1.
Viadutos são enormes devoradores e desestruturadores de espaço. Em cidades planejadas para o automóvel como Los Angeles, mais de um terço da mancha urbana é consumida por vias expressas e quase dois terços do seu centro são ocupados por ruas, passagens livres, estacionamentos e garagens. Nas cidades brasileiras de densidades mais altas, as intervenções públicas têm buscado resolver, erroneamente, muito mais as demandas do transporte privado do que o transporte público, o que trouxe como conseqüência intervenções urbanas desajeitadas e a destruição de muitos vazios urbanos antes importantes. É por isso que os viadutos das capitais brasileiras são quase sempre monstros urbanos que não guardam nenhuma ligação com a cidade e, por isso, são também grandes desestruturadores de quarteirões ou mesmo bairros inteiros.
2.
Como se sabe, as grandes cidades brasileiras têm, nas áreas que pertencem ao setor público, um reservatório de terrenos ociosos sujeitos a ocupações pela população de baixa renda e muitas vezes por setores da economia formal. Geralmente, essas áreas são invadidas devido à ausência de controle das administrações públicas, à conivência das prefeituras com certos usos ilegais e/ou devido à impossibilidade de planejar a cidade frente às pressões do crescimento da cidade informal. O objetivo básico do projeto “Baixios de Viadutos” é lançar um plano de programas – com fins de implementação real – para uma parcela específica dessas áreas ociosas nunca vistas como locais com potencial de ocupação planejada. Estas são as áreas lindeiras aos doze viadutos e seis passarelas de pedestres ao longo dos dezoito quilômetros de extensão da Via Expressa Leste-Oeste, uma das principais vias arteriais da grande BH e que conecta o município de Belo Horizonte ao município de Betim.
Os objetivos mais específicos do projeto são:
1. testar a viabilidade econômica e social das intervenções físico-ambientais nos baixios de viadutos;
2. procurar reinserir os baixios no tecido urbano como áreas socialmente úteis ao reincorporar a população dos ex-moradores de viadutos no plano de usos;
3. demonstrar ao poder público que áreas ociosas devem, necessariamente, ser objeto de planejamento e ter funções claras para que sejam integradas funcional e socialmente à cidade formal;
4. utilizar a infra-estrutura instalada das regiões centrais como alavancadora de novas densidades e programas, potencializando ocupações que sejam próprias das regiões metropolitanas brasileiras;
5. aceitar a informalidade urbana das grandes cidades como ponto de partida de projeto.
3.
Viadutos urbanos e passarelas são componentes da infra-estrutura urbana, atendendo prioritária e quase exclusivamente à circulação de veículos, servindo de transposição de fundos de vales, vias férreas, cruzamentos de vias, etc. Um olhar mais atento sobre estes componentes revela que, além destas funções, eles propiciam, através de suas características espaciais e construtivas, o surgimento de áreas intersticiais e marginais livres. Entretanto, como não são contempladas no planejamento funcional, estas áreas são ocupadas informalmente e de maneira precária. O foco desse projeto é a incorporação à cidade dessas áreas e a reincorporação da população que, por mais de duas décadas, tem utilizado os viadutos para garantia de subsistência e de inserção, mesmo que periférica, na economia e na sociedade urbana.
Muitos viadutos que formam o objeto desta proposta assumem contornos diversos consoantes à localização, origem e características físico-ambientais das áreas residuais urbanas, bem como em relação aos usos e agentes que delas se apropriaram. No entanto, todos eles apresentam em comum o potencial de requalificação de áreas vazias significativas da cidade, o que pode se dar a partir de intervenções urbanísticas para atribuir-lhes funções úteis à sociedade e assegurar-lhes as condições de desempenho de acordo com o potencial de uso de cada um deles. São várias as visões a respeito dos usos possíveis nestes locais e seu agenciamento. Existe, entretanto, um ponto que unifica estes pensamentos e a partir do qual pode ser formulado um consenso: a necessidade de evitar que estes espaços fiquem ociosos, pois de fato eles nunca permanecerão como tal.
4.
Os programas do projeto foram delineados a partir da produção de dados relativos às necessidades dos atuais ocupantes (os sem-teto), às demandas de uso que possam existir no entorno dos viadutos, e de vários outros condicionantes que já fazem parte ou podem ser potencializados dentro dessas áreas. Acima de tudo, as informações que produzimos e coletamos levam em consideração que, se o objetivo final é chegarmos a uma intervenção real e efetiva na cidade, é mister ouvir, a um só tempo, o setor privado, as empresas locais, os ex-moradores dos viadutos, os catadores de papel e as associações de bairros. Só assim poderíamos ter a certeza que todos os setores – dos prestadores de serviço mais marginalizados da sociedade aos produtores da cidade – estariam envolvidos no processo, assim endossando a viabilidade econômica, jurídica e social do projeto.
Dessa forma, dada a grande complexidade das demandas e os diversos atores envolvidos, optamos por uma metodologia onde a produção e coleta de dados é representada e sintetizada por meio de gráficos, tabelas e diagramas que, finalmente, iriam nos auxiliar na elaboração dos programas dos viadutos. Esta coleta de dados – primeira etapa para chegarmos aos programas, que compõem nosso objetivo final – não foi apenas uma pesquisa em órgãos públicos. Um grupo multidisciplinar de doze estagiários de arquitetura, economia, direito e assistência social, todos coordenados por Flávio Agostini, arquiteto da ASF-Br, saiu às ruas de todos os bairros atravessados pela Via Expressa (2). A partir dessa pesquisa de três meses (que exigiu caminhadas árduas de dezenas e dezenas de quilômetros pela cidade em sol escaldante; inúmeras entrevistas com sem-tetos, vendedores ambulantes, presidentes de associações, gerentes de empresas e donas de casa; o preenchimento de um sem-número de formulários por parte de todos os estudantes e arquitetos envolvidos, etc; o que também nos fez conhecer os limites da cidade formal e informal in loco), chegamos então aos mapas/diagramas que nos serviram como ponto de partida para as fases subseqüentes do projeto. Os diagramas elaborados são onze:
1. diagrama de usos atuais dos bairros adjacentes aos viadutos (para um entendimento das demandas locais e as intensidades de uso nos três turnos – manhã, tarde, noite);
2. diagrama do potencial de publicidade de cada um dos viadutos (com o objetivo de prever futuras parcerias entre eventuais patrocinadores e os usos propostos);
3. diagrama de reciclagem (para sabermos quais os percursos e quais seriam as áreas mais propícias para apoio da reciclagem de material reciclável);
4. diagrama das demandas das empresas, associações de bairro, moradores de rua, catadores, e empresas dos bairros (para termos um quadro mais amplo das demandas de programas de todos os possíveis interessados na ocupação dos viadutos);
5. diagrama de parcerias das empresas locais (para identificarmos os possíveis parceiros dos programas propostos);
6. diagrama jurídico (para indicarmos a situação cartorária dos terrenos não ocupados e áreas residuais – a quem pertencem?, e para traçarmos o caminho jurídico para a sua incorporação nos futuros projetos);
7. diagrama de sentimento de segurança (para identificarmos o nível de violência e o grau de sentimento de insegurança quanto ao real quadro estatístico relativo a esse problema);
8. diagrama de acessibilidade (para mapearmos os graus de acessibilidade aos viadutos e adjacências para pedestres, automóveis e usuários dos sistemas de transporte coletivo);
9. diagrama das futuras modificações (para identificarmos tendências de modificações futuras nas áreas, de modo a gerar um panorama para atuação a médio prazo);
10. diagrama social (para sistematizarmos e disponibilizarmos aos futuros parceiros dos projetos dados que permitam a inclusão social pela participação de moradores e catadores em novos programas); e
11. diagrama de meso-estrutura (para medirmos a potencialidade física de cada viaduto para absorver programas de pequeno, médio ou grande porte, além da estrutura já instalada – luz, esgoto, etc – e de condicionantes ambientais).
Na feitura desses diagramas, fizemos uma pesquisa paralela sobre os modos de representação da cidade formal e informal e as dinâmicas das áreas mais caóticas da cidade. Assim, os diagramas são, eles mesmos, sínteses visuais das informações coletadas – sempre com o objetivo de prestarem-se como instrumentos operativos para a fase final do projeto. Todos eles buscam representar questões relativas à dinâmica urbana e ao quadro social da área de pesquisa de maneira direta e, ao mesmo tempo, procuram manter-se distantes da representação tradicional em plantas, croquis, etc. Tudo que foi escolhido para ser representado está inserido em um raciocínio de questionamento dos prováveis programas. Ou seja, se uma determinada informação fosse considerada sem importância no contexto do rankeamento dos programas, essa informação seria eliminada. Analogamente, se uma informação aparentemente pequena no mar de informações que coletamos pudesse indicar algum programa, ela seria mantida.
Dada a enorme quantidade de informações apreendidas, a representação dos diagramas foi evoluindo gradativamente, convergindo para sínteses cada vez mais ricas. Para isso, desenvolvemos critérios de pontuação numérica de cada assunto que, juntos, determinam a “nota” de um viaduto. Isso se deu em um processo de discussão dos aspectos subjetivos de comparação que precisávamos ponderar. Por exemplo: o que é mais prejudicial para pensarmos a viabilidade dos futuros projetos: uma área com sentimento de alto índice de furtos e roubos ou uma área com índice médio de homicídios? Como medir qual grupo (entre as empresas, moradores, catadores, etc) tem maior peso no diagrama de demandas, já que o número de entrevistas é diferente entre estes, bem como os interesses e a área de atuação de cada grupo? Que medida negativa poderíamos dar a fatores como poluição ambiental em um determinado viaduto, de forma que essa informação pudesse ser comparada a outra como índice de acessibilidade?
A partir desses questionamentos, estabelecemos os parâmetros comparativos (sempre subjetivos e técnicos a um só tempo) para chegarmos a uma síntese final de todos os diagramas. Para os de segurança, acessibilidade, demandas, reciclagem, publicidade e meso-estrutura, foram desenvolvidos rankings finais – as já mencionadas “notas” para cada viaduto. Assim, um viaduto pode ser considerado “facilmente acessível a pedestres” (no caso do diagrama de acessibilidade) ou “bem equipado para receber programas” (no caso do diagrama de meso-estrutura) a partir dessas notas. Os demais diagramas (usos, social, jurídico e parcerias) entram na outra fase – os cruzamentos – influenciando especificamente os primeiros. São estes cruzamentos que constituem a última etapa do projeto, onde cada diagrama passa a ser influenciado pelos outros para que suas notas iniciais sejam modificadas e assim chegarmos a um ranking final. (3)
O resultado do projeto é uma série de doze viadutos e seis passarelas com programas classificados em A, B ou C. Assim, um viaduto X teve um programa específico (serviços, por exemplo) como o programa mais indicado por meio de sua nota (A, por exemplo). Os programas que nós ouvimos de todos os atores consultados e que finalmente chegaram à lista dos mais indicados foram os mais variados: de “supermercados” (proposto para um viaduto na periferia) a “área de apoio às prostitutas” (!!! – nas áreas centrais e mais violentas); e de “áreas de lazer” (em bairros com deficiência dessas áreas) a “centros de apoio à reciclagem” (em trechos mais utilizados por catadores de papel). Quando, eventualmente, estivermos diante da etapa arquitetônica do plano, teremos que escolher o programa mais indicado de um determinado viaduto e analisá-lo de acordo com a sua pertinência durante o dia e horário. Outros fatores de influência determinarão essa escolha. Por exemplo, a quantidade de área que um determinado programa demanda será um dado fundamental (uma pista de skate ou uma quadra requerem muito espaço aberto; enquanto lojas e serviços de bairro requerem pouca área de projeção). Da mesma forma, o desenvolvimento dos modelos de parceria para cada família de programa deverá ser estudado oportunamente – aqueles que os próprios ex-moradores irão administrar (auto-gestão de comércio, serviço), aqueles em que as empresas irão ocupar as áreas (comércio), aqueles de caráter público (lazer, praça) etc. Os futuros programas da prefeitura e do estado também podem complementar os que indicamos, o que poderá ser um fator circunstancial estratégico. A partir disso, teremos então que articular os mecanismos jurídicos que vão, finalmente, endossar as parcerias vislumbradas entre os setores público e privado, possibilitando assim a viabilização das intervenções nos viadutos.
Dadas as muitas resistências e desconfianças que este projeto enfrenta, estamos agora diante de um impasse que – esperamos – será superado. Para isso, precisamos de órgãos (e homens) públicos que enxerguem essa proposta como uma oportunidade audaciosa que contrapõe, a um problema típico das grandes cidades sem planejamento, um método de trabalho flexível, investigativo, participativo, e que aceita e transforma a informalidade das cidades brasileiras (4).
notas
1
Artigo publicado originalmente em ArqTexto N° 7, Revista da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pag. 42-49, Porto Alegre, 2005.
2
Os participantes são: Margarete Maria de Araújo Silva (Professora Responsável Técnico – PUC/Minas), Flavio Mourão Agostini (arquiteto coordenador – Arquitetos sem Fronteiras-Brasil), Luciana Miglio Cajado (arquiteta sênior – Arquitetos sem Fronteiras-Brasil), Adriene Lessa (arquiteta júnior), Mateus Gouvêa de Sousa (arquiteto júnior), Carlos M Teixeira (arquiteto consultor - Arquitetos sem Fronteiras-Brasil), Marco Antônio Sousa Borges Neto (advogado – PUC/Minas), Cristiane Martins Oliveira (estagiária de arquitetura), Fernando de Abreu Fortes (estagiário de arquitetura), Mario Antonio Ferrari Felisberto (estagiário de arquitetura), Mariana Cançado Juste (estagiária de arquitetura), Geise Cordeiro Rocha (estagiária de arquitetura), Antônio Esteves do Nascimento Júnior (estagiário de arquitetura), José Mario Barbosa Alves (estagiário de arquitetura), Rosilene Ramos da Silva (ex-moradora), Carlos Antônio de Oliveira (ex-morador), Irani Aparecida Meireles (ex-moradora), Leila Damasceno (ex-moradora), Maria do Porto (ex-moradora), Fabiana de Jesus Santos (ex-moradora), Robson Sávio (CRISP), Liane Nunes Borm (Instituto Rua Viva), José Alberto São Thiago Rodrigues (Instituto Rua Viva), Múcio T. Gonçalves (consultor de economia), Claudenice Rodrigues Lopes (Pastoral de Rua da Arquidiocese de BH).
3
É difícil explicar os cruzamentos sem o auxílio dos recursos gráficos utilizados, mas nas palavras do coordenador do projeto, Flávio Agostini, as etapas dos cruzamentos são:
Os diagramas de demandas, reciclagem e publicidade são isolados dos demais, já que só eles contêm essência programática, enquanto os outros não – eles são apenas fatores de influência dos primeiros. Neste cruzamento, identificamos em cada tema ou programa levantado quais diagramas se influenciam diretamente. Aqui, tudo tem o mesmo peso e, ao final, chegamos a uma média entre pontos positivos e negativos que influenciam os programas dos viadutos.
“Repescagem”: os programas novos podem surgir não apenas a partir de informações, mas também de acordo com a interpretação subjetiva dos fatos. Assim, discutimos tudo o que foi observado e levantado, recapitulamos o que já foi listado e dimensionado, e então investigamos se outros programas (já levantados em outros viadutos, programas que tiveram nota baixa e que não foram classificados, ou ainda programas ainda não mencionados por ninguém) podem nos interessar. Então, listamos estes programas e fizemos novamente o cruzamento da etapa inicial, com todos os outros diagramas.
Por fim, distribuímos estes programas indicando sua maior ou menor pertinência em relação ao dia da semana ou horário.
4
“Baixios de Viadutos” foi uma iniciativa conjunta e jamais seria possível sem a participação de todas as instituições envolvidas: o Escritório de Integração do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Minas, a Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte, o Rua Viva/Instituto de Mobilidade Sustentável e a Associação Arquitetos sem Fronteiras – ASF-Br; a qual coordenou o projeto e elaborou este texto. O Escritório de Integração já tinha elaborado um texto (“Viadutos Urbanos: a que será que destinam?”) além de uma proposta de intervenção para dois dos viadutos da Via-Expressa, porém desenhada com seus programas definidos antes das informações levantadas neste projeto. A Pastoral de Rua, que vem dado apoio sistemático aos ex-moradores de viadutos da cidade, esteve sempre presente e nosso contato com estes não seria possível sem o envolvimento constante das assistentes sociais da Pastoral. Os ex-moradores tiveram participação ativa, discutindo e expondo suas dificuldades e potenciais, atendendo às oficinas de projeto, auxiliando os arquitetos nas entrevistas de rua e participando de workshops para instrumentá-los a entender e elaborar representações da cidade.
“Baixios de Viadutos” teve financiamento do Ministério das Cidades através do programa de Reabilitação de Áreas Urbanas Centrais e apoio da Prefeitura de Belo Horizonte. Após a entrega do projeto em 2005, tem sido objetivo da ASF-Br e demais envolvidos conseguirmos recursos adicionais para a etapa complementar, onde faremos os citados projetos urbanísticos e arquitetônicos a partir dos programas indicados nessa primeira etapa.
sobre os autores
Flávio Agostini, Luciana Miglio Cajado, Carlos M Teixeira fazem parte do ASF-Br – Arquitetos sem Fronteiras-Brasil
Flávio Agostini é formado pelo Unicentro Izabela Hendrix, sócio da MAB Arquitetura, especialista pelo IECMG, mestre pela EA-UFMG (tese "O edifício inimigo: a arquitetura de estabelecimentos penais no Brasil") e coordenador do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário UNA.
Luciana Miglio, arquiteta pela UFMG, trabalhou com habitação social na Holanda e Alemanha de 1994 a 1998 e sócia fundadora da ASF-Brasil.
Carlos M. Teixeira é mestre em urbanismo pela Architectural Association, sócio do escritório Vazio S/A, autor do livro "Em Obras: História do Vazio em BH", representante do Brasil na IX Bienal de Veneza e sócio fundador da ASF-Brasil.