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Flavio Coddou escreve sobre Istambul, na Turquia, que em 2006, teve seu Palácio de Dolmabahçe como sede da cerimônia de premiação do Pritzker; uma oportunidade de mais uma vez receber arquitetos do mundo todo


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CODDOU, Flávio. Istambul, Turquia e seus paradoxos. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 073.00, Vitruvius, jun. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.073/342>.

“Morar próximo da água, vendo a outra margem à frente, o outro continente, me fazia lembrar o tempo todo do meu lugar no mundo, e isso era muito bom. E um dia foi construída uma ponte que ligava os dois lados do Bósforo. Quando subi na ponte e olhei a paisagem, compreendi que era ainda melhor, ainda mais belo ver as duas margens ao mesmo tempo. Entendi que o melhor era ser uma ponte entre duas margens. Dirigir-se às duas margens, sem pertencer totalmente nem a uma nem à outra, revelava a mais bela das paisagens” Orhan Pamuk,(1952 -)

O Pritzker é o prêmio mais célebre da arquitetura mundial. Anualmente, cada cerimônia de entrega do prêmio acontece numa cidade diferente, dentro de edifícios de importância notável na história da arquitetura. Desde a sua criação, a fundação Pritzker, patrocinada pela fundação Hyatt, através dessas escolhas, permite a divulgação do prêmio em escala global, além de realizar um debate sobre a condição local de cada cidade escolhida como sede da cerimônia.

Em 2006, tendo o Palácio de Dolmabahçe como sede da cerimônia de premiação, a cidade de Istambul teve a oportunidade de mais uma vez receber arquitetos do mundo todo. Desde o Habitat em 1996 até o Encontro Mundial do UIA em 2005, a metrópole turca entrou no mapa mundial dos eventos de arquitetura, sendo hoje um dos lugares que têm tido o privilégio de realizar palestras e workshops dos arquitetos mais importantes e influentes do mundo, além de congressos que debatem o futuro das metrópoles mundiais, nos quais Istambul acaba funcionando como paradigma, pois, apesar de ter suas especificidades, sofre com problemas tão caros às outras grandes cidades do mundo.

Istambul sempre fez parte do imaginário literário e cultural, sendo descrita como “Ponte entre a Ásia e a Europa”, “lugar onde o Oriente se encontra com o Ocidente” por muitos dos escritores que passaram por ali. Grande parte do que essa cidade é capaz de oferecer é descrito por seus visitantes com esses clichês que marcam essa que já foi a capital de três impérios (Romano – 330-395; Bizantino – 395-1453; e Otomano – 1453-1922), geralmente entusiasmados com a posição geográfica excepcional, ao mesmo tempo estratégica e vulnerável, num universo de etnias, crenças e referências de civilizações do Oriente Médio e Mediterrâneo. Istambul claramente pertence a esses dois mundos, desde os tempos de Constantinopla, como a porta de entrada de referências globais e de modernização, garantindo sua posição de cidade cosmopolita, com uma história de convivência de diferentes grupos étnicos desde a sua fundação. Por outro lado, essas características fazem com que a cidade seja fonte também das discórdias e problemas, especialmente no que diz respeito ao debate político turco atual.

O fato é que a cidade passou por um processo de crescimento urbano desenfreado muito característico às grandes metrópoles contemporâneas, e depois de ter sido esquecida pelo mundo após o fim do império Otomano, hoje Istambul reaparece no cenário mundial como um dos centros metropolitanos mundiais com problemas básicos de gestão e infra-estrutura, além de ser palco para muitas das experimentações urbanísticas contemporâneas, dentro do que é possível ser feito considerando as dificuldades específicas ao contexto turco.

Istambul é uma metrópole de 15 milhões de habitantes, tendo por volta de 3 milhões de habitantes em 1980. Explosão demográfica fruto de uma forte migração de outras regiões turcas (e em escala muito menor de estrangeiros), hoje a cidade enfrenta os mesmos problemas que um habitante de qualquer outra grande metrópole do terceiro mundo poderia identificar como característicos desse crescimento. Entre as principais características, a falta de um sistema de transporte público integrado, bairros periféricos ilegais construídos de forma aleatória (note-se que sem paralelo algum com uma favela, são construções verticais em áreas não loteadas sem infra-estrutura urbana básica), falta de água potável, energia elétrica, gentrificação (no caso de Istambul em algumas áreas centrais esse processo serve para dar lugar à infra-estrutura do mercado turístico, tão desenvolvido nos últimos anos) e a criação de condomínios fechados na periferia da cidade resultantes de uma fobia da elite econômica com a falta de segurança pública (apesar de Istambul ter níveis de violência muito baixos para uma metrópole desse tipo).

Istambul hoje olha para o Ocidente querendo provar sua importância como capital do mundo, enquanto os turcos ainda tentam acertar suas contas com a história do país, ainda conturbada com seus fatos recentes. Tornar-se um membro da União Européia inclui todo o seu território, da Trácia a Istambul, da capital governamental Ancara a parte do Curdistão, além do Chipre turco, e exatamente esse fator é o que assusta países como a França e Alemanha, principais opositores da entrada da Turquia na CEE.

Do ponto de vista social há muitos paralelos entre a Turquia e o Brasil, especialmente no que diz respeito ao papel dos investidores privados numa arquitetura corporativa e de especulação imobiliária de baixa qualidade, o poder público tentando correr contra o tempo na extensão dos serviços básicos de infra-estrutura em bairros periféricos novos, a costura do sistema de transporte coletivo, e os planos urbanos desconexos nesse infinito processo de jogos políticos e de capital disperso. Os problemas urbanos de Istambul aparecem como reflexo de um crescimento da economia turca, e a explosão demográfica da cidade pegou de surpresa arquitetos e urbanistas, que por enquanto se limitam a discutir planos estratégicos de desenvolvimento da cidade, enquanto de fato muito pouco chega a ser feito.

A cidade de Istambul – ao mesmo tempo em que se transforma em pólo de concentração da variedade cultural, tolerância religiosa e convivência de diferentes etnias – é usada pela Turquia como cartão de visita para mostrar à Europa Ocidental de que o país está pronto para ingressar na União Européia. Mas é quase paradoxal pensar em Istambul como cartão de visitas de um lugar tão variado e complexo como a Turquia. De fato Istambul tem influência de todas as etnias existentes no país, e, de forma mais ampla, de todos os territórios ocupados pelo Império Otomano, de sérvios a sírios, passando por gregos e persas. Mas é necessário aprofundar sobre os fatos que marcam a vida política do país nas últimas décadas para entender esse paradoxo.

A Turquia é uma colcha de retalhos de povos, culturas, formas de vida, que se mantêm sob o nome de um estado único apenas há pouco mais de 80 anos. Por isso o debate político turco é extremamente complexo e inexiste “uma verdade” sobre os fatos históricos, enquanto as opiniões polemizam sobre os modos de como o país deveria se conectar à esfera governamental com a democracia européia, e à esfera cultural com os países muçulmanos.

Não se restringem à Europa Ocidental as acusações da política turca com relação ao Chipre e o Curdistão. Diariamente nos jornais o debate interno político é acirrado e polêmico. Não existe uma única opinião que seja um consenso no país. O fato interessante, então, é notar que de uma certa forma existe uma “identidade” turca, e, enquanto em alguns países isso se dá através da monarquia ou da religião, na Turquia o que sustenta e mantém esse território unido sob um mesmo nome e coeso é representado pela própria República. Desde o fim do império Otomano, a instauração de uma república em 1923 num território que nunca antes tinha sido governado pela etnia turca, a declaração de leis ocidentais, um modo de vida secular garantido pelas novas leis criadas sob a figura de Atatürk, a unificação do idioma e sua passagem para o uso do alfabeto romano, a gradual instauração de uma democracia que inclusive contemplava as mulheres ainda numa época onde muitos países da Europa nem as permitiam votar, todos esses fatores fizeram parte da formação de uma “identidade” turca criada naquele momento. O processo radical de transformação em poucos anos passou pela função do Estado em “escrever uma nova história” para o país, visando estabelecer valores àquelas diversas etnias que viveram durante séculos sob o império Otomano sem a figura de um Estado centralizador (o Império Otomano se caracterizou pela ocupação dos territórios sem imposição de idioma, cultura e valores únicos) . Desse modo, no início do século XX a única forma como o Estado turco poderia mudar essa imagem do país seria através da criação de um “nacionalismo” até então inexistente, onde a educação pública, a história, a noção de Estado teriam um papel fundamental. Passados alguns anos da morte de Atatürk, sua imagem seria transformada nesse ícone que representa algo parecido com a bandeira nacional, e ativa até hoje nos turcos, independente de sua religião, credo ou grupo étnico, a memória de sua existência através de uma revolução que instaurou sua identidade, e mais profundo que isso, a própria idéia de nação.

Ao mesmo tempo, a religião foi passada para o campo do mundo privado de cada cidadão. Através da secularização do Estado (único caso em países muçulmanos), a religião passa a não ter influência alguma na política, sendo inclusive proibido o uso de símbolos religiosos dentro de edifícios públicos ou eventos oficiais do governo. O grande debate diário na Turquia sempre toca o elemento mais visível e próximo dessa discussão:  o véu das mulheres muçulmanas. Uma mulher que entre num hospital ou universidade pública deve retirar o véu da cabeça, pois ela ali não pode exibir qualquer símbolo de sua religião. Os religiosos acusam o estado de antidemocrático por essa imposição, enquanto os secularistas, representados principalmente pela figura do Exército, dizem garantir o estado democrático e suas leis secularistas através dessa separação entre Estado e religião. Porque, apesar de 95% da população turca ser muçulmana, se a religião for permitida dentro do Estado, o risco de se transformar num estado fundamentalista seria inevitável.

Dessa forma, o debate interno que se acirrou nos últimos anos a partir da eleição do primeiro-ministro de um partido religioso, tem em conta duas frentes principais políticas: a dos religiosos versus os secularistas. Por exemplo, a reação à publicação das caricaturas do profeta Maomé foi muito mais controlada e pontual do que nos países vizinhos, e isso se deve principalmente ao fato da Turquia sempre deixar muito clara dentro do seu contexto geopolítico a imagem de um Estado secular. Depois da publicação das caricaturas houve protestos de milhares de pessoas, sim, mas ao mesmo tempo o país se viu dividido através de artigos infindáveis entre os que mantinham a forma de protesto "coletivo" e os que consideram a religião como âmbito privado de cada indivíduo. O governo turco protestou com uma carta enviada ao governo dinamarquês. Todos os jornais polemizaram. Pois muitos disseram que o governo não deveria se posicionar oficialmente.

Assim, para os secularistas, a única forma de defender a democracia seria justamente garantir a separação do estado da religião. Os turcos defensores de um estado laico são facilmente acusados de militaristas, tendo o exército como o principal “guardião” das leis seculares (inclusive responsáveis por alguns golpes de Estado nas últimas décadas, toda vez em que há alguma tendência em alterar os valores estabelecidos por Atatürk). Por sua vez, os religiosos fazem manifestações cada vez mais presentes na vida das cidades, e as opiniões nos jornais são intermináveis e acirradas.

Enquanto a própria Turquia debate seus problemas internos e tenta aos poucos fazer a revisão da história contada a partir de um ponto de vista muitas vezes nacionalista e restrito, o entendimento da própria dinâmica de um Estado secular é a única forma de manter o país estável e coeso.

Istambul é importante pois aparece como centro irradiador de todos esse debates, por ter sido sempre a cidade mais importante do país, mesmo que não seja a capital governamental há mais de 80 anos. Recolocar a cidade no panorama mundial da arquitetura e urbanismo é uma oportunidade única para usar a experiência alheia na gestão de planos estratégicos de uso do espaço urbano garantindo serviços de infra-estrutura, transporte e conservação de áreas verdes. Apesar de suas especificidades políticas, como já foi aqui descrito, Istambul sofre com problemas muito parecidos aos de São Paulo ou Cidade do México, por exemplo, e estabelecer o diálogo entre as cidades é fundamental para encontrar diretrizes importantes e urgentes.

sobre o autor

Flávio Coddou é arquiteto e enviado especial do Portal Vitruvius na Turquia, para cobertura do Prêmio Pritzker 2006.

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