O tipo de relações que a Arquitetura estabelece com o lugar pode decorrer de vários propósitos e aproximações de diverso tipo, mas que têm sempre em vista a valorização dos sítios, dando-les um significado cultural.
A Casa Milhundos, projeto do arquiteto Francisco Portugal e Gomes, propõe uma integração no lugar partindo de uma matriz racional que enquadra um objeto simples e autônomo, uma “arquitetura como lógica formal abstrata” que depura tudo o não pertence à regra estabelecida. É um exercício de afirmação explicita de um propósito racional, ordenador do espaço e da forma que se pretende seguro e coerente em si mesmo, transmitindo a imagem de uma ambivalente unidade. Pode estabelecer-se uma analogia ao nível do princípio compositivo como o que foi utilizado por Tadao Ando na Casa Koshino em Ashiya, Hyogo (1979-81), organizada também a partir de dois paralelepípedos paralelos a partir de uma matriz ordenadora, embora o desenvolvimento da casa e relação com o terreno tenha propósitos estruturalmente diferentes.
A clareza desta intervenção icônica é feita de um modo pragmático e não deixa margem para dúvidas, pois evidencia que a sua estrutura quer as formas simples que são indexadas a si mesmas. Podendo haver arquiteturas atópicas, há as que aprofundam a relação que estabelecem com o lugar, conjugando-se com ele pelo sistema de relações que estabelecem, ou definindo geometrias que estruturam os critérios da intervenção.
A casa configura um modelo constituído por dois paralelepípedos paralelos entre si e ao mesmo tempo defasados horizontal e verticalmente, estabelecendo um princípio de diferenciação, mas construindo relações geométricas estruturais que explicitam a lógica que determinou a sua implantação. Cria-se, deste modo, uma composição com uma coerência geométrica e de posicionamento que se explicita também nas articulações que estabelece com os edifícios adjacentes e que determinaram o seu posicionamento.
Os dois volumes articulam-se entre si através de um espaço distribuidor revestido com réguas em madeira envolvendo a entrada e a zona de átrio que é sacralizada por uma iluminação zenital, cuja escala não interfere com a massa dos dois paralelepípedos laterais. através deste espaço que se faz a aproximação à casa e se localiza a entrada, constituindo parte de um percurso seqüencial que deste modo se desenvolve parcialmente entre muros.
Os dois volumes paralelepipédicos aprofundam os fatores de diferenciação estabelecidos entre si, através do seu dimensionamento e cor que jogam qualidades opostas – branco e negro –, correspondendo à utilização de materiais diferentes como o reboco e a pedra.
Decorrente destes dois princípios, cria-se também uma relação de figura – fundo entre os dois volumes puros colocados rigorosamente sobre o matricial de implantação. A abertura feita no paralelepípedo de pedra sugere um interior pela luz e pelos materiais utilizados, contrapondo-se ao exterior, sendo bem expresso pela forma de fechar a caixa.
O espaço entre os dois volumes constitui em vazio significante com idêntica importância à dos volumes envolventes com o seu paralelismo heterogêneo, pelo seu dimensionamento e materialidade, afirmando uma identidade cultural diversa da envolvente.
A composição parte de um princípio matricial que introduz a regra e a medida, perseguidas sem concessões na organização dos espaços interiores, na forma como é feita a pormenorização e pelas qualidades dos materiais. A utilização da madeira não propõe ambientes acolhedores, como cria um contraponto aos espaços brancos, refletindo a luz.
É essencial assinalar que neste processo não se introduz nenhuma resolução forçada ou mal dimensionada que tente justificar o princípio organizativo, pois a síntese que estabelece torna evidente a lógica conceptual que é aprofundada pela estereotomia das paredes de pedra, sem se impor obsessivamente como regra, ela apenas se anuncia como princípio ordenador com o objetivo de criar legibilidade e coerência e estabelecer uma lógica clara e apropriada, criando um sentido de disciplina perante o caos ou o gratuito.
A contenção do desenho na concepção, explorando irredutivelmente a regra que a sustenta, traduz a afirmação de uma disciplina sem concessões casuísticas ou subterfúgios, revelando um processo de síntese que se torna evidente pela justeza da resolução do conjunto, numa dimensão que integra o lote e as relações com os edifícios adjacentes.
Poder-se-á sempre estabelecer um percurso crítico perante o questionamento dos princípios de composição da arquitetura e as suas virtualidades. No entanto com a contextualização deste projeto, saber gerir os silêncios e a matéria é ser tão eloqüente como usar sábias palavras.
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notas
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Artigo originalmente publicado na revista Arquitectura e Vida, Lisboa, n.º 58, Março de 2005, p. 46-51
sobre o autor
Rui Barreiros Duarte, arquiteto diplomado pela ESBAL em 1973, é doutor em arquitetura pela FA/UTL em 1993, onde é Professor Associado. Tem projetos e obras de arquitetura publicados em livros, revistas, jornais e guias de arquitetura. Desde 2001 é editor da Revista “Arquitetura e Vida”. Sócio-Gerente de RBD.APP – Arquitetos.