Todos sabemos que a Universidade pressupõe responsabilidades individuais e comuns ante a sociedade que se expressam em termos de comprometimento, engajamento; ou seja: significa tomar posição, embrenhar-se em relação aos problemas sociais e políticos.
Mas o papel da Universidade deve ir além desse engajar-se ou tomar posição. Ela deve atuar e interferir diretamente sobre esses problemas que estão lá fora, distantes de seu mundo fechado e indiferente; às vezes, até intocáveis.
A Universidade deve estar atenta ao seu território, desperta e aberta, livre e libertária dos interesses econômicos.
Hoje, o problema que se coloca no debate não é o pesquisável, ensinável, mas a ética que deve permear toda liberdade de pesquisa, todo ensino. O juramento que deve se tornar ação, acontecimento.
Além do que normalmente se conhece como a liberdade acadêmica, essa Universidade de que falamos exige e deveria ter reconhecida uma liberdade incondicional de questionamento e de proposição.
O direito de dizer publicamente tudo que uma pesquisa, um saber e um pensamento de verdade exigem.
A Universidade deve ser incondicional, sem condição, sem condições, mesmo!
Ter liberdade e responsabilidade de anunciar que mais de 70% das pesquisas realizadas em arquitetura são desprovidas de responsabilidade social. Não prometem nada ou quase nada em termos de retorno para a grande base da sociedade, só contribuem indiretamente com o processo inflacionário do produtivismo. E o mais grave, quase todas são financiadas com recursos públicos, seja via CNPq, Capes ou Fundações Estaduais. Todos sabemos que o fim da maioria dessas pesquisas é embolorar-se nas prateleiras das bibliotecas. A ênfase da pesquisa recai no aprender a pesquisar, no rigor de suas formas, mas não o que pesquisar, ou muito menos na ética da pesquisa e de sua responsabilidade. Com o ensino é a mesma coisa.
Como disse meu colega e pesquisador Rufino Becker; “des-envolvimento” é a capacidade de não se envolver na vida, não se comprometer, não apostar no envolvimento, no turbilhão das relações humanas. Talvez essa palavra sintetize e descreva contundentemente a questão também da fragmentação e desumanização do (i)mundo que permitimos construir através das falsas representações de toda espécie. Mundo esse, que a Universidade, com seus saberes autônomos, departamentalizados, paralisados, infelizmente, tem ajudado a formar.
A Universidade deve ser universal, e isso deve ser compreendido como oportunidade para todos, especialmente através de suas diferenças e singularidades. A Universidade não deve se render ou se entregar sem opor resistência a essas forças da exploração patrocinadas pela globalização sobre os países subdesenvolvidos.
Ela deve ser desafiadora; esse é o papel da resistência, a peça da resistência, aberta a todos.
A primeira ação é não transformar o corpo-intelecto em mercadoria, produto para a manutenção do sistema. A Universidade deve ser universal, fora e além de todos os interesses econômicos e mediáticos; deve, também, afastar-se dos aparelhos ideológicos, religiosos, culturais.
A Universidade deve ser o lugar onde nada está livre de questionamento, nem a idéia tradicional de crítica ou a própria figura atual de democracia com suas representações.
Quando Jacques Derrida proclamava uma Universidade “sem condição” (2), significava o direito do princípio de dizer tudo, o que está bem e o que está mal, significava o lugar do público, do publicável, ou mesmo o lugar onde se guarda o segredo, o segredo de suas pesquisas ou do que for necessário.
A Universidade deveria ser o lugar onde se dão os encontros, as conversas, as filosofias. Mas, infelizmente, o espaço da Universidade permanece ainda próximo do confessionário e da sala do psicólogo, onde se diz tudo reservadamente, entre quatro paredes.
Ela está longe de ser um lugar público, está fechada, e cada vez é menos representativa da sociedade.
Hoje o problema que se apresenta é como desconstruir suas muralhas, sua “arquitetura”, desmontar suas defesas para a entrada do “outro”, ao totalmente diferente.
A fragilidade de suas defesas perante os poderes que a comandam é grande; com freqüência assediam-na e dela se apropriam. Muitas vezes ela se rende, e se torna uma sucursal dos grandes conglomerados e firmas internacionais. Vide, por exemplo, a criação de cursos conforme os interesses econômicos das empresas durante os anos 70.
Essa vulnerabilidade é porque ela é estranha ao poder, porque é heterogênea ao princípio de poder, porque ela é mais permeável aos interesses econômicos e mais refratária aos interesses sociais.
Deduz-se, obviamente, que ela opera através das capacidades de representações que são capazes de chegar até ela e exercer sua pressão de entrada. A Universidade em sua essência é desprovida de poder próprio; seu poder é representacional, mas não representativo.
O fechamento que se encontra hoje na Universidade só pode ser interpretado como uma triste e atávica forma de defesa. Pois é de sua natureza mesmo, está em suas origens. Essa clausura é a mesma do claustro dos monastérios. O claustro, o jardim como microcosmo. As seqüelas da Universidade clássica. Mas não quer dizer que deva ser sempre assim.
Derrida colocava que, nos Estados Unidos e no mundo todo, a grande jogada política era a sustentabilidade, e se perguntava em que medida a organização da pesquisa e do ensino deve ser sustentada, ou seja, direta ou indiretamente controlada. Digamos de maneira eufemística “patrocinada”, visando interesses comerciais e industriais (3).
Um típico exemplo são as universidades norte-americanas, cujo modelo alguns produtivistas do ensino querem implantar, agora integralmente.
Pode-se observar esse movimento na política dos órgãos de fomento. A política implantada por eles vem corroborando para esfacelar o corpo docente e o corpo dos pesquisadores sobre os critérios mesquinhos de produtividade, gratificações, bolsas e bonificações de todo tipo.
Seria melhor termos melhores salários, sem dúvida, do que sermos submetidos a esses mecanismos diferenciadores.
Ainda, por exemplo, houve a crença, por parte desses órgãos, de que fornecer equipamentos para os pesquisadores, e não diretamente às instituições, poderia produzir uma otimização dos recursos, uma melhor qualidade de manutenção e preservação do patrimônio. A meu juízo, isso também não deu certo, e, mesmo sob a ótica da educação, ficou pior do que era ou do que poderia ser.
Primeiramente, porque não houve uma percepção de que a indústria da informática torna tudo obsoleto em 3 ou 4 anos, e o que vemos é um sucateamento desses equipamentos, que não servem para mais nada, se tornaram lixo literalmente, descartáveis. Segundo, porque o direito ao uso desses equipamentos não evoca o “nome comum”, e porque o Personal Computer só poderia ser mesmo uma invenção capitalista. Os equipamentos de informática acabaram se tornando índices de produtividade e reconhecimento dos pesquisadores, acabaram estimulando o egoísmo, a inveja e a competitividade entre os pesquisadores.
Essa foi a engrenagem eficaz para acabar com o corpo dos pesquisadores; a outra: criar a tautológica categoria do professor-pesquisador. Transformar todo professor em pesquisador.
Todas essas artimanhas fazem parte da sociedade produtivista neoliberal, das grandes transnacionais da informática.
O espírito da competividade é o caminho para o individualismo, para o fim da corporação. O “Império” do produtivismo alicerça-se no trabalho invisível, do virtual mesmo, numa espécie de doação às vezes voluntária, às vezes obrigatória, para os bancos de memória, para os bancos de dados. No caso específico do ensino, nos currículos e as informações ali depositadas.
É no Curriculum Lattes onde se faz a diferenciação produtivista, onde impera o controle, onde o corpo docente se desajusta, se decompõe. Divagando um pouco em cima do poder das palavras, Lattes não corresponde só ao sobrenome do nosso ilustre desconhecido pesquisador o físico Cesar Lattes, mas ironicamente podemos associá-la também a Letes, que na mitologia correspondia a uma fonte cujas águas provocavam o maior esquecimento.
Mas o trágico é que nas Universidades particulares o ensino já se tornou mercadoria, comércio. Estudantes não passam de objetos a serem moldados, comercializáveis. Professores são contratados e despedidos na medida da demanda de alunos, oscilam de acordo com os valores das mensalidades ou, mais freqüentemente, por suas posições éticas e políticas, transformando o ensino numa grande empresa que oscila conforme o mercado.
O mais curioso é que foram essas mesmas Universidades particulares, essas instituições universitárias religiosas, que ao longo da história criaram os valores positivos da humanidade: a ética, a solidariedade, a fraternidade, o comum. E agora se encontram submissas às forças do mercado imperialista.
É preciso não só um princípio de resistência, um discurso declaratório, mas uma força de resistência bastante forte, uma ação em todos os âmbitos. Diante da tormenta que se avizinha e ameaça a ética da Universidade, algumas disciplinas ou áreas deveriam colocar-se como a força de resistência. A liberdade assumida de dizer tudo no espaço público tem se dado, de um modo ou de outro, no lugar privilegiado que chamamos humanidades, nas ciências humanas, as ditas ciências do homem e da cultura, também pela arquitetura, pelas artes, pela crítica, pelo direito e pela filosofia.
A Universidade é o lugar do acontecimento, do evento: basta lembrar maio de 68, e outros acontecimentos da época. O acontecimento depende de um talvez que se afina não com o possível, mas com o impossível.
“Somente o impossível pode acontecer” (4), disse Derrida.
Em geral acredita-se que, para um acontecimento acontecer, para ter lugar, para que encontre um lugar é preciso que interrompa a ordem do “como se”, a redundante lógica do previsível, e que seu lugar seja real, efetivo e concreto o bastante para desmentir toda lógica do “como se fosse”, “do como se pudesse”.
Nada de bom pode nos acontecer se estivermos fechados.
A decisão, sendo sempre a “de-cisão”, vem do outro que chega e me acontece, e parte minha lógica, minha expectativa. Do outro nunca vem a certeza, mas sempre um “talvez”, e é esse talvez que cria a possibilidade do evento, do acontecimento.
Pensar o “talvez” é, hoje, professar o incondicional, o sem condição. O possível acontecimento do incondicional impossível, a chegada do totalmente diferente.
A Universidade sem condição.
Mas então, o que acontece quando o próprio lugar se torna virtual, liberado do enraizamento territorial (nacional), do próprio chão? O que acontece quando a Universidade se virtualiza? O que acontece quando alguns professores resolvem embarcar na web e projetar arquiteturas no muito além, no ultramar, através das redes criadas pelo império “como se fosse”, sim, “como se fosse” ali, ali na esquina? O que acontece quando todos conjugam o verbo projetar mediante representações mediáticas, programas fornecidos pelo império da informática?
O que acontece quando não se mostra aos estudantes a triste realidade que se espalha nas ruas e esquinas da miséria? O que acontece quando tudo o que resta é observar sempre o mesmo?
O que acontece quando os arquitetos ignoram o corpo, quando ignoram as relações, os movimentos, os envolvimentos?
E aí? O que realmente acontece quando o arquiteto, o professor, o estudante vê o outro, o diferente se aproximar, chegar em sua própria casa, quando vem ao encontro da Universidade?
O acontecimento é sempre o envolvimento do eu com o outro.
O encontro com o outro sempre diferente é como a collage. A collage é sempre o encontro dos diferentes, numa nova síntese que guarda suas individualidades.
É o inesperado, o impossível de acontecer que acaba com a apatia.
Poucos aceitam que a nova etapa técnica da virtualização (a informatização, a digitalização) desestabiliza o habitat universitário, o lugar físico mesmo, que substitui o lugar real pelo lugar virtual. A vida na sala, na praça, no jardim pelo monitor.
Ela perturba, também, a topologia de todo saber, inquietando tudo o que organizava e dava sentido antigamente a esses lugares, gerando sentimentos de saudades e reflexões.
A saber: tanto o território de seus campos de conhecimento, de suas fronteiras disciplinares, quanto seus lugares físicos de encontros e discussão, seus campos de batalha, seus campus, a experiência existencial espacial e, sobretudo, a aprendizagem das relações afetivas são afetados e devem ser repensados.
Onde se encontra hoje o lugar comunitário? O “nome comum”, evocando um conceito de Antonio Negri, onde se encontra o campus na era do cyberspace, do teletrabalho e da wwweb? Onde se encontra o trabalho estudantil no espaço público?
Falo na resistência como se fosse a essência da própria Universidade autônoma, soberana, e não só da questão da guarda e conservação dos documentos, na produção do conhecimento que a caracteriza, mas daquilo que um dia, no passado, se identificou sob o nome de Humanidades.
Refiro-me, portanto, a uma Universidade que seria o que sempre deveria ter sido ou pretendido representar, ou seja, desde seu princípio, de uma autonomia na sua fala, na sua escrita, no seu pensamento, que já não seriam somente arquivos ou produções de conhecimento.
É preciso ressaltar que os enunciados constatativos e os discursos de puro saber, transmitir conhecimento, informação, que muitos ainda defendem, de um saber autônomo descompromissado, na universidade, não dependem do professor no sentido estrito do compromisso de fé que se ata a sua nomeação. Talvez dependam, sim, de um ofício, de uma competência, de uma habilidade, de um saber cada vez mais e mais específico, de uma tékhne, mas não da profissão de professor.
O discurso do “profe” é a livre profissão de fé, ele ultrapassa o puro saber técnico-científico no compromisso da responsabilidade. Professor é aquele que professa, diz, anuncia, expõe aquilo que acredita. Se expõe.
Professar significa empenhar-se em sua responsabilidade, assumir um compromisso.
É mister do professor professar e profetizar; isso implica na capacidade de antever o mundo, preparar para o amanhã.
Derrida chama a atenção também para uma relação muito curiosa entre Universidade e trabalho, e a curiosa condição de vulnerabilidade do estudante. Na Universidade, entre todos os que de uma maneira ou de outra são considerados como nela trabalhando (docentes, pessoal de administração, pesquisadores, estudantes), os estudantes, especialmente enquanto tais,só serão chamados de “trabalhadores” quando tiverem um salário de forma regular. Para isso não basta uma bolsa de estudos. Por mais que o estudante trabalhe, ele só será considerado como trabalhador apenas se estiver no mercado. Enquanto estudar pura e simplesmente, ainda que trabalhe, estude, muito mesmo o estudante nunca será considerado trabalhador (5).
Nesse sentido, a situação do estudante é muito parecida à dos excluídos, dos catadores de lixo, dos explorados. Muitas vezes é difícil identificar e objetivar o produto desses trabalhos bastante duros, efetuados por esses trabalhadores indispensáveis e devotados, eles são os menos bem tratados da sociedade, e os mais invisíveis também, eles são os que livram as cidades de seus dejetos, e transportam informações. De forma geral, são eles também que garantem as mediações e transmissões, que – como diria Michel Serrez – são como anjos. É preciso repensar a Universidade, os estudantes, os professores, os técnicos-administrativos, para reafirmá-la como Universidade, como o lugar do universal, que conserva e mantém as singularidades e as diferenças dentro do mesmo espaço.
Esse espaço físico real deveria estar protegido por uma espécie de imunidade absoluta, que garantisse a sua humanidade. Não somente de forma verbal e declarativa, mas com trabalho, com ação fora, despejada. É assim que faremos acontecer. Por meio desses acontecimentos, que nada mais são que construções, obras, ainda que muitas vezes performativas.
A lógica da pesquisa deve implicar em ação, ou seja, inserindo a práxis na epistemologia e, portanto, a ética e a política em seus processos cognitivos.
É preciso mostrar o humano que existe dentro da Universidade, em todas as suas áreas, salas e corredores. Ensinar a ética que deve fundar a Universidade.
Agora vejam: a globalização promete o fim do trabalho, mas seu fim é o trabalho, a exploração desenfreada sob todas as classes e categorias. As vítimas do “fim do trabalho” e da globalização, são, literalmente, os excluídos do Terceiro e do Quarto Mundo, excluídos de todas as formas. Essas vítimas sofrem porque o que lhes falta mesmo é trabalho, possibilidades de trabalho, ainda que no mercado informal, e quando surgem como atividade paralela ao mercado, se jogam de corpo e alma.
Por outro lado, também se encontram os explorados, trabalhando em demasia por uma “merreca” de salário. E se não aceitam as condições impostas, sempre haverá outro que aceitará, até por valores menores. Tamanho é a necessidade de sobreviver, e a falta de trabalho. Para Derrida essa é a mais trágica situação em números absolutos na história da humanidade. Grande parte da humanidade está sem trabalho, quando desejaria ter trabalho, mais trabalho.
Mas todo esse trabalho é quantificado pelo tempo. As histórias do ofício e da profissão estão entrelaçadas pelo tempo. A hora permanece como o contador do tempo do trabalho, tanto fora como dentro da Universidade. O curso inteiro, os seminários, as conferências, tudo é calculado por meio de faixas – hora, de horas-aula, cargas horárias, créditos. Mas o que representa esse tempo, onde o tempo não só assinala a passagem do tempo, mas a própria contabilidade desse tempo, que faz de tudo mercadoria?
Quando se cogita o “impossível possível” de uma Universidade sem condição, toca-se não somente nesses limites do tempo em seu questionamento, mas também no limite entre o dentro e o fora.
Refiro-me às questões arquitetônicas mesmo, puro espaço, “puracidade”. Os limites entre o dentro e fora, o sentido do espaço, as fronteiras físicas, mesmo, das Universidades. Penso nas Humanidades, na Arquitetura que não pode se encerrar eternamente no “dentro” da Universidade, no confinamento dos corpos dos estudantes na sala de aula, na docilização efetuada em cima da inquietude e do vigor, no que Foucault chamou de biopolítica do corpo. Quando digo biopolítica significa que a vida está completamente investida de condições e atos artificiais de reprodução. Significa que a própria natureza socializou-se, e o ensino também tornou-se uma máquina produtiva absurda.
Para o ensino de arquitetura, a matéria de trabalho e de vida é o lá fora. Tudo está lá fora. Deveríamos passar muito mais tempo na rua, muito mais tempo, caminhando, andando, vagando, caminhando e conhecendo.
Mas, o que temos feito é trazer as representações “lá de fora” para dentro. Substitui-se a coisa real por uma pálida representação, “como se fosse a mesma coisa”. O que se perde é a experiência espacial, a real aprendizagem da arquitetura, do espaço. A nomeação.
Esse limite do “impossível”, do “talvez” que advém não só do outro, do que vem de fora, do forasteiro que entra, mas também de nós, “aqui”, sinaliza e reafirma uma Universidade sempre predisposta às forças de fora.
Seu fechamento ao mundo não é absoluto, por sorte é cheio de furos, cheio de fissuras. Quando ela se repensa, aí ela “está no mundo”, quando ela se pensa a partir do outro, ela se torna mundo sem portas.
Uma Universidade que abre suas portas uma ou duas vezes ao ano, lamentavelmente, só pode atestar sua clausura, seu cercamento, sua condição de campo, de campo de concentração.
Não é cerrando-se que resistirá, mas sim deixando que essas fissuras se espalhem e comprometam os muros, e a própria estrutura, permitindo, assim, a passagem de quem realmente deseja entrar e nunca teve a possibilidade. Não para virar mercadoria, mas para retornar a suas bases.
Penso numa Universidade sem portas, sem janelas, aberta à cidade. “UniverCidade”.
É através da desconstrução de seus cercamentos conceituais e físicos, de seus limites, de suas fronteiras, de seus contornos que ela deve preparar e organizar sua resistência. Nisso reside, hoje, o princípio da resistência incondicional da Universidade. Viver a abertura respeitosa aos outros, e de vez em quando também tomar a própria prática de abertura ao outro como reflexão crítica. Nisso também deveria constituir-se a aventura docente.
A resistência é também o compromisso das responsabilidades. A responsabilidade sobre o outro, sobre mim mesmo, e sobre o corpo docente.
É esse compromisso que pode colocar o improvável dentro do provável.
Penso uma Universidade aberta às novas formas organizacionais e constituintes da sociedade: ONG’s, sindicatos, movimentos, associações, centros comunitários..., fazendo dessas forças a nossa resistência efetiva. Uma contra-ofensiva inventiva a todas as tentativas de acabar com a soberania e autonomia da Universidade.
As forças da globalização, do neoliberalismo, da sociedade produtivista vêm da competividade, do privado em detrimento do público, do individual em detrimento do coletivo, do egoísmo em detrimento do coleguismo.
É nesse sentido de apropriação, e nesse contexto da virtualidade, que o imaginário político neoliberal estimulou o individualismo e a competitividade entre o corpo docente, entre os pesquisadores, entre os cursos, entre os departamentos. Ele acabou envenenando tudo por onde passou, deixando um desagradável rastro.
Contra esse mal-estar produzido coloca-se a solidariedade, a palavra antes da escrita, enquanto manifestação da ética profissional social.
O ensino produtivista tem gerado falsos mitos na cabeça dos estudantes e professores. O primeiro é o da divisão entre ensino, pesquisa e extensão.
“Obviamente que não há ensino sem pesquisa, nem pesquisa sem ensino. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e mostrar o que acabei de conhecer” (6), como disse Paulo Freire. Mas, hoje, fala-se com insistência no professor-pesquisador. E, no meu entender, o que há de pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a busca, a pesquisa, a curiosidade.
Como separar pesquisa de uma extensão, de uma aplicabilidade? Foi exatamente através dessa divisão temporal/espacial do ensino que se gerou todo mal-entendido, todos os males “extendidos”, de extensão mesmo.
Lamentavelmente, sem ser consciente, na maioria das vezes, o professor-pesquisador comporta-se tal como um colecionador de borboleta, um naturalista do século XIX, ele coleta as informações, os dados, e retorna para sua clausura, seu gabinete de curiosidades, se tranca, e aí então pesquisa. Isso quando não incorpora o papel do cientista pesquisador aloprado, idiossincrático, maniático e telemático para os quais Hollywood muito contribuiu em suas novas versões.
Afora o sarcasmo com as figuras dos pesquisadores, que ainda têm o meu respeito, o que quero dizer é que há um equivocado conceito de pesquisa, que implica em egoísmo, clausura, falta de alteridade.
Evidentemente que existem pesquisas em certas áreas que devem ser resguardadas, mas nas áreas humanas esse procedimento não faz o menor sentido. Principalmente na arquitetura. Como se a pesquisa fosse “dentro”, dentro da Universidade, e a extensão “fora”, uma planejada excursão, onde vai aplicar seus conhecimentos, ou ajuda solidária.
A Universidade sem condições deve questionar os espaços de dentro e de fora, em todos os seus âmbitos: físico, conceitual e disciplinar.
Essas relações fixadas entre o dentro e o fora demonstram o movimento de todo o corpo universitário. Revela a falta de acessibilidade pela sociedade, sua quase total paralisia política. Doutores e mestres não participam de greve, muito menos passeata; isso fica para os menos graduados, “estamos num patamar superior, não protestamos: negociamos, ainda que percamos sempre, pertencemos a uma elite intelectual e cultural”. Esse é o pensamento, imagino eu, presente e silencioso todo tempo, nos professores-pesquisadores. Mas há exceções.
Outro saber indispensável à prática docente é o saber da impossibilidade de desunir o ensino dos conteúdos, da formação ética, da prática profissional. Mas, infelizmente, confunde-se, amiúde, ética profissional com prática profissional, com regulamentações, com restrições, com posturas profissionais, legislação, direitos autorais, etc; vide, por exemplo, o conteúdo dessas disciplinas.
Arquiteto sabe mais de estética do que ética, mais de gênero e afetação do que posição. Sem perceber que ética e estética são indissociáveis. E que composição e disposição são também categorias de posição.
Como se referiu Paulo Freire, um dos saberes primeiros, indispensáveis – e isso se aplica como uma luva para os arquitetos – para aqueles que chegam nas periferias é que seu estar no contexto torne-se “estar com ele” (7). Esse é o verdadeiro sentido da palavra “contexto”. Avaliar o contexto é também estar metido dentro, envolvido, torna-se parte dele, ser indispensável a ele, ser ele, e não simplesmente “contexto formal”, contextualismo como vem sendo aplicado ingenuamente pelos arquitetos, nas salas de aula.
Quando um se torna contexto, seu desenho quer representar tudo, tudo na volta, e aí o “eu” toma significado e seu desenho, significação.
Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra, ou acreditando na força redentora das formas da arquitetura e da ciência.
Não é mais possível estudar descomprometidamente, como se, de repente, nada tivéssemos a ver com o mundo, um mundo lá fora, com os outros que padecem da exploração. Devemos sempre perguntar: em favor de que estudo, pesquiso, extensiono? Em favor de quem? Contra que estudo? Contra quem estudo?
Paulo Freire também fala de resistência. Mas de um outro tipo de resistência, diferente de Derrida, não de uma resistência da Universidade. Mas de uma resistência, que também nos afeta, “de uma resistência ao descaso ofensivo do qual os miseráveis são objetos, como a adaptação à dor, à fome, ao desconforto, à falta de higiene que se expressam no corpo. É preciso que vejamos na resistência desses corpos, o fundamento para a mudança e não para nossa resignação. Não é na resignação, mas na rebeldia, que nos afirmamos das injustiças” (8).
Para Paulo Freire, a rebeldia é o ponto de partida indispensável, o retorno à fonte da vida. A rebeldia, enquanto denúncia, precisa se extensionar até posições mais radicais e críticas, fundamentalmente anunciadoras, professorais como o esvaziamento e retirada das informações de todos os bancos de dados, a retirada estratégica para deixar de sermos objetos de controle. Devemos ter a liberdade de dispor de nossas representações. Isso é a liberdade de ação no mundo. Quanto mais penso sobre a prática educativa, reconhecendo a responsabilidade que ela exige de nós, tanto mais me convenço, também, do dever de lutar no sentido de que ela seja realmente respeitada, e isso inclui o respeito aos salários, o respeito ao professor, o respeito à profissão do arquiteto, o respeito pelas escolhas individuais e comuns, o respeito pela participação efetiva e afetiva.
O neoliberalismo só poderia implantar-se no ensino aniquilando os corpos: o corpo docente, o corpo discente, as forças vivas da resistência. Agora é preciso recolar esses corpos esfacelados, com uma cola mais potente do que sua própria matéria.
Ensinar exige que se compreenda que a educação é uma forma de intervenção no mundo. Ensinar não deixa de ser uma espécie de arquitetura invisível aplicada sobre os corpos. Foucault entendeu isso perfeitamente em Vigiar e Punir (9). Do ponto de vista dos interesses dominantes aos quais somos submetidos sem saber, sob as formas sutis de poder, não há duvida de que, para eles, a educação deve ser sempre imobilizadora, deve internalizar-se o maior tempo possível nas salas de aula, nos gabinetes de pesquisas ou nos computadores.
O “fora” se coloca, hoje, como o avesso, como a força de resistência, como potência e orientação topológica. A isso deve-se adicionar as forças da dinamicidade das mobilizações, das deslocabilidades, e do tempo de permanência fora.
Ensinar exige reconhecer que a educação é ideológica. A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz, às vezes, mansamente aceitar a miséria que a globalização arrasta. Fala-se da globalização da economia como um momento necessário da economia mundial e que não é possível escapar. Tudo é dado como um fato irreversível, um “assim sempre foi”. Todos os discursos na era do virtual atribuem às mudanças uma impossibilidade. Colocam todo o potencial humano transformador no âmbito do impossível, do desejo irrealizável, como frustração mesmo.
Tudo é dado falsamente como imutável. Essa imutabilidade curiosamente alicerça-se paradigmaticamente na genética como “dado-dado”. Infelizmente mitificando e erradicando falsamente as potencialidades transformadoras humanas, o potencial transformador humano, “como se fosse” somente através das modificações genéticas e tecnológicas que seríamos capazes de autotransformarmo-nos. Para o pensamento tecnocientificista globalizante somente a tecnologia pode proporcionar a transformação. E a medicina tem sido o grande álibi e campo exitoso para tal.
O discurso da globalização que fala da ética esconde que sua ética é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, do indivíduo. O próprio discurso pós-estruturalista das diferenças, da différence, num primeiro momento serviu para desagregar o valor do universal em detrimento do particular. Foi assim que a globalização conseguiu intermediar o universal e o particular. Foi assim, também, que esse discurso global, telemático, informático e imediático, disfarçou o fortalecimento da riqueza de poucos, e a disseminação da pobreza e miséria de milhões. Essa é a gramatologia da globalização.
Igualmente, o discurso telemático, e isso na arquitetura é supervisível, desloca o foco de atenção para as formas, para os programas prontos, para os jogos fechados, para as regras, para a gramática, para a retórica, para o poder das representações e não para os conteúdos e as necessidades.
Esses discursos tecnológicos só têm gerado falsas necessidades à nossa existência, aplacando a dor com anestésicos, próteses de última geração, distraindo-nos com brinquedos de alta tecnologia. Essa é, sobretudo, uma questão ética e política, e não só de uma tecnologia que sempre se dirá neutra. Deve ficar claro que não se trata de frear ou inibir as pesquisas e o ensino, mas de pô-las efetivamente ao serviço dos seres humanos, permeada de uma ética, de uma estética-ética.
Esse debate sobre a ética deve estar presente não só nas nanotecnologias, células-troncos, mas deve descer até as áreas que aparentemente não são tão relevantes eticamente, ou não se vêem afetadas. Pois esse processo totalizador esvaziou a ética de todas as áreas do conhecimento.
Entre as transgressões à ética universal do ser humano, disse Paulo Freire, “deveria estar a que também implicasse a falta de trabalho a um sem número de gentes, a sua desesperação, e a sua morte em vida” (10).
É exatamente por causa de tudo isso que, como professor, devo estar atento ao poder de todos os discursos ideológicos, principalmente atento àquele que proclama a morte da ideologia e faz chacota de sua existência.
Na verdade só ideologicamente posso matar as ideologias, e é possível que a maioria não perceba a natureza ideológica do discurso pós-moderno que fala de sua morte.
Da morte da utopia, do fim da história.
Para o universo do ensino da arquitetura é importante, ainda, perguntar respondendo: como ensinar, como projetar sem me tornar contexto de qualquer ação: ou espaço? Como formar sem estar aberto às bordas, aos contornos geográficos e sociais, aos limites do meu próprio corpo?
O fechamento ao mundo, e aos outros, se torna transgressão ao impulso natural da incompletude A experiência da abertura é a experiência do ser inacabado, que terminou por se saber inacabado.
A Universidade está cheia de arrogância, e agora cada vez mais, na medida em que os “professores” são portadores de títulos cientificamente honoráveis. Em outras palavras, mais amenas, não é minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Até porque isso é questionável. Arrogância não é sinal de competência, e competência não deve ser causa de arrogância.
Mas cabe lembrar, como me explicou um amigo, que essa arrogância provém de uma rigorosidade científica que se assenta na lógica, e como a lógica dormita na matemática, na certeza absoluta, na verdade da calculabilidade, daí sua arrogância e imposição ante a fragilidade do “talvez” típico das ciências humanas e dos não-saberes. Não nego a competência de certos arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria mais humanus.
A miséria da educação, da “cientificidade”, não aparece onde ela é pior. Sua miséria se revela justamente onde ela é excelente, onde exerce e se classifica como instituição de excelência, competência, onde ela é mais quantificável positivamente, onde ela é mais cega, onde ela possui o maior número de dados positivos, onde ela exerce o controle com maior eficiência sobre seus próprios corpos. Onde ela é mais produtiva. E essa produtividade é quantificável pelo alto índice de títulos de seu corpo docente, pelo desempenho de seus alunos nos “Provões”, no número de pesquisas em desenvolvimento, no retorno de mídia dessas pesquisas, no número de publicações, na importância das publicações no exterior, ainda que não sirvam muito para nada, ainda mesmo que professores publiquem seus artigos com pequenas modificações, com títulos diferentes, em diferentes periódicos. Tudo o que interessa são números, pontos para obter classificação. Até as vagas docentes são “aloucadas” por fórmulas matemáticas de produtividade.
Ela é dita de excelência, ainda, por suas linhas de pesquisas inéditas ou consagradas, por seus laboratórios, por seus equipamentos, pela quantidade de computadores que os órgãos de fomento fornecem para os pesquisadores.
Deve-se chamar, ironicamente, de excelência, na justiça da vida e do ensino, também o que foi destruído pela competitividade e elitização do saber. Deve-se chamar de excelência aqueles lugares onde os pesquisadores mais conceituados, pontuados, “empanturram-se” de equipamentos de informática enquanto os pesquisadores mais novos mal conseguem obter algum recurso. Chama-se excelência o sistema fechado e de favorecimento das comissões desses órgãos de fomento que acabam se autoprivilegiando, malgrado os esforços que essas instituições idôneas fazem para serem transparentes, justas e éticas.
Politicamente dizemos que uma instituição é “excelente” justamente ali onde ela consegue, com competência, administrar a qualidade dos corpos que ela deseja transformar.
Excelência é condicional, atestadamente instituição com condições e em condições, mas condicionada, condicionada a todas às regras.
Se ampliarmos nossa visão sobre esse assunto, veremos que excelência é sinônimo de eficiência, “efi-ciência”.
Eficiência em virar máquina para a produção de conhecimentos e de técnicos a serviço das muitas burocracias da sociedade.
Quando a Universidade vira fábrica, infelizmente os estudantes pagam o preço da morte dos universos que um dia viveram e sonharam, como possibilidades adormecidas no corpo das crianças. Dentro dessa máquina, como disse Rubem Alves, “todo poeta, todo inventor deve se transformar em funcionário, toda borboleta deve se transformar numa lagarta, todo campo selvagem, numa monocultura” (11). É isso que faz o ensino produtivista.
Educar é mostrar a vida a quem ainda nunca a viu, ainda que isto às vezes provoque um certo desconforto. O educador ou professor diz: veja! E, ao falar, aponta, orienta. O aluno olha na direção apontada e vê o que nunca viu, ou revê aquilo que de precioso existia e foi perdido. É aí que seu mundo se expande, aprende para sempre. Educar não é mostrar sempre a mesma coisa que se conhece. Repetir periodicamente as mesmas frases, semestre a semestre.
Educar é experimentar. É renovar-se.
Educar é mostrar o impossível possível.
A educação não tem fim, se estende numa trama gigantesca de possibilidades, é por isso que é análoga à cidade.
Toda forma, toda formação tem caracterizado pelo fechado, pelo dentro, pela visão do dentro. Na arquitetura tem sido um pouco assim também.
Devemos entender que todo fechamento designa o âmbito do privado, da “priva-cidade”. Da cidade privada. A cidade privada. Da privação da cidade.
Devemos lembrar que seu oposto, a abertura, define o âmbito do público, as formas abertas, a praça, o fora. Mas o propósito da educação é abrir o que está fechado e fechar, quando necessário, o que está escancarado, vulnerável. A educação fechada não dá forma, “de-forma”. Ela é punitiva por natureza. O papel do educador é parecido, mas ao mesmo tempo distante do arquiteto. O educador é um destruidor de formas, enquanto que o arquiteto em sua potencialidade é um construtor.
As Universidades públicas hoje se gabam ao dizer que são o lugar da pluralidade, da diversidade, o lugar da polêmica, do debate. Mas o que vemos é todo ao contrário: é a instituição dos parecidos, dos similares, dos iguais, do social e dos economicamente assemelhados, dos intelectualmente mais capazes segundo a absurda lógica comercial do vestibular.
Devemos ser cientes que quem mantém a Universidade pública não é só quem paga os impostos, mas também todos aqueles a quem a oportunidade da vida plena foi amputada já no nascimento, os que vivem às margens, nos campos de concentração econômico-social das periferias.
Antes da Universidade abrir suas portas já tinha gente esperando. Sim, muita gente esperando. A crise da Universidade não é só uma crise econômica, de uma Universidade sem condições; esta talvez seja a menos preocupante. A outra crise, talvez a pior, é uma crise de visão, a de impossibilidade de um novo horizonte possível.
A Universidade aberta deve ser a cidade como espaço cultural. A cidade educando a Universidade, a Universidade educando a cidade. A cidade em sua complexidade dispõe de inúmeras possibilidades educadoras. A vivência na cidade constitui um espaço cultural de aprendizagem permanente por si só, principalmente para os arquitetos. Do centro à periferia, do núcleo à suas bordas. Uma cidade pode ser considerada como uma cidade educadora quando, além de suas funções tradicionais, ela exerça uma nova função cujo objetivo é a formação para a vida na cidade.
Na cidade educadora, todos os seus habitantes usufruem das mesmas oportunidades de formação. Não se pode falar de uma Universidade aberta, plural, lugar da diversidade, sem compreendê-la como uma Universidade participativa, comprometida, responsável, literalmente apropriada pela população como parte também da apropriação da cidade a qual pertence, e não como o lugar das elites intelectuais, como é vista tradicionalmente.
Essa apropriação deve expressar-se pelo movimento do dentro para fora, e do de fora para dentro. É no meio do caminho que dá-se o encontro, o acontecimento.
A concepção educativa que a maioria dos arquitetos desconhecem (A cidade educativa) vem de um relatório com proposições inovadoras elaborado pela Unesco e publicado em 1973 sob o título Aprender a ser (Apprendre à être) que entendia a cidade como espaço formativo, abrindo uma nova significação para a educação e para a vida nas cidades, para que as escolas e as Universidades fossem o espaço da vida e não da morte. A cidade é constituída de arquitetura, e a arquitetura é educadora em todos os sentidos.
A educação só tem sentido como vida, e a arquitetura como vivência. A escola perde seu sentido de humanização quando vira mercadoria, quando a habitação deixa de ser necessidade vital e vira mercadoria, quando a Universidade e a escola deixam de serem o lugar onde se aprende a ser gente, para se tornarem o lugar onde as crianças e os jovens vão para aprender a competir no mercado. A escola transformadora, é a escola do companheirismo, do coleguismo, dos que andam juntos, caminham lado a lado, dos que estão colados, por isso “escola”, por isso é a pedagogia do diálogo, das trocas, dos encontros, da solidariedade, das decisões e cisões. Por isso é pegajosa e perigosa.
Às vezes somos por demais críticos, e perdemos o afeto dos outros por falta de companheirismo. E não haverá superação das condições atuais dentro da Universidade sem um profundo sentimento de companheirismo. O sentimento de companheirismo deve impregnar-se lenta e definitivamente dentro de cada um, um a um, até reconstituirmos todo corpo universitário, esfacelado pelas forças do ensino produtivista. Daí o sentido profundamente ético dessa nossa profissão. No fundo, para enfrentar essa barbárie que vivenciamos, o próprio educador deve ser educado, educado para a construção histórica de um novo sentido de seu papel.
A gente faz faculdade para “vencer na vida”, mas hoje mais ninguém vence só por isso. Deveríamos pensar, agora, que a gente faz faculdade para “ser” na vida, aprender a ser... Há sinais por todos os lados da resistência; basta abrir os olhos.
notas
1
Texto publicado originalmente, como editorial, em Arqtexto, nº 6. Porto Alegre, UFRGS, 2005.
2
DERRIDA, Jacques. A Universidade sem condição. São Paulo, Estação Liberdade, 2001.
3
Idem, ibidem, p. 20.
4
Idem, ibidem, p. 78.
5
Idem, ibidem, p. 42.
6
FREIRE, Paulo, Pedagogia da autonomia. São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 32.
7
Idem, ibidem, p. 85.
8
Idem, ibidem, p. 76.
9
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Editora Vozes, 1979.
10
FREIRE, Paulo. Op.cit., p. 89.
11
ALVES, Rubem. Conversas sobre educação. Editora Verus, Campinas, 2003, p.111.
sobre o autor
Fernando Freitas Fuão é arquiteto, doutor pela ESTAB de Barcelona, com a tese “Arquitectura como Collage” (1987-92), professor do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura (PROPAR-UFRGS). Editor chefe da revista ARQtexto (Propar-UFRGS). Autor dos livros "Canyons, a Av. Borges de Medeiros e o Itaimbezinho" Fumproarte, Porto Alegre, 2001 e " Arquiteturas Fantásticas", Fac. Ritter dos Reis, UFRGS. Porto Alegre, 1999.