imaginar, é porque Gaudí não imita, diretamente, a natureza; como Ruskin, parece interrogar pelas formas e razões internas que a originam e, escutando as respostas, traduz seu sentido geometricamente livre em colunas inclinadas e retorcidas, e em arcobotantes e abóbadas aparentemente desordenadas ao senso clássico, brutalmente materializadas, quase ao acaso, pela liberdade de talhe dada ao operário que as edifica.
Legado para a posteridade
Bem como afirma Ochsé, “Tais obras não são criadoras de um estilo, mas libertadoras. Gaudí nos livra da monotonia dos imitadores, dos sem-idéias que obstruíam o horizonte” (7). Sua abordagem inédita guarda relação com as obras eclesiásticas do esloveno Josef Plecnik, pelo fervor religioso e furor místico na definição de linguagem ao mesmo tempo pessoal e tradicional, assim como, pela justeza entre símbolo e estrutura, sintetiza experiências e aponta caminhos paradigmáticos à posteridade, exercendo forte influência desde os expressionistas alemães, passando por Le Corbusier, Aalto e Michelucci, até chegar à América Latina, especialmente nos notáveis trabalhos de Candela, no México, Dieste, no Uruguai, e Niemeyer, no Brasil.
notas
1
Excerto do trabalho “O templo cristão na modernidade: permanências simbólicas e conquistas figurativas”; inédito.
2
John Ruskin antecipou em seus textos o valor do geometricamente anômalo na vinculação do trabalho manual, necessariamente imperfeito, à natureza.
3
Como explicita FRAMPTON, Kenneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 69, “Os escritos de Viollet-le-Duc, Ruskin e Richard Wagner foram parte do cabedal cultural adotado por Gaudí. À parte essas influências extramediterrânicas, sua obra parece ter-se originado de dois impulsos um tanto antitéticos: o desejo de reviver a arquitetura indígena e a compulsão de criar formas totalmente novas de expressão”.
4
HITCHCOCK, Henry-Russel. Arquitectura de los siglos XIX y XX. Madrid: Ediciones Cátedra, 1993, p. 437.
5
Idem.
6
Assinala GIL, Paloma. El Templo del Siglo XX. Barcelona: Ediciones del Serbal, 1999, p. 190, ratificando Carlos Flores, “que uma pessoa enamorada da ordem natural como Gaudí devia considerar inadmissíveis os delineamentos estruturais tacitamente aprovados desde a antigüidade, nos quais as tendências naturais viam-se de certo modo contrariadas.”
7
OCHSÉ, Madeleine. Uma Arte Sacra para nosso Tempo. São Paulo: Flamboyant, 1960, p. 58.
sobre o autor
Arquiteto e urbanista, professor das áreas de Teoria e História e Projeto de Arquitetura na ULBRA Santa Maria/RS e na URI Santiago/RS.