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architexts ISSN 1809-6298


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Pedro P. Palazzo de Almeida fala sobre o o método de composição acadêmico ou Beaux-Arts, sistema que transcendia meras questões estilísticas, no qual se destacava a relação da arquitetura monumental com o tecido urbano


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PALAZZO, Pedro P.. Lições da mal-amada arquitetura acadêmica. Arquitextos, São Paulo, ano 07, n. 076.07, Vitruvius, set. 2006 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.076/323>.

A ordem da cidade

Identificadas na literatura especializada e mesmo no imaginário coletivo com a ascensão do modernismo, as primeiras décadas do século XX viram na realidade a predominância das arquiteturas tradicionais. Acima de todos os outros, o método de composição acadêmico ou Beaux-Arts era o instrumento incontornável de qualquer arquiteto, cidade ou país que se pretendesse civilizado. Essa ordem colocava, sem maiores questionamentos, a arquitetura cívica e religiosa no topo da hierarquia, e a particular e utilitária no extremo inferior (2). O método acadêmico dependia, para alcançar a sua plenitude, do respeito a um contrato social implícito, misto de autoridade tradicional e civilidade coletiva em que cada agente da construção da cidade sabia o seu lugar.

O projeto de desmonte do sistema Beaux-Arts se baseava, em parte, na concepção de que seu ensinamento se limitava ao estilo decorativo aplicado nas superfícies. Tal simplificação se enquadrava perfeitamente na intenção explícita de combater um projeto de modernidade hegemônico à época do desenvolvimento do Modernismo. Na verdade, o sistema transcendia meras questões estilísticas – uma transcendência à qual o Modernismo também pretendeu – ainda que elas tivessem o seu lugar na teoria acadêmica. Um dos temas em que se realizava toda a riqueza teórica do método, muito além do estilo, era a relação da arquitetura monumental com o tecido urbano. Na praça do Palais-Royal, em Paris, os importantes teatros compõem, não rompem, a estrutura urbana (Figura 1). Na visão de um arquiteto moderno como Rem Koolhaas, ao contrário, a simples existência de um pedaço de cidade “intacto” é motivo suficiente para, assumidamente, “não articular” o projeto com a malha urbana (3). A necessidade de diferenciar edifícios monumentais – arquitetura cívica ou religiosa, em geral – da arquitetura menor era um problema crítico na composição tradicional: dela dependia a funcionalidade do espaço urbano num sentido mais amplo do que o moderno “zoneamento funcionalista” poderia abarcar. Era uma questão de civilidade, ou seja, a própria essência da cidade (civitas). Como na cidade invisível de Italo Calvino, “se um edifício não leva nenhuma insígnia ou figura, a própria forma deste e o local que ocupa na ordem da cidade já bastam para indicar a sua função” (4).

O monumental e o utilitário

Contrariamente aos manifestos modernistas, a tradição acadêmica celebrava a monumentalidade, não apenas como expressão de uma estrutura hierárquica de poder, mas também, e principalmente como representação dos diversos Estados democráticos liberais que a adotaram, enquanto exaltação da esfera pública, das cidades da civilização. Nos primeiros anos do século XX, auge da arquitetura Beaux-Arts, já se prenuncia o debate entre o tradicional caráter cívico da monumentalidade e a rejeição pura e simples da expressão monumental, presente no discurso modernista:

A antiga arquitetura definia a si própria como o projeto de edifícios públicos que, para o bem comum, naturalmente deviam ser grandiosos. A nova arquitetura já se definia como o projeto de tudo no ambiente construído – “arquitetura total” no dizer alarmante de Walter Gropius – mas via a grandiosidade apenas como instrumento de opressão (5).

Pode-se dizer, com respeito à teoria propalada pela École des Beaux-Arts, que ela de fato dava uma ênfase excessiva à arquitetura monumental (Figura 2), à exclusão, em particular, da construção utilitária de grande porte, que vinha a ser dominada pelos engenheiros (6). Mesmo assim, seria um engano pensar que os arquitetos acadêmicos se preocupavam com a monumentalidade a ponto de praticamente excluir o restante do universo arquitetônico. Se a arquitetura monumental era objeto de maior admiração e esmero no sistema, isto não se devia a uma omissão de outros programas mas a uma clara noção de hierarquia entre os diferentes concursos e seus programas, ou caracteres (7). Tal hierarquia não implicava numa atenção exclusiva ao monumental: pelo contrário, os programas utilitários eram tão mais freqüentes quanto mais eles eram acessíveis a uma parcela maior do corpo discente. A competição pelo Grande Prêmio, por outro lado, não reunia mais do que oito estudantes nesta maratona da grandiosidade.

De qualquer modo, as tradições seculares arraigadas na perspectiva acadêmica chegaram ao século XX mitigadas pela influência polêmica mas salutar, em meados do século anterior, de uma certa espécie de “racionalismo construtivo” proposto pelos Neogregos segundo o exemplo de Henri Labrouste (8), bem como pelos Neogóticos sob o comando de Viollet-le-Duc (9). Em conseqüência, o principal sistematizador e divulgador do ensino teórico na École, e representante de sua fase mais madura, Julien Guadet, apresenta em seu manual de Elementos e teoria posições que remetem alternadamente, por vezes até simultaneamente, à tradição acadêmica e ao racionalismo oitocentista. Ao combinar ambas as vertentes num sistema teórico unificado, Guadet não apenas sintetizou a história pregressa da arquitetura acadêmica, como também estabeleceu as regras que seriam seguidas nos últimos e apoteóticos anos do método Beaux-Arts, as quatro primeiras décadas do século XX.

Arquitetura cívica na cidade

Ao conferir excessiva representatividade ao Grand Prix no conjunto da arquitetura acadêmica, tanto na teoria como na prática, corre-se o risco de perder de vista o principal tour de force que o método Beaux-Arts tornava possível: a inserção do mais grandioso monumento na malha urbana mais convencional, de modo que esta reconhecesse a supremacia do primeiro, e aquele contribuísse para a dignidade desta última. A facilidade com que um edifício ou um conjunto monumental acadêmico se insere no contexto é tanto mais surpreendente quanto se recorda a capacidade de destruição do tecido urbano que a teoria da arquitetura moderna propiciou. Ainda que freqüentemente acusado de fomentar um estilo internacional avant la lettre, o monumento Beaux-Arts invariavelmente se constitui ao mesmo tempo como resposta às necessidades internas do programa e aos condicionantes do contexto urbano no qual se insere; “outro princípio geral das proporções é a consideração da vizinhança, do meio” (10).

Acrescente-se ao estudo da vizinhança imediata o contexto geográfico mais amplo, determinado por considerações culturais e climáticas, e temos a medida da integração ao meio que esta arquitetura supostamente for export preconiza:

Eis ainda dois programas idênticos: mesma importância, mesmos serviços; mas um deles num departamento do norte, o outro no sul. Não apenas o detalhamento, mas a própria composição será totalmente diferente (11).

Esta afirmação está longe de ser um conceito abstrato. A fachada quase sem janelas de uma galeria de arte em Nîmes, no ensolarado sul da França (Figura 3) contrasta com as generosas vidraças do pavilhão do Louvre projetado por Hector Lefuel para o clima nublado de Paris (Figura 4). A integração entre monumento e contexto se traduz, também, por uma proximidade considerável entre a arquitetura utilitária e a cívica. Guadet faz questão de evidenciar essa proximidade ao iniciar o seu curso pelos elementos de composição e de arquitetura, aplicáveis tanto à arquitetura trivial quanto à excepcional sem distinção de tipo ou programa. Até os trechos em que menciona distinções entre a expressão utilitária e a monumental reforçam esta unidade, pois fica então claro que estas diferenças são simples variações no grau de riqueza e solidez dentro de um mesmo padrão. Assim, todas as descrições dos elementos de arquitetura são aplicáveis indistintamente ao galpão e à basílica (12).

O corolário natural a essa integração com o contexto urbano e com o ambiente arquitetônico é o preceito de que, quanto mais importante o projeto, mais a responsabilidade do arquiteto para com o cliente e a sociedade deve levá-lo em direção à prudência. Neste caso, o peso da tradição deverá dissuadi-lo de buscar formas fantasiosas e caprichosas, em favor da segurança e do sucesso quase garantido que vêm com a estética canônica. E tal cânone nada mais é, como sugere Guadet, do que um conjunto de convenções apoiadas na tradição, ou seja, no conhecimento empírico acumulado pelas gerações que nos antecederam (13).

A imagem pública, ou decoro, de um edifício, era um assunto que fazia parte do discurso arquitetônico desde a Antigüidade. Na linguagem clássica tal como interpretada no Renascimento, ela implica a distinção entre a ordem de composição do edifício, taxis, e a dignidade a ela conferida pelas ordens da arquitetura, os genera (14). No final do século XIX, tal não é mais o caso, uma vez que um número cada vez maior de palacetes privados e demais edifícios constituem uma malha urbana indiferente a normas suntuárias explícitas ou implícitas. Daí que a expressão monumental rejeite a exuberância em favor da severidade, mesmo que esta severidade possa se expressar de uma forma extremamente rica em detalhes escultóricos. O conceito-chave do monumento acadêmico moderno deixa então de ser o ornamento clássico erudito para se constituir na grandiosidade. Grandeur é então um objetivo a ser atingido para o prestígio do cliente e a fruição do público; é o próprio da arquitetura erudita e verdadeiramente importante, pois se coloca acima da mera exibição de virtuosismo decorativo: “em suma, a unidade é necessária à grande arquitetura, a pequena pede variedade” (15). O luxo ponderado pela severidade das proporções canônicas na Ópera de Garnier (Figura 5) contrasta com a frivolidade despreocupada da rotunda das cariátides no Hôtel Guimet (Figura 6).

Conclusão

O método Beaux-Arts, em sua fase madura, considerava arquitetura monumental como a expressão maior de uma gama de tipologias ao alcance do arquiteto. De modo algum a preocupação única do arquiteto, a monumentalidade fazia parte de uma hierarquia de caracteres, sendo reservada apenas às mais altas realizações da sociedade e, na École, aos alunos mais talentosos. Típica do sistema era a valorização simultânea da lógica construtiva e do mérito autônomo conferido à expressão estética do caráter. A verdade da arquitetura, para o arquiteto acadêmico, engloba tanto o respeito às propriedades mecânicas da matéria quanto à expressão do caráter do edifício como um todo, construção e composição. Corolário inevitável da verdade, a construção cívica não podia ser entendida como uma ampliação ad infinitum dos mesmos módulos invariáveis, mas como uma relação entre diversas exigências que alteravam as proporções do edifício. Mesmo a arquitetura mais grandiosa, portanto, não podia escapar às leis da estrutura, e devia inclusive beneficiar-se delas para expressar melhor a sua grandeza.

Fica clara, na harmonia urbana acadêmica, a necessidade de um edifício ser projetado de acordo com o contexto em que ele se insere – prova de que o ensino acadêmico não se restringia aos sítios e programas abstratos do Grand Prix. Esta inserção não era entendida, como hoje os movimentos regionalistas e preservacionistas, enquanto uma opção formal com vistas a não causar um impacto negativo no entorno; antes, era uma proposição evidente por si própria, a óbvia e necessária condição de um edifício que não flutua no vazio, mas está em relação de contato e proximidade com outras realizações do mundo civilizado e com os ditames que sítio, clima e bons costumes impõem ao arquiteto. É graças a esta obviedade, inexistente na visão de mundo modernista, que temos paisagens como uma rua de Washington em que edifícios comerciais, residenciais e cívicos erguidos entre os séculos XIX e XXI convivem harmoniosamente (Figura 7).

A expressão cívica da arquitetura, para os arquitetos acadêmicos no início do século XX, devia se constituir na imagem mais rica e dignificada possível da proporção, da verdade e da inserção no contexto, temas que são por outro lado igualmente aplicáveis à arquitetura cívica e à utilitária. A distinção não é, como no modernismo, entre o tecido urbano configurado pela repetição mecanicista de formas simples, e o edifício excepcional de formas arrojadas e inusitadas. No método Beaux-Arts, o que se tem é uma distinção de grau, não natureza, entre a boa arquitetura, aquela que o arquiteto deve fazer no dia-a-dia, e a arquitetura melhor, dos monumentos e dos concursos, mais rara e por isso mesmo mais importante. Ambas – a boa e a melhor – decorrem dos mesmos princípios de construção e composição e por isso se harmonizam no conjunto da cidade.

Notas

1
Todas as fotografias foram realizadas pelo autor. O presente artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado em história e teoria da arquitetura em andamento, intitulada Arquitetura cívica e o método acadêmico no período entre-guerras.

2
KRIER, Léon. Architecture: choix ou fatalité. Paris, Norma, 1996 , p. 31.

3
Office of Metropolitan Architecture. Casa da Música. http://www.oma.nl/Oma.htm, acessado em 04/12/2005.

4
CALVINO, Italo. Le città invisibili. Milão, Mondadori, 1993 (Turim, Einaudi, 1972) , p. 13-14.

5
DREXLER, Arthur. "Preface and Acknowledgments". In: DREXLER (org.). The Architecture of the Ecole des Beaux-Arts. Cambridge, MIT Press, 1977 , p. 7.

6
EGBERT, Donald Drew. The Beaux-Arts Tradition in French Architecture. Princeton, Princeton University Press, 1980 , p. 42.

7
JACQUES, Annie. "The programmes of the architectural section of the Ecole des Beaux-Arts, 19819-1914". In: MIDDLETON (org.). The Beaux-Arts and Nineteenth-Century French Architecture. Londres, Thames & Hudson, 1982 , p. 65.

8
EGBERT, op. cit., p. 51.

9
Ibid., p. 62.

10
GUADET, Julien. Éléments et théorie de l'architecture. Paris, Aulanier, 1901-1905, 4 v , v.1, p. 143.

11
Ibid., v.1, p. 106.

12
Ibid., v.1, p. 262.

13
Ibid. , v.1, p. 156-157.

14
TZONIS, Alexander; LEFAIVRE, Liane. Classical Architecture: The Poetics of Order. Cambridge, MIT Press, 1986.

15
GUADET, op. cit., p. 283.

sobre o autor

Arquiteto pela Universidade de Maryland (Estados Unidos), professor de História da Arte e História da Arquitetura na Unieuro (Brasília), e mestrando em arquitetura e urbanismo na Universidade de Brasília (linha de pesquisa: história, teoria e crítica da arquitetura e do urbanismo) com o projeto de pesquisa Arquitetura cívica e o método acadêmico no período entre-guerras.

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