"A torre da Liberdade e toda a 'zona zero' é um projeto que fala sobre a pureza da cidade democrática"
"Acredito essencial que a arquitetura esteja enraizada na história, na memória e na tradição de um lugar"
Grande parte dos projetos fundamentais de Daniel Libeskind constituíram o trabalho de transformar pathos em arquitetura ao incorporar a memória sobre os acontecimentos mais traumáticos para a humanidade contemporânea, o Holocausto e o 11-S: a remodelação da Potsdamerplatz em Berlim, o Museu Judeu de Copenhague, a Casa Felix Nussbaum, o Imperial War Museum em Manchester, o memorial Memória e Luz em Pádua e a torre da Liberdade em Nova York. "Edifícios, oscilantes no espaço e, no entanto, sólidos e homogêneos, que destacam de qualquer tipo de entorno. Possuem mundo próprio. Talvez têm algo de sacro" escrevia, com fascinação, o crítico László F. Földényi depois de sua visita em 2001 a uma exposição de maquetes deste arquiteto que define a arquitetura como a máquina que gera o universo que produz os deuses, ao mesmo tempo em que argumenta a necessidade de uma arquitetura diferente para o s. XXI cujas propostas estéticas e éticas sejam expressão da transformação política, cultural e espiritual pela que se havia atravessado no XX.
Em seu escritório nova-iorquino, Libeskind explica a Cultura/s que "a arquitetura não deve limitar-se a comunicar a um ser humano a existência de um mero objeto". "A arquitetura é uma percepção, e também algo que possui uma dimensão intelectual. É uma forma de comunicar algo mais além da realidade física em que está construída", acrescenta este criador de estruturas expressionistas, que parecem estar desafiando as leis e ordens, cujo discurso se articula em torno à poética de palavras como intensidade, incerteza, imprevisível. Sua compreensão da arquitetura como um leito de expressão para o zeitgeist se traduz nos gestos ríspidos de suas obras, cujo processo de geração não pode ser definido com precisão por seu criador: "É algo difícil de explicar. Trata-se do processo de fazer que emerjam coisas: algo que te obriga a estar conectado com o espírito do mundo".
Daniel Libeskind é o arquiteto que concebeu o estremecedor Museu Judeu de Berlim: o edifício que, transformando em lógica construtiva a música de Schönberg e uma planta baseada no traçado resultante da união dos pontos onde se localizavam antes da Segunda Guerra Mundial os lares de judeus em Berlim, constrói uma materialização filosófica do estado psíquico da condição humana depois do Holocausto, induzindo nesse espaço a vivencia da percepção da própria ausência. É o arquiteto que projetou duas torres de 1776 pés de altura que "reconquistarão o céu de Manhattan", alçando-se sobre suas predecessoras para restaurar o símbolo do cume espiritual da cidade, como um ícone da vitória da vida que expressasse a vitalidade dos nova-iorquinos frente ao perigo e ao otimismo depois da tragédia.
"As emoções, os sentimentos não são privados. São uma parte do mundo. Existe uma diferença entre uma emoção privada e uma que forma parte da realidade. A realidade não é só um exercício intelectual: não escutamos música juntando uma nota com a outra. O que se sente quando a escutamos é sua força espiritual, e assim deve ocorrer também com a arquitetura. Os sentimentos que inspiraram estes projetos surgem da catástrofe. Mas não obstante, estes edifícios falam sobre a vida. O Museu Judeu, com seus espaços e sua continuidade espacial expressam o que foi provocado pela exterminação. A torre da Liberdade e toda a zona zero são um memorial da catástrofe provocada pelos ataques terroristas. No entanto esse é um projeto que também fala sobre a pureza da cidade democrática e é uma afirmação da liberdade do céu nova-iorquino. Concebo estes edifícios como uma conexão da lembrança com o futuro" explica.
Um papel ativo
Nascido em 1946, com uma identidade da qual formam parte sua herança de judeu europeu e sua cidadania americana, na visão de Daniel Libeskind subjazeria ante todo um horizonte otimista que lhe leva a afirmar o papel ativo da arquitetura como expressão dos desejos da humanidade, para um futuro positivo. "A arquitetura é uma tradução da vida, do pulso de um tempo -insiste-. Necessita criar um espaço que esteja conectado a isto e que também proporcione um cenário para a atividade e a imaginação. Deve ser explorada com o corpo, deve ser algo que apele à mente".
Frente a um discurso que concebe sua obra arquitetônica quase literalmente como um fruto da inspiração, a forma da arquitetura de Libeskind não aclara, no entanto, como se catalisam outras dimensões do pathos de nossa cultura em obras como a extensão ao Victoria & Albert Museum de Londres, a fachada para a sede da companhia Hyundai em Seúl ou em seus recentes projetos para a extensão do Royal Ontario Museum, o Teatro Grand Canal ou o Ascent na Ponte Roebling, projetos retóricos, de estética inequivocamente libeskiniana, nos quais a intenção fundamental do arquiteto é impressionar, causar um efeito sobre o visitante do edifício e ser destacadas peças urbanas. "Afortunadamente, não só fui requerido para trabalhar em projetos que devem expressar os aspectos escuros de nossa época. Me agrada resolver encomendas para criar edifícios que puramente celebram a vida, que expressam a alegria, o fato de viver, o cotidiano. Considero essencial que a arquitetura esteja enraizada na historia, na memória e na tradição de um lugar. Existe uma conexão entre o memorável e o eterno. A arquitetura é construir em uma direção: deve olhar ao futuro e adquirir sustância dentro da vida das pessoas. Advirto que hoje as pessoas exigem uma arquitetura que seja tão sensível à vida como as ciências, a economia, as artes… Quero fazer edifícios que permitam às pessoas desfrutar sua conexão com o espaço e da conexão do edifício com a cidade" responde perguntado sobre em que ponto se bifurca a essência da celebração e do trauma no homem contemporâneo.
Formou-se em Arquitetura em 1970, adquirindo uma sólida reputação como teórico antes de começar a construir. De todos os arquitetos que Philip Johnson apresentou em sua exposição sobre a Deconstrução em 1988, ("Eu só fui integrante dela, minha participação foi uma encomenda", diz hoje Libeskind) possivelmente a arquitetura dramática e complexa de Libeskind fosse a mais paradigmática daquele conceito filosófico que forçadamente Johnson quis traduzir em arquitetura, propondo uma saída à Arquitetura Moderna, obviando a recarregada Pós-modernidade, com aquele edifício torturado que espremia a geometria euclediana. A magnificência do sentido da obra arquitetônica que tão consistentemente Libeskind conseguiu conceituar e fazer matéria perceptível no Museu Judeu de Berlim -e com isso, a possibilidade de abrir um leito teórico que incorporasse a dimensão da essência emocional na arquitetura contemporânea - deveio gradualmente um discurso de intelectualismo dogmático e efetivamente ambíguo, talvez forçadamente romântico e superficialmente erudito, condenado a encalhar-se em si mesmo.
Libeskind estudou música e foi um pianista virtuoso, mas abandonou para ser arquiteto, ainda que alguns de seus desenhos estão feitos sobre pentagramas. Parece falar a sensibilidade estética do músico quando afirma: "a arquitetura é algo mais que construir, primeiro deve construir nas profundidades do que esta é", uma idéia que recalca sua obsessão pela dimensão imaterial da arquitetura, por "ir mais além da realidade física com que está construída" que foi em detrimento do desenvolvimento de uma investigação sobre a essência de questões formais e materiais que equilibrasse, sustentasse e desse significado à sublimação poética da força espiritual da arquitetura contida em seu discurso e à sua ambição de transcender o presente.
A torre da controvérsia
A controvérsia em torno à manipulação do desenho de seu projeto para a Torre da Liberdade, baseado em seus sentimentos sobre a paisagem e os símbolos da cidade, ao ter que consentir que fora submetido aos retoques de David Childs, arquiteto do grupo SOM, por decisão de Larry Silverstein, arrendatário do World Trade Center para adequá-lo a seus interesses imobiliários e melhorar a segurança do futuro edifício, foi mediaticamente a humilhação à idéia de um gênio individualista. Em desacordo, Daniel Libeskind afirma que se sente satisfeito do projeto final, que culminará em 2008: "Acredito na democracia. Não acredito no arquiteto como figura autoritária. Todo projeto arquitetônico se leva a cabo mediante a união de diferentes forças. A Zona Zero é um projeto para olhar adiante: para estimular o desenvolvimento desse lugar, para criar um espaço inspirador, cultural, com um novo espírito". Ainda assim de suas palavras se desprende um mal-estar. Resulta difícil de compreender a ingenuidade com a que Libeskind assumiu esta encomenda de grande complexidade por seu valor icônico e monetário sem ser consciente de que para que uma idéia etérea e romântica, como a que ele propunha prospere um arquiteto tem de atuar como um negociador voraz, assumindo que serão necessários golpes bruscos e ser hábil para defender a integridade de suas idéias para que ao final prevaleça o espírito que construiu o edifício.
Daniel Libeskind, nascido em 1946 na Polônia, estudou música em Israel e Nova York antes de licenciar-se em Arquitetura, matéria na qual desenvolveu edifícios como os Museus Judeus de Copenhague e Berlim. Atualmente trabalha no projeto da torre da Liberdade para a zona zero de Nova York. É cidadão norte-americano desde 1965.
nota
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Artigo publicado originalmente na seção Cultura/s do jornal La Vanguardia, 25/01/2006.
sobre o autor
Fredy Massad e Alicia Guerrero Yeste, titulares do escritório ¿btbW, são autores do livro "Enric Miralles: Metamorfosi do paesaggio", editora Testo & Immagine, 2004
Tradução Ivana Barossi Garcia