Quem são essas pessoas que procuram por sobrevivência aos olhos de todos, percorrendo as veias da cidade, construindo espaços reais num mundo ilusório? Um saco plástico torna-se chapéu, um pedaço de jornal transforma-se em cobertor, um papelão, em parede. Ao falar em morador de rua estaremos, inevitavelmente, falando sobre um modo de vida, uma interação intensa na qual se pode experimentar o novo e presenciar raros momentos de pureza, de arte (vide Gentileza) e de ruptura do véu amorfo que cobre a cidade contemporânea. Em um país como o Brasil, onde as diferenças sociais são espantosas, a política habitacional deficitária e os espaços públicos, sendo "mortos", a arquitetura transforma-se, cada vez mais, em política de embelezamento e de sociabilização controlada, de espaços enclausurados, vigiados. O medo do invisível torna-se o próprio reflexo de um muro aos olhos dos habitantes, um muro paranóico, violento e desolador, que o homem contemporâneo vem levando em seu ventre e em sua mente, onde o prazer do corpo nos espaços da cidade fica entorpecido pela carga gigantesca de informações, pela manipulação das aparências pelo capital, e pelo controle ético do povo pela mídia.
É preciso tentar compreender os caminhos percorridos pelo morador de rua ao abordarmos a questão da sua criatividade e da maneira como ele constrói seus espaços ilusórios, e inserir essa questão na própria noção de espaço com que estamos lidando nas grandes metrópoles; e, principalmente, na discussão da diferença e da relação entre espaço público e privado, contribuindo desse modo, para a possibilidade de criar um corpo teórico e prático para a fomentação de idéias e debates para a importância do ato projetual nas cidades, percorrendo novas questões relacionadas aos espaços existentes e potenciais dos centros urbanos e da arquitetura como um todo.
Público e privado
Fomos condicionados a entender espaços fechados, a ser protegidos dentro de mundos isolados, a compreender de uma maneira unilateral o que é fora e o que é dentro. Estamos cada vez mais edificando espaços ilusórios artificiais (Shopping Centers, praças de alimentação), que são sem dúvida, atualmente, os espaços públicos das cidades. As praças, os parques, estão sendo enclausuradas com grades, "pendurados" como obras de museu, inatingíveis, fictícias.
As noções de espaço do morador de rua podem atingir um grau enorme de experimentação, no qual o público e o privado se mesclam aos nossos olhos, e as bricolagens e sobreposições de materiais são utilizadas para fomentar uma noção diferenciada de espaço. Este se torna, ao primeiro impacto, um muro, quase que esquizofrênico, incompreensível para os modos de vida burgueses de nossa sociedade. Mas, atravessando as sombras desse muro, entramos num oceano de criatividade e de vislumbres construtivos inigualáveis. Espaços autônomos, mutáveis de acordo com as necessidades do cotidiano, interações entre sobrevivência, moradia e corpo, que vão, ao mesmo tempo, sendo constituídas ininterruptamente. O lixo de consumo da sociedade torna-se a pedra fundamental para a vida na rua.
Sob essa óptica, o mais importante seriam então as soluções encontradas para a relação entre o corpo/mente e os espaços das cidades. Retornamos para a importância dos espaços públicos e para o real significado de morar, de habitar e de ter o prazer de se sentir em casa, mesmo no âmbito dos espaços públicos. Esses espaços e a habitação devem caminhar novamente juntos, e essa caminhada precisa se transformar numa meta política e numa obrigação para o Estado. Soluções podem ser encontradas tentando-se conceber espaços "abertos", autônomos e reguláveis para os habitantes, e não enclausurados em edifícios seriados e sem vida ("Habitações Cingapura").
A experiência do morador de rua deve ser estudada e compreendida, cada vez mais, não como se fosse uma solução habitacional ou um modo de vida para o futuro, mas sim, como uma perspectiva de libertação do corpo no espaço, como o casamento fecundo do espaço público com o espaço privado, e como um autêntico e criativo objeto de estudo para a arquitetura contemporânea.
Os espaços do morador de rua tornar-se-ão assim quase que o cenário de uma arquitetura utópica, que nos faz lembrar dos devaneios de Buckminster Fuller, dos arquitetos orgânicos, do Archigram, do falanstério de Fourier. Talvez os arquitetos, urbanistas e pensadores da cidade tenham que descer pelas escadas do onipotente poder mercantil e desenhar a utopia que poderá levantar as máscaras do capitalismo e repensar as necessidades do homem contemporâneo e sua cidade, contribuindo quem sabe para o desenvolvimento não apenas de novas discussões acerca da arquitetura, mas dos recursos criativos e imaginativos a que o arquiteto está exposto, tentando explorar o potencial do espaço como a semente singular do ato de criar e repensar arquitetura.
sobre o autor
André Teruya Eichemberg é arquiteto e urbanista formado pela UNESP, desenvolvendo mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP com pesquisas voltadas para novas concepções espaciais na realidade virtual e espaços urbanos