Os caros amigos que me convidaram para fazer a abertura deste evento do Docomomo, talvez não estivessem tão seguros de si ao escolher o meu nome porque, na verdade, correram, ou melhor, ainda correm o risco de justificar a minha presença aqui perante esta assembléia tão simpática e esperançosa de ouvir novidades ou reflexões filosóficas ou teorias oportunas sobre a modernidade na arquitetura e sua conservação. Creio que vou desapontá-los porque sou visceralmente um ser empírico; tudo que sei provém da minha prática profissional, de minhas pesquisas em arquivos, examinando documentos antigos e velhas construções por restaurar e, também, observando muito o desenvolvimento de nossa cidade permanentemente vítima da especulação imobiliária, cujos promotores agem, sob o ponto de vista arquitetônico, desordenadamente, sem que, entre eles, exista algum acordo sobre a qualidade estética ou a qualidade de vida de seus clientes. Enfim, sem o hábito sistemático de leitura sobre problemas teóricos, venho aqui depor sobre a minha opinião pessoal a respeito do que seja Arquitetura Moderna a ser conservada e sobre como ela mal comparece nesse cenário estilístico caleidoscópico de São Paulo; sobre sua presença gritantemente minoritária, quando se fala da habitação, sobretudo da coletiva posta à venda. Pelo visto, os desígnios preservacionistas do Docomomo pouca preocupação terão em São Paulo face à escassa amostragem do modernismo construído entre nós.
O meu modo de ver a Arquitetura Moderna, é certo, tem suas raízes no meu aprendizado na primeira turma de alunos desta Faculdade de Arquitetura Mackenzista, em 1946. Não vou discorrer aqui sobre a aversão ou repugnância de seu diretor e mentor intelectual, o arquiteto Christiano das Neves, à Arquitetura Moderna por ele tachada de bolchevique ou de judia internacionalista. Em decorrência de seu posicionamento teórico e ideológico, naturalmente não havia à nossa disposição na biblioteca da escola, livros ou revistas sobre o modernismo arquitetônico. Cotidianamente, só depois de sua saída do atelier coletivo (os alunos da nova faculdade tinham aulas e desenhavam ao lado dos veteranos ainda vinculados aos programas especializados em arquitetura da Escola de Engenharia) é que tirávamos de seus esconderijos revistas americanas, Pencil Points, a mais manuseada, para aprender ou compreender como a modernidade comparecia nas construções lá de fora. Éramos vários cegos ajudando uns aos outros e cada um com o seu entendimento. A nossa salvação era o arquiteto Elisiário Bahiana, então moderníssimo na sua produção Art Déco. Era tolerante e paciencioso em suas respostas às perguntas, digamos ansiosas, daqueles calouros querendo ser modernos à toda força.
Naqueles dias, assumi a idéia de que modernismo era simplesmente fazer diferente, não repetir o que já fora feito. Jamais copiar os antigos. Era, também, por prudência, saber distinguir cópia de influência, para não ser criticado macaqueando os arquitetos modernos de renome todos postos num mesmo saco: Mies van der Rohe, Frank Lloyd Wright, Le Corbusier, Niemeyer, Warchavchik etc. O problema da gente era distinguir o momento em que a influência passava a ser mera cópia, pois ainda não estávamos aptos a perceber como o repertório de formas, agenciamentos e soluções assumidos por aqueles arquitetos estavam necessariamente relacionados com os seus pensamentos ou escolas.
Falava-se muito em racionalidade como se ela fosse um atributo exclusivo da Arquitetura Moderna e ninguém parava para pensar que nada existe mais racional e cerebrino que o domo de Bruneleschi em Florença. Para nós, racional era a modulação das estruturas de Mies, o herói de muita gente, cuja influência levava imediatamente à cópia – suas estruturas eram tão despojadas, tão ligadas à lógica tectônica naquela transmissão de esforços, que ali não cabiam exercícios de imaginação; ali a personalização somente podia ocorrer na definição dos volumes da construção, enfim, no partido adotado. Já Frank Lloyd ganhou adeptos com maior facilidade, pois os estilemas de sua produção estavam sobretudo na ornamentação de caixilhos e vitrais, reconhecíveis com facilidade e identificadores de seu estro organicista. É claro que Le Corbusier interessava a todos porque era, a nós jovens, o único a ter textos verdadeiramente elucidativos justificando passo a passo seus projetos funcionalistas.
Eu pessoalmente, de cara, me entusiasmei pela obra de Oscar Niemeyer porque era oposta à frieza de Mies van der Rohe, pois ficara entusiasmado com um álbum sobre os projetos de Pampulha, editado por volta de 1942. Toda aquela produção à beira do lago tinha personalidade, advinda de uma imaginação criadora, que se anunciava sem limites a não ser os da racionalidade embutida nas normas técnicas que, evidentemente, não impediam a plasticidade do concreto armado. Logo depois de ser presenteado com a referida publicação, ganhei um exemplar do livro Brazil Builds, editado pelo Museu de Arte Moderna de Nova Iorque em 1945 e fiquei conhecendo a Arquitetura Moderna carioca. Logo intui que ali estava indicado o caminho a ser percorrido, a vereda da brasilidade. Entusiasmado, nos projetos escolares passei a revestir paredes com azulejos decorados; a preencher vãos estruturais com elementos vazados; grandes panos brancos nos paramentos lembrando as taipas bandeiristas; rampas como a do pavilhão brasileiro de Oscar e Lucio Costa em Nova Iorque e muitas e muitas palmeiras compondo o cenário à volta das construções.
Nos dias de hoje, ainda não tenho uma definição bem precisa do que seja Arquitetura Moderna. Para mim, ela depende de uma relação necessária entre três determinantes: o programa de necessidades; a técnica construtiva e a intenção plástica dentro de uma condição indispensável, a atualização sincrônica dessas providências. Melhor dizendo, em relação ao seu tempo, todo o período do século XX, a Arquitetura Moderna se caracteriza fundamentalmente pela coerência entre programas, técnicas construtivas e o gosto ou a estética vigentes nos momentos de sua atuação, sejam aqueles anteriores à 1ª Guerra Mundial, sejam os entre-guerras ou, então, aqueles vigorantes nos dois últimos quartéis da centúria passada. Assim, nos variados tempos, nas Américas, na Europa ou no Japão, variadas arquiteturas modernas. Nos dias de hoje, evidentemente a arquitetura modernista contemporânea deriva de programas de necessidades atualizados e das mais recentes técnicas na definição de espaços, enquanto se enquadra na mais perfeita concordância com a orientação estética considerada por todos como sendo própria do pensamento atual quanto às coisas da arte, do bom gosto ou da beleza.
Vocês me desculpem dessa conceituação algo extensa e talvez mal expressa. É que essa questão do gosto ligada ao conceito de belo é complicada quando não atentamos às condições regionais, pois a problemática toda, envolvendo questões subjetivas, evidentemente resvala no aspecto cultural de cada sociedade. Pelo visto, esse componente da intenção plástica na Arquitetura Moderna é bastante embaraçoso e minhas limitações especulativas tendem a me levar a analisar prioritariamente os dois primeiros elementos compositores dessa definição de arquitetura agora pronunciada: a técnica construtiva e o programa de necessidades. Assim agindo e pensando, rapidamente façamos um retrospecto do surgimento e permanência da Arquitetura Moderna em São Paulo.
A meu ver e dentro de minha compreensão do que seja modernismo, a primeira obra de Arquitetura Moderna construída em São Paulo surgiu sem que o seu autor tivesse a noção de seu pioneirismo. Até então, fora seguidor do Ecletismo Historicista dos finais do século XIX e, também, do Art Nouveau recém-chegado de Paris e logo depois desse trabalho “moderno” passou a praticar de modo delirante o Neocolonial divulgado em 1914 por Ricardo Severo. Vocês já devem ter percebido que estou me referindo ao arquiteto Victor Dubugras e essa obra que acabo de mencionar se trata da estação ferroviária de Mairinque, levantada em 1907. O arquiteto concebeu tal edifício situado entre as duas linhas, obrigando os passageiros a andar por caminho subterrâneo para atingi-la e embarcar.
Daí uma construção compacta, com plataformas de embarque e desembarque de ambos os lados. Marquises atirantadas. Espaço central de alto pé-direito e cobertura abobadada. E o principal: estrutura de concreto armado; isto é, talvez não fosse a técnica como a entendemos hoje, mas com aquela denominação acabou recebendo, inclusive, elogios e explicações na revista editada pela Escola Politécnica. Incrível, em teto abobadado formado por meia calota esférica, a partir do centro, nervuras radiais aparentes, solução que seria banalizada somente cerca de cinqüenta anos depois, como aconteceu na estação de Roma, projeto de Nervi.
Enfim, neste trabalho exemplar, Dubugras atendeu, na época, a programa ainda vinculado às novidades ferroviárias trazidas pelo café como esse de estação numa confluência de estradas, a Sorocabana e a Ituana; praticou a mais moderna técnica do momento: aquela nascida do casamento do ferro com o concreto secular e, finalmente, deu oportunidade a um estilo despojado com formas puras e volumetria simétrica, até diríamos inspirada nas composições neoclássicas da Beaux Arts de Paris do início do século XIX, mas arrematando os quatro torreões das caixas d’água com lanternins, ou coisa que o valha, da “arte nova”, que aqui entre nós alguns críticos opinam sejam ligados ao movimento daquela época denominado de “Sezession”. Essa obra pioneira haverá sempre de ser lembrada. Somente cerca de 20 anos depois é que o concreto ressurgiria de novo em obras paulistanas, agora ditas “modernas”, ao redor de 1930. Gregori Warchavchik é o primeiro nome que surge nessa história.
Aquele arquiteto russo, que estudara na Itália e freqüentara o escritório de Piacentini, já em São Paulo, depois de trabalhar na construtora de Roberto Simonsen, em 1925, publica o célebre manifesto bilíngüe conclamando pela modernidade na arquitetura: em italiano, no jornal paulistano “Il Piccolo”, em 14 de junho de 1925 e, em português, no Correio da Manhã, Rio, em 1º de novembro do mesmo ano. Em italiano, o texto teve o título: “Futurismo?”, lembrando as idéias de Marinetti que, aqui no Brasil tinham popularmente a conotação de descarte do passado com a assunção de tudo o que fosse novo e diferente. Para o povo, aquilo que fosse extravagante e fora das normas e da tradição seria futurista, sobretudo nas artes plásticas.
O ponto de interrogação do título talvez estivesse sugerindo dúvidas, ou do jornal ou do autor, quanto à inserção da Arquitetura Moderna naquele quadro exótico das novidades despoliciadas que, sem meios termos, encantavam ou espantavam as sociedades cariocas e paulistanas dos anos 20. De fato, a arquitetura defendida por Warchavchik deu azo a reações violentas como as de Christiano das Neves e acolhimento entusiasmado dos modernistas oriundos da célebre Semana de 1922. Aliás, fato interessante, nesse ano, tem-se a impressão que os intelectuais, ao liderarem aquele movimento, desconheciam o que fosse modernismo na arquitetura porque expuseram no Teatro Municipal projetos que nada tinham a ver com os ideais renovatórios ali presentes; projetos fantasiosos de Moya, que nem arquiteto era, ou projetos inspirados no Neocolonial como se vê nos desenhos de Przyrembel. Esqueceram-se de Dubugras, que certamente teria dado um aval da maior categoria à intenção de mostrar arquitetura compatível com a pintura, poesia ou música ali presentes no certame.
O comportamento profissional de Warchavchik, no entanto, foi curioso porque ele falou e disse, mas nem sempre foi coerente com seus manifestos, pois, pelo resto de sua vida projetou obras nem sempre dentro da ortodoxia da arquitetura dita moderna. Qualquer inspeção na coleção dos números da velha revista Acrópole nos mostra como sendo de sua lavra casas de largos beirais e atavios que fazem lembrar o Neocolonial. Até chegou a copiar para um cliente amigo a arquitetura da casa-grande da heroína do filme E o Vento Levou, como Artigas, que fora estagiário em seu escritório, contou numa rodinha de alunos ainda na FAU da rua Maranhão. Inclusive, a nosso ver, a sua primeira residência na rua Santa Cruz não é moderna porque foi construída somente com prosaicos tijolos à moda de todos os seus vizinhos; nem uma simples laje de concreto fez para o piso do sobrado, também ali executou o tradicional soalho de tábuas e, na cobertura, usou as costumeiras telhas de capa-e-canal próprias das construções antigas. Seu programa e planta também decorrem dos palacetes próprios do modo de morar à francesa, lançado entre nós por Ramos de Azevedo. Somente a intenção plástica era novidadeira e isso absolutamente não qualifica tal residência como pioneira da Arquitetura moderna em São Paulo. Ficou somente no desejo. Em casas posteriores, é que chegou a empregar o concreto armado e, em algumas residência de pequeno porte providenciou planta desvinculada da distribuição tradicional, como na casa do maestro Souza Lima, em 1929.
Gregori Warchavchik não fez prosélitos e se tivesse dependido dele, a Arquitetura Moderna paulistana teria fenecido ao nascer. O mesmo podemos dizer de Júlio de Abreu, autor de uma só obra interessante, um edifício de apartamentos na Avenida Angélica, quase na esquina da Praça Marechal Deodoro que, por sinal, está a merecer proteção. O mesmo podemos falar de Flávio de Carvalho, que fez casas interessantíssimas por todos nós conhecidas, não deixando, no entanto um só discípulo. É verdade que o estilo Art Déco, popular desde os fins dos anos 20, mascarou o panorama arquitetônico da época passando também por moderno, ficando só na intenção plástica mas, na maioria das vezes, prescindindo do concreto armado e satisfazendo a programas corriqueiros já superados. Sem dúvida, não podemos negar, às vezes, o Art Déco se confundia com a Arquitetura Moderna nas obras de extremo bom gosto, como as casas do arquiteto Jayme Fonseca Rodrigues, de 1935, na rua Ceará. Outra construção moderna com um pé no funcionalismo de Le Corbusier e outro no espírito compositivo ou decorativo Art Déco é o Edifício Esther, de Álvaro Vital Brazil e Adhemar Marinho, de 1936. Para mim é uma obra-prima, talvez o mais belo edifício de apartamentos da cidade dentro de sua contenção volumétrica. Pena que esteja em pleno processo de arruinamento sob o olhar complacente de todos. É assunto de maior interesse ao Docomomo.
Posso dizer com segurança que a Arquitetura Moderna paulistana firmou-se definitivamente na cidade somente depois da 2ª Guerra Mundial encerrada em 1945. Os anos 50 foram primordiais e nesse tempo, quatro determinantes concorreram para tal fato: a produção siderúrgica de Volta Redonda; a conversão ao modernismo de arquitetos oriundos dos cursos conservadores anexos às escolas de engenharia; a chegada a São Paulo de talentosos profissionais estrangeiros e, finalmente, a presença de arquitetos cariocas inspirados por Lucio Costa a partir, tanto de seus textos decisivos, como de sua atuação na direção da escola de arquitetura do Rio e na sua chefia na elaboração coletiva do projeto do edifício do Ministério da Educação, onde se manifestou, também, Le Corbusier, o convidado carismático, o dirimidor de dúvidas. Nessa lista, também poderíamos arrolar a fundação, em 1947/48, das nossas duas primeiras faculdades de arquitetura, a do Mackenzie, onde me formei em 1950, e a da Universidade de São Paulo, onde leciono. Seriam elas fornecedoras de profissionais bastante habilitados para engrossar as fileiras de nosso I.A.B., mas devemos convir que esses jovens delas egressos vieram chamar a atenção, mercê de seus méritos, só alguns anos mais tarde. Expliquemos o que agora foi dito.
O concreto armado se desenvolveu e se popularizou plenamente entre nós só a partir do funcionamento da siderúrgica de Volta Redonda providenciada por Getúlio Vargas nas tratativas colaboracionistas com os americanos nos dias finais da Segunda Guerra Mundial. Daí em diante foi possível a verticalização da cidade ávida de moradias e de edifícios comerciais naqueles dias da vigência da Lei do Inquilinato promulgada em 1942 pelo mesmo ditador esclarecido e paternalista. Isso porque os perfis de aço trefilado deixaram de ser importados, tornando acessíveis as construções de concreto armado.
Os arquitetos formados pelas escolas de engenharia, recém-saídos de seus cursos de especialização, praticaram a arquitetura da moda vigente nos dias de sua diplomação, ou melhor, foram ecléticos, adeptos do Neocolonial, do estilo Hispano-americano ou “Missões”, do Art Déco etc. Quase sempre, preferiam trabalhar em duplas. Deles, muito poucos se converteram ao modernismo; só mesmo os bem dotados e esclarecidos, permanentemente desejosos de atualização profissional. Entre eles, podemos citar Rubens Carneiro Viana; o já mencionado Jayme Fonseca Rodrigues, autor do pioneiro e importante edifício “Sobre as Ondas”, no Guarujá; Roberto Cerqueira César, que associou-se a Rino Levi; Eduardo Kneese de Melo; Oswaldo Arthur Bratke e João Batista Vilanova Artigas, que dispensam apresentações.
A contribuição dos arquitetos estrangeiros aqui aportados foi bastante expressiva porque trouxe à cidade cafezista cosmopolita o tempero europeu à arquitetura modernista até então fadada a se inspirar na inesperada e bela revelação carioca induzida por Le Corbusier. Aqui chegaram durante e pós-guerra profissionais altamente gabaritados, verdadeiros agentes culturais, como Giancarlo Palanti; Victor Reif; Bernard Rudofsky, que entre nós permaneceu por pouco tempo, porém deixando lições, o que também aconteceu com Calabi; Lucjan Korngold, autor do edifício CBI, o primeiro prédio moderno com andares sem divisões, isto é, com planta livre; Charles Bosworth, um dos pioneiros das construções pré-moldadas; Achillina Bo Bardi, a saudosa Lina, autora de pelo menos duas obras impactantes na cidade: o MASP na Avenida Paulista e o Centro Desportivo do SESC, na Pompéia; e, finalmente, Adolf Franz Heep, o mestre, o homem que ensinou como projetar e construir prédios de apartamentos belos e realmente modernos, além de acessíveis à classe média. Sua presença foi marcante também em outros programas e sua atuação no magistério na Faculdade de Arquitetura Mackenzie nunca será esquecida.
Os cariocas em São Paulo constituem capítulo à parte e importante; frise-se cariocas formados depois de 1930, após a atuação de Lucio Costa na Escola Nacional de Belas Artes. Não foram muitos mas agiram decisivamente numa época de efervescência, sobretudo na primeira metade dos anos 50. Não contamos o primeiro deles, Álvaro Vital Brazil, autor do já mencionado Edifício Esther. Interessam-nos aqui os arribados nos anos marcados pela 2ª Guerra. Os primeiros a projetar por esse tempo foram os irmãos Roberto, que ergueram na Avenida Paulista o Edifício Anchieta, em 1941, sem dúvida, o primeiro modelo, não só pelos seus apartamentos duplex como pelas pastilhas coloridas em painéis horizontais ritmados, além do pilotis, a grande novidade. Vieram, também, Hélio Duarte; José Roberto Tibau, Eduardo Corona, Abelardo Riedy de Souza, autor, nos primeiros anos da década de 50, dos interessantes prédios de apartamentos na Avenida Paulista, os Edifícios Nações Unidas e Três Marias e, finalmente, Oscar Niemeyer, cuja obra e influências não precisam ser aqui rememoradas. Grosso modo, esse foi o panorama da formação da Arquitetura Moderna paulistana nos primeiros anos do processo de verticalização e adensamento populacional da cidade. Depois disso, podemos contar com a atuação dos egressos das faculdades de arquitetura e com o surgimento de novas correntes, algumas delas até chamadas de pós-modernas.
Talvez há uns trinta anos atrás começava-se a cheirar no ar parado algum tipo de estiolamento dos modos comportados da composição arquitetônica dos edifícios em altura, talvez um cansaço vindo das repetições dos critérios tectônicos acomodados à volta das Normas Técnicas. Sobretudo, o faro dos incorporadores imobiliários percebeu que havia a necessidade de novidades na mercadoria que vendiam. E disso tudo, apareceu na cidade uma nova arquitetura despoliciada estilisticamente, chamadora das atenções mercê das inovações que subliminarmente induziam a população a pensar em vantagens ou melhorias em relação ao o que se estava fazendo. Seriam edificações “mais modernas” e mais vantajosas. Esse raciocínio, de início, tomou conta do mercado de edifícios comerciais, já caracterizado pelo abandono das plantas contidas em retângulos bem definidos. Agora, a vez da geometria destituída de eixos reguladores; do abandono, sempre que possível, do ângulo reto e império dos ângulos esconsos; da definição de novas circulações horizontais e de novos desenhos industriais para os equipamentos. Nas fachadas, grandes panos de vidro ou de espelhos fazendo contraponto com inesperados elementos opacos, às vezes, participantes da própria estrutura, outras vezes gratuitos e tão somente destinados a personalizar a construção. Nessa modernidade cenográfica, a intenção plástica se sobrepõe e é absolutamente independente do programa de necessidades e condiciona ou domina à sua vontade caprichosa o sistema estrutural. Como não sou teórico, ou crítico habilitado, não sei se é aplicável a tal produção o título de Pós-moderna e por quanto tempo aquele mostruário da Avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini vai subsistir.
Para terminar, podemos fazer um balanço do comparecimento da Arquitetura Moderna entre nós em São Paulo. Já de início, vemos que ela não é uniformemente distribuída entre os variados programas. Por motivos culturais e por razões econômicas e nisso se baseia a oferta de edifícios financiados ao povo, a Arquitetura Moderna aparece com maior freqüência nos prédios comerciais, nos industriais, nos hospitais ou nas instalações públicas governamentais enquanto nas construções residenciais, em geral, está em flagrante inferioridade.
Mas a constatação mais triste é a que indica a espantosa minoria da Arquitetura Moderna dentro da paisagem eclética de nossas construções. Um dos motivos principais para que isso ocorra é sem dúvida, a meu ver, a deseducação coletiva que também poderia ser chamada de desinteresse. Essa indiferença à arquitetura modernista não reside só na má apreciação estética, reside, também, na falta generalizada dos recursos que a verdadeira arquitetura que hoje aqui defendemos e tentamos conservar exige. Afinal, a arquitetura que acabamos de definir é muito cara se entendermos programa de necessidades não como uma simples lista de dependências ou como são determinadas as circulações horizontais ou verticais, mas, também, como um rol de condições para as boas atuações do cotidiano, sobretudo aquelas referentes ao conforto ambiental. Deverão estar presentes todos os equipamentos de última geração destinados a não permitir críticas às instalações em geral, principalmente às hidráulicas e elétricas – tudo para garantir o bem viver num invólucro arquitetônico belo demonstrando refinamento e bom gosto de seus usuários. No entanto, essa beleza expressa às custas de qualquer que seja o sistema construtivo escolhido, às vezes é enganosa porque contribui para a identificação de somente parte do elenco de obras modernas espalhadas pela cidade.
Explico melhor: é que nem sempre o aspecto resultante do sistema estrutural da construção representa o que haja de mais novo na técnica edificatória. As aparências enganam, muitas construções que à primeira vista afiguram-se como modernas não passam de arremedos; são antigas e seus arcabouços obsoletos, como acabou acontecendo, à revelia do arquiteto, com a primeira casa de Warchavchik à rua Santa Cruz. E nesse sentido, a cidade está repleta de casas aparentemente dentro do último grito da moda, mas todas de configuração falsa simulando vantagens, qualidades e confortos ambientais improváveis naqueles simulacros modernosos. Só os ricos moram bem, mercê de toda a parafernália tecnicista inventada para dar a segurança e o conforto ambiental ideais. À classe média resta copiar de longe e aos pobres sonhar. Fatalmente, nesses arremedos terão todos atrás de seus blindex fajutos muito calor no verão, frio no inverno, ventilação mal resolvida, iluminação excessiva ou falha, ruídos indesejáveis e falta de aconchego. A física aplicada ali passou longe, embora tenha sido sempre de uso gratuito. É que suas antigas soluções na maioria das vezes são comprometedoras a quem deseja o modernismo explícito. Por sua vez, numa constatação usual, o concreto armado ainda é entre nós a técnica construtiva própria de nossa produção moderna, ficando as estruturas metálicas só para atender a certos programas especiais, geralmente nos edifícios públicos.
As obras magnificentes da Arquitetura Moderna, naturalmente são projetadas por arquitetos categorizados, profissionais liberais cujo renome advém de uma seleção usual promovida pelos grandes clientes encabeçados pelo Governo e em suas atuações, onde o dinheiro não falta, aquela nossa definição é seguida à risca. Concretos e argamassas armadas e comportadas composições metálicas participam dessas construções de acabamentos e instalações caríssimos. Acontece, porém, que certos arquitetos, levados por justificativas as mais variadas, às vezes, fazem, digamos assim: uma releitura ou reuso de velhas técnicas, como aquelas dependentes da madeira ou do tijolo, tendo em vista uma estética afinada com a contemporaneidade e satisfazendo a programas realmente de hoje. Agora, isso é freqüente. Depois desta minha afirmativa, vocês poderiam dizer que ela é incoerente, por exemplo, com a crítica que fiz em relação à primeira casa dita modernista de Warchavchik. Não, não me contradigo porque a casa da rua Santa Cruz tem uma planta comprometida com aquelas do Ecletismo, sobretudo com as dos palacetes de Ramos de Azevedo e as elaboradas pelos amantes do Neocolonial. E, depois, ela apresenta um alpendre que, em nossas casas urbanas daquela época, nunca passou de uma demonstração saudosista da sociedade cafeeira instalada na cidade nas entre-safras. O arquiteto russo captou com rapidez a tradição dos quatrocentões paulistanos em sua pretensa máquina de morar.
Desviei-me, sem querer, do reuso de velhas técnicas e quero encerrar o assunto lembrando exemplos bem sucedidos de estruturas autônomas de madeira como aquelas levantadas pelo engenheiro Hélio Olga de Souza Filho para o arquiteto Marcos Acayaba. Não esqueçamos, também, das simpáticas soluções de Severiano Porto no Amazonas, perfeitas adequações ao meio ambiente escancaradamente modernas na feição e no uso. O velhíssimo tijolo, com seus muros contínuos, também pode enfrentar a modernidade como atestam alguns trabalhos de Éolo Maia e de outros arquitetos imaginosos.
Este seminário do Docomomo paulistano certamente se destina a tratar da Arquitetura Moderna de nossa cidade ou do estado e à vista do que acabei de falar, eu pergunto se não seria pertinente um esforço coletivo, talvez através das faculdades de arquitetura, de identificação de nosso repertório de construções modernistas significativas. Julgo essa listagem fundamental para a preservação desse nosso patrimônio. Lista que pode, ou deve, ser encabeçada pela estação ferroviária de Mairinque feita em 1907 por Victor Dubugras. E depois, pacientemente distinguir e separar até os dias de hoje, as obras realmente modernas. Acredito que iremos ter muitas surpresas e desapontos até chegarmos à nossa arquitetura contemporânea com seus edifícios ditos “inteligentes”. É uma tarefa necessária.
nota
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Texto originalmente apresentado na abertura do III Seminário Docomomo Estado de São Paulo, ocorrido em São Paulo em agosto de 2005
sobre o autor
Carlos Alberto Cerqueira Lemos é formado em arquitetura pela FAU/Mackenzie, atualmente é professor titular de pós-graduação no departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Desenvolveu atividades ligadas ao projeto de edifícios e de urbanizações e à docência e à pesquisa histórica. É autor de diversos livros, tais como: Cozinhas etc. São Paulo, Editora Perspectiva, 1976; A Casa Paulista. São Paulo, EDUSP, 1999.