“Um mundo descolorido e fraturado cerca o artista. Organizar esse monte de corrosão em padrões, grades e subdivisões é um processo estético que mal tem sido tocado”. (Robert Smithson, A Sedimentation of the Mind: Earth Projects, 1968) (2)
Uma questão contemporânea
Quando Reyner Banham escreveu sobre megaestruturas em 1976, referiu-se a elas como “futuro urbano do passado recente”, considerando, portanto, todas essas iniciativas como uma espécie de página virada. Mesmo ele, que havia estado comprometido com tais posturas, tinha de reconhecer um certo esgotamento da idéia naquele momento. O otimismo dos sessenta havia naufragado, inevitavelmente, entre a guerra no Vietnam e a crise do petróleo. Visões de progresso calcadas na técnica logo pareceram deslocadas, e os sonhos de gigantismo deram lugar ao pragmático “small is beautiful” dos anos setenta (3). No âmbito da cultura disciplinar, as megaestruturas ficaram atadas ao imaginário dos anos sessenta, vistas ora como fantasias impraticáveis de um mundo de prazer viabilizado por uma tecnologia benigna, ora como materialização de pesadelos totalitários.
Paradoxalmente, não é difícil apontar nas cidades contemporâneas estruturas arquitetônicas similares, pelo menos em parte, àquilo que alguma vez chamou-se megaestrutura (shoppings, complexos subterrâneos, nós de transporte). Não poucas vezes, estas estruturas são identificadas como os não-lugares das sociedades pós-industriais. Entendendo a necessidade de reconstruir as perspectivas disciplinares para abarcar essa categoria arquitetônica, o artigo propõe rever criticamente o tema da megaestrutura no contexto dos sessenta. Matizando a noção comum de que estas foram ou a apoteose das ambições técnicas do funcionalismo, ou meras fantasias de futuro, propõe-se revê-las como espaço de investigação compositiva e crítica, integradas ao interesse geral das artes nos sessenta por noções de temporalidade e processo como material de projeto.
O passado recente
Banham organizou o que é, até o momento, o mais amplo relato sobre a megaestrutura, situando precedentes, fases de apogeu e decadência, contabilizando esperanças frustradas e realizações. Reunindo número considerável de exemplos, estabeleceu sem dificuldades as relações da megaestrutura tanto com a tradição moderna, quanto com uma cultura não arquitetônica (4). Origens da idéia remontam ao projeto de Le Corbusier para Argel (1931) e às mégastructures trouvées, conceito talvez aprendido da idéia de objeto encontrado que os Smithsons haviam recuperado das vanguardas, no tempo das discussões do Independent Group (5). Diante de um marco tão amplo, caberia perguntar até que ponto o conceito é suficientemente elástico para dar conta da totalidade que Banham pretendia designar. Não se trata aqui de uma simples questão de nomenclatura, mas de tentar compreender que significado tiveram as megaestruturas em seu contexto de origem, e como esse significado pode ter sido transformado no ocaso da idéia, cujo repúdio pela cultura disciplinar, como oportunamente destacou Alan Colquhoun, parece ter coincidido com uma reação geral ao Movimento Moderno como um todo, que teve lugar nas décadas imediatamente subseqüentes (6).
Banham inicia sua exposição com a fotografia da plataforma de lançamento de Cabo Canaveiral, imagem clássica dos sessenta, mas adverte que esse imenso edifício não é uma megaestrutura. Ao contrário do antecipatório projeto de Le Corbusier para Argel, apesar de gigantesca, a plataforma não incorpora a discriminação fundamental entre a ordem genérica da grande estrutura reguladora e a variabilidade das partes habitáveis, e tampouco é uma construção multifuncional.
Para essa introdução à megaestrutura – a partir do que ela não é –, Banham recorre à definição inaugural formulada por Fumihiko Maki e Masato Ohtaka em 1964. Entendida como aproximação projetual apta para responder às demandas contemporâneas de câmbio e crescimento, a megaestrutura ou megaforma é definida pelos japoneses como “grande marco no qual todas as funções de uma cidade ou parte de uma cidade são abrigadas”. Viabilizada pelo avanço tecnológico, ela é “um traço da paisagem produzido pelo homem”, que pode ser comparado às “grandes colinas nas quais eram construídas as cidades italianas” (7).
Nesta formulação, o conceito de megaestrutura ambiciona o status de enunciado teórico, como instrumento de descrição de uma nova categoria, mas o faz a partir de referências a projetos, admitindo aqui tanto propostas para situações reais, como o projeto de Kenzo Tange para a baía de Tóquio (1960), ou idéias mais especulativas, como a Cidade Agrícola de Noriaki Kurokawa. Tal formulação requer dois argumentos. O primeiro é carregado de sentido histórico, termo entendido aqui não como consciência de um passado disciplinar, mas como interesse em reivindicar uma necessária sincronia entre as estratégias de desenho urbano e o estado de desenvolvimento de uma sociedade. Em consonância com as ambições modernistas de articulação com um tempo histórico determinado – o tempo presente –, Maki e Ohtaka entendem que já não podemos “visualizar a forma urbana como fizeram os chefes militares romanos, ou arquitetos renascentistas como Sangallo e Michelangelo”;é preciso reconhecer como singulares as circunstâncias urbanas contemporâneas, resultado de sociedades que correspondem antes a um campo complexo e dinâmico de forças inter-relacionadas, que a qualquer estrutura passível de ser representada ou percebida por“uma ordem hierárquica como fizeram muitos teóricos do planejamento urbano em um passado recente” (8).
O outro argumento é basicamente formal, mas derivado deste primeiro. Se as cidades precisam mudar para acompanhar estas novas circunstâncias, elas ao mesmo tempo carecem de uma linguagem visual que possa ser confrontada com “a escala super-humana das vastas redes de autopistas e das perspectivas aéreas tomadas de avião”. Faltam os meios para expressar essas transformações, e as estratégias de desenho disponíveis parecem inevitavelmente ligadas à idéia do edifício isolado, e a organizações baseadas em sistemas compositivos fechados. O interesse em certos exemplos históricos evocados no texto, tal como a referência às cidades mediterrâneas, nada deve a qualquer propósito de retenção deste passado, mas sim a motivações de natureza formal. San Gimignano e a aldeia de Amorgós nas ilhas gregas parecem interessantes não por significados sociais ou culturais agregados a estes lugares, mas por princípios de organização, por uma estrutura relacional ou por um efeito de acidente geográfico que nelas podem ser identificados. Entre as qualidades espaciais dessas cidades estão “o uso inteligente e dramático da geografia e da topografia”, e o contraste preservado entre a escala humana e “a escala super-humana da paisagem”, principalmente através de estratégias empíricas de composição na qual a noção de unidade é obtida através da repetição de partes semelhantes, não idênticas (9).
Se não há portanto interesse na recuperação de uma idéia de lugar enquanto construção histórica e cultural, há interesse no lugar geográfico, pela escala que lhe corresponde. A esta dimensão geográfica que passa a ser atribuída à megaestrutura, enquanto alteração produzida pelo homem à escala dos grandes acidentes geográficos, agrega-se uma dimensão de tempo. É através desta que se pode entender a megaestrutura como matriz formal e compositiva para responder a uma sociedade em transformação; é também através da noção de tempo que se vai opor o conceito aberto de Master Program ao conceito fechado de Master Plan.
Megaestrutura ou superbloco?
No relato de Banham, a decadência da megaestrutura identifica-se com o malogro de suas pretensões utópicas, sua assimilação pelas lógicas econômicas da cidade real e progressiva aproximação, podemos sugerir, ao que Alan Colquhoun havia chamado superblock em conferência proferida em 1971, a que Banham faz referência em Megastructure. Colquhoun refere-se diretamente à megaestrutura em ensaios dos anos setenta, expondo a visão que iria prevalecer nos anos seguintes sobre as propostas megaestruturalistas. Em “Frames to Frameworks” identifica no contexto dos anos sessenta uma tendência para colocar a ênfase no processo de produção arquitetônica, mais que em seu resultado final. Isso implicaria, em muitos casos, numa disposição para buscar as leis da arquitetura fora da arquitetura em si mesma, seja na matemática, na computação, na teoria dos sistemas ou na análise sociológica. Indicava, também, uma extensão de escala e repertório, através da qual a cidade não era mais considerada uma sucessão de edifícios individuais mas concebida como “uma estrutura contínua e crescente que dissolvia a distinção entre arquitetura e planejamento urbano”, retirando suas qualidades expressivas de repertórios exteriores à tradição arquitetônica, sejam as novas tecnologias ou o imaginário pop (10).
As megaestruturas seriam, em alguma medida, devedoras destas tendências, e prisioneiras de seus limites e defeitos, tal como identificado pelo pensamento dos setenta e oitenta. Ao ver a cidade como a “soma total de um número infinito de liberdades individuais” estariam defendendo um modelo de organização funcional auto-regulável, que não possui centro ou limites, e não necessita uma imagem de si mesmo. A megaestrutura é o oposto da cidade histórica, no sentido de que não pode encarnar um significado cosmológico, como “uma representação intencional do homem no cosmos”, explica Colquhoun; ainda que possua uma imagem, essa imagem é “natural e não estética” (11). Tal como colocado, o problema da megaestrutura, assim como o do superbloco, seria a incapacidade para dar continuidade a essa visão de cidade como todo acabado, hierarquicamente constituído, e para carregar significados previamente estabelecidos; em outras palavras, para exercer convenientemente funções de representação.
Essa interpretação, ainda que precisa em muitos casos, tende a encobrir um aspecto igualmente verdadeiro com relação às megaestruturas dos anos sessenta, que é uma certa dimensão de pesquisa projetual na qual persiste a autonomia artística. Segundo o argumento que se pretende defender, a megaestrutura não produziu apenas o resultado direto, não mediado, de leis exteriores, mas uma interpretação de mundo que engendrava, naquele momento, proposições arquitetônicas que buscavam consonância com uma realidade em transformação, que dificilmente poderia ser reduzida aos sistemas antropocêntricos das culturas pré-industriais. A qualidade da megaestrutura, nesse caso, seria aceitar a grande escala – ou o superbloco – como fato da cidade contemporânea, e entender, segundo uma sensibilidade sem dúvida moderna, que nem toda resposta a esse problema encontrava-se já inteiramente codificada em um passado disciplinar.
Territórios da invenção
Segundo a narrativa de Banham, o auge da megaestrutura teria ocorrido lá pelo ano de 1964, quando Constant apresentava sua New Babylon em Londres, identificando o Homo ludens derivado de Huizinga e do Situacionismo como habitante apropriado da megaestrutura, e Archigram publicava seu quarto magazine – Amazing Archigram – onde a Plug-in City de Peter Cook explorava compositivamente noções de metamorfose e temporalidade. Ensaio sobre uma estética do consumo, Plug-in City popularizou a iconografia de gruas e cápsulas característica do imaginário megaestruturalista dos sessenta, mas também estabeleceu um modo de articulação entre as escalas extremas da projetação na qual tende a desaparecer a escala intermediária do edifício, pelo qual uma estrutura genérica mais ou menos permanente recebe e descarta pequenas partes que obedecem a um ciclo de tempo mais curto.
Já se escreveu sobre a questão da figuratividade das megaestruturas, suas referências iconográficas e suas relações com as vanguardas construtivistas (12). Aqui se pretende avançar em uma direção complementar, migrando do tema da imagem e do repertório de elementos de arquitetura – e sua filiação mais bem estilística –, para as estratégias e técnicas de composição. Para tanto, há ainda neste ano de 1964 um documento cujo sentido interessa recuperar: o quinto número do magazine Archigram – Metropolis – publicado no outono de 1964. Muito menos visitado que o texto de Maki e Ohtaka, ocupa com respeito àquele, entretanto, uma posição de certa maneira complementar. Sem pretensões teóricas, na qualidade de pequeno magazine especulativo, era um convite à experimentação projetual. Porém, ao contrário do número anterior, Amazing Archigram, não havia a insistência em um repertório icônico comum, como a cultura pop e o imaginário dos quadrinhos de ficção científica. Um conjunto expressivo de ilustrações de distintas procedências acumulavam-se sobre legendas que podiam ser traduzidas como indicações de estratégias projetuais: diagonais e conexões, estruturas universais, molehill e cluster (organizações por acumulação, montículos e racimos).
A megaestrutura se colocava como possibilidade formal a explorar na regeneração dos setores urbanos de uma cidade cujos processos de crescimento, nem sempre controláveis, progressivamente dispersavam no espaço. “A maneira pela qual um grande setor urbano pode ser regenerado” – argumentava-se, era um problema recorrente; e sugeria-se que “uma estrutura dominante – talvez à grande escala poderia ser o fator controlador e galvânico.”Neste editorial, emerge uma idéia de megaestrutura que nem sempre se propõe como substituto à cidade existente, mas como estratégia de convivência; o termo cidade é geralmente usado no sentido proposto por Peter Cook, “como um coletivo, sendo o projeto o portmanteau para diversas idéias” e não necessariamente implicando a negação das cidades tal como conhecidas (13).
Um conjunto de referências para o tema da grande estrutura dominante era então redescoberto, dos desenhos de Piranesi à Città Nuova de Antonio Sant’Elia, da Cidade Industrial de Tony Garnier aos arranha-céus de Hugh Ferris e blocos de habitação escalonados de Henri Sauvage nos anos vinte. Ao seu lado mostravam-se proposições contemporâneas, megaestruturas de Constant, Tange, Schulze-Feliz, Yona Friedman e de Archigram, esquemas tipo cluster de Arata Isosaki e Leopold Gersler ou o estudo City Centre de Hans Hollein.
Possivelmente a colagem Oasis (Ron Herron, 1968), publicada por Archigram três números adiante, seja a melhor síntese da expectativa megaestruturalista nos sessenta. Oasis é uma estrutura sem princípio nem fim, composta de elementos banais, reprodutíveis, que não são em si mesmos dotados de significados relevantes; não se trata de um edifício, mas de uma operação de transformação à escala do território, que tende a corromper a escala intermediária do edifício. Em vez do edifício, como objeto composto e terminado, o que temos são antes regras de formação e conjuntos de elementos; à visão funcionalista do projeto baseada na asserção de Auguste Choisy de que “cada problema encerrava sua própria solução” (14), era agora preciso opor uma matriz compositiva para um problema múltiplo. Palavras como metamorfose, emancipação, indeterminação e nomadismo surgem como penduradas à grande estrutura, indicando o que poderia der uma espécie de Master Program da megaestrutura, tal como sugerido por Maki.
A megaestrutura, ao pretender ser a resposta para uma sociedade industrializada e dominada pelo grande número, retoma o desafio da construção como montagem, e os temas de composição por repetição, seriação e progressão que estão próximos a essa idéia. Porém, aceita a impossibilidade de definir estas funções de uma vez por todas segundo padrões univalentes, e busca equacionar a seriação e racionalização necessárias aos processos de industrialização com um certo grau de indeterminação, que parece passível de ser associado a sistemas e matrizes abertas capazes de validar ordens pertencentes a edifício e território.
Questões de composição, ou quase: a megaestrutura e o contexto das artes
Muitas megaestruturas eram desenhos. Ainda que alguns praticantes, como por exemplo os membros de Archigram, reivindicassem que suas megaestruturas poderiam ser efetivamente construídas, o que delas temos, e o veículo pelo qual interagiram com a cultura disciplinar, é o projeto enquanto conjunto de desenhos, modelos e mesmo elementos narrativos. As megaestruturas se desenvolvem, no contexto dos sessenta, em uma espécie de território paralelo àquele das arquiteturas construídas, feito de papel, plástico, riscos, letras. Elas atuam sobre um espaço de investigação, que se coloca como outro com relação a um espaço real e construído. Dizendo de uma maneira talvez muito simplificada, projetos de arquitetura, que são normalmente desenhos intermediários entre um trabalho intelectual e uma realidade construída passam a constituir uma espécie de produto final, dotado de sentido em si mesmo, que poderia, por que não, aproximar-se de uma atividade artística; simplificando ainda mais, eles podem ir para a parede da galeria, podem viajar em exposições (como de fato viajaram) ou mesmo acabar dentro do museu (como realmente acabaram) (15). Porém, é nessa atividade relativamente marginal, situada a meio caminho entre proposta construível e experimentação artística, que reside um certo potencial crítico da megaestrutura, que é muitas vezes infravalorado ou mal compreendido.
Ao mesmo tempo é notável que, no campo da arte, certos acontecimentos estejam quase simultaneamente revelando uma disposição similar na medida em que exercem, também, um movimento desde aquilo que é considerado o centro de gravidade tradicional de uma disciplina para um território ampliado. Assim, por exemplo, os earthworks dos sessenta, operando em escalas parecidas àquelas da megaestrutura, executam uma espécie de movimento ao contrário, ao pretender abandonar os limites da galeria e do museu e partir para o espaço aberto. Escala, território, repetição, processo, são temas que arquitetura e arte compartilham nos sessenta, pelo menos se pensamos no trabalho de alguns artistas: Dennis Oppenheim (Gallery Transplant, 1968); Michael Heizer e sua Complex City no deserto de Nevada (1971), ou nos anteriores Rift (1968) e Duplo Negativo (1969); os trabalhos de Robert Smithson ou Robert Morris, e mesmo em intervenções de Christo e Jeanne-Claude. Estas intervenções sobre a paisagem, seja natural ou urbana, podem ser descritas conforme a assertiva de Heizer – “a obra de arte não está colocada no lugar, ele é o lugar” (16) – e percebidas como o redirecionamento das tradições oitocentistas da arte pública como monumento. Embora essas obras possam ser qualificadas como monumentais, em razão de suas dimensões megalômanas, elas não compartilham mais de convenções segundo às quais cabe a arte o papel de monumento, como objeto disposto no espaço; elas ambicionam recuperar uma noção de arte como prática espacial, como produção e transformação do espaço.
É essa nova tradição que Rosalind Krauss está descrevendo quando explica o conceito de “campo ampliado”, caracterizando uma zona de contigüidade entre arte e arquitetura, que vai implicar também a reconsideração de fronteiras disciplinares. “Ainda que a escultura possa ser reduzida àquilo que no grupo de Klein era o termo neutro para a não-paisagem mais a não-arquitetura” – explica Krauss –, “não há razão para não imaginar um termo oposto – um que seria ao mesmo tempo paisagem e arquitetura – o qual dentro deste esquema é chamado complexo. Mas pensar o complexo é admitir no reino da arte dois termos que haviam sido inicialmente banidos: paisagem e arquitetura – termos que podiam funcionar para definir o escultural (como começaram a fazer no modernismo) somente na condição de negativo” (17).
É possível que os territórios da invenção megaestruturalista não estejam muito longe destas fronteiras. Em primeiro lugar pela questão da escala – afinal, a megaestrutura aspira a essa condição de arquitetura+paisagem –, mas também pelas próprias reflexões em torno a espaço e tempo que estas obras sugerem, tanto ao privilegiar um ponto de vista exterior, quanto ao insistir em um caráter processual e transitório. Enquanto intervenções sobre a paisagem, a noção de projeto é que pode ser vista como articuladora, já que nestas obras, a ênfase não recai apenas sobre o objeto artístico que resulta da ação, mas também sobre o processo de fazer, a documentação em mapas, fotografias, etc (18). Além da questão da escala e seu desafio à configuração dos campos disciplinares, outros paralelos podem ser estabelecidos no que diz respeito à inclusão de uma dimensão de tempo na composição, deduzida das idéias de indeterminação indicadas nas composições megaestruturalistas, bem como o desenvolvimento de estratégias compositivas de repetição e seriação. É na maneira de colocar a relação entre indeterminação e composição, talvez para alguns uma relação mesmo impossível, que podemos ver tanto novas correlações entre arte e arquitetura nos sessenta, quanto um problema ainda contemporâneo. “O que a arte tem agora entre as mãos é matéria mutável que não necessita chegar ao ponto de ser finalizada com respeito ao tempo e ao espaço” – escreveu o artista Robert Morris em 1969 –, “a noção de que a obra de arte é um processo irreversível terminando em um objeto-icônico estático deixou de ter muita relevância” (19).
Krauss dedicou-se a explicar as ordens compositivas baseadas na repetição ou na progressão quando analisava a relação de certos movimentos artísticos dos anos sessenta com a produção em massa. O emprego de elementos extraídos do universo comercial, banais e repetitivos, seria uma fonte comum tanto da arte pop como da arte minimalista, embora a primeira destaque nestes elementos o sentido icônico, enquanto a segunda tende a tomar estes elementos em sentido bem mais abstrato, considerando não tanto suas implicações temáticas, mas suas implicações estruturais. A produção em massa tem nesse caso duas conseqüências diretas: os objetos serão todos idênticos, sendo impossível qualquer relação hierárquica entre eles; as ordens compositivas que derivam da produção em massa são as da repetição ou da progressão em série, “ordens desprovidas quer de pontos focais logicamente determinados, quer de limites externos ditados internamente” (20)
O trabalho sobre as séries, as progressões, o uso de elementos banais e repetíveis, constituem de certa forma ataques à idéia do objeto singular e acabado, e contraposições ao que Krauss chama de composição relacional, que implicaria algum tipo de relação hierárquica entre os elementos. A pura repetição, enquanto pratica de “dispor uma coisa depois da outra” seria uma maneira de furtar-se a estabelecer relações internas entre os objetos ou partes da composição que pudessem ser investidas de um “significado” exterior (21).
Pensemos, do ponto de vista da arquitetura, em propostas radicais como as de Archizoom, ensaios sobre a repetição, tanto quanto o foram as Caixas de Brillo empilhadas por Warhol em 1964. Non-Stop City (1969) pode ser vista como uma radicalização das idéias megaestruturalistas ao final dos sessenta, na qual fica eliminada toda a iconografia pop dos desenhos de metade da década, restando apenas a estratégia do crescimento contínuo, da dissolução da escala do edifício, na qual também a idéia de composição relacional é substituída por uma técnica de reprodução. Uma estrutura residencial contínua, uma matriz homogênea e infinita estende-se sobre o território seguindo apenas sua própria matemática da repetição; não se trata de fazer referência aos produtos da cultura de massa em seu aspecto ou simbolismo, mas às estratégias mesmas da produção em massa.
Por uma crítica-artista
Segundo distintas perspectivas, as megaestruturas lidaram com um espectro de problemas de composição que seguem na ordem do dia: a integração de grandes estruturas arquitetônicas ao tecido existente, a necessidade de estabelecer estratégias à escala de edifício e território, as implicações compositivas da indeterminação de funções, formas e dimensões. Por outro lado, estratégias exercitadas nas megaestruturas encontram-se em projetos do mesmo período que não necessariamente são vistos como parte da tradição megaestruturalista, enquanto exercício futurológico. Ordens compositivas que envolvem repetição e indeterminação estão na base, por exemplo, da Universidade Livre de Berlim (1963) de Candilis, Josic e Woods e do projeto de Le Corbusier para o Hospital de Veneza (1964), ambos distantes do grau de generalidade das propostas megaestruturalistas no sentido de que estabelecem uma relação concreta com lugares urbanos em particular.
Não se pode construir em altura, disse Le Corbusier sobre Veneza, você teria de ser capaz de “construir sem edifícios” (22), de certa forma referendando a necessidade de buscar estratégias que implicassem não apenas a proposição de uma obra de arquitetura, mas uma estratégia de organização que tem de valer na escala do edifício e também na escala do território. Em Veneza Le Corbusier decompõem o edifício em uma série de placas executadas sob pilotis, sobre o nível da água, dispostas de modo a formar um padrão capaz de produzir tanto pátios como espaços cobertos, bem como redesenhar o limite da cidade com a água. Concebido para 1200 leitos, o hospital está organizado em três níveis: no primeiro encontramos os serviços e as unidades de emergência, zonas que podem ser rapidamente reestruturadas; um segundo plano abriga setores de diagnóstico e terapia, iluminados pelos pátios; o último nível acolhe as áreas de internação, iluminadas zenitalmente. Ao contrário da Universidade Livre, o Hospital de Veneza nunca saiu do papel; permaneceu, também, nos territórios da invenção.
O argumento aqui desenvolvido não pretende sugerir que os problemas urbanos contemporâneos possam ser reduzidos apenas a questões de ordem formal, ou sequer que estas sejam as mais urgentes; porém, pretende reconhecer que existe uma parcela destes problemas que é de natureza compositiva, que demanda uma resposta na forma propositiva, e que se não for como tal assunto a merecer a atenção de arquitetos, não merecerá a atenção de ninguém. É um argumento, portanto, em defesa, sim, de uma crítica-artista (23), desde que reconhecidos seus limites; e isso nos permite rever a aventura megaestruturalista como laboratório de idéias. Se existe uma dimensão a ser recuperada nas megaestruturas é a reinvidicação da produção do território também como processo estético, e a necessidade de experimentação de possibilidades formais através de uma prática projetual, reconhecida em todas as suas dimensões, tanto técnicas e sociais quanto artísticas, antes, muito antes, de convertê-las em normas. Aceitando isso, talvez possamos transformar a nossa relação disciplinar com as megaestruturas existentes.
notas
1
Uma versão expandida do presente texto foi publicada nos Anais do IX Seminário da História da Cidade e do Urbanismo, São Paulo, USP, setembro de 2006. O tema está vinculado ao projeto de pesquisa Arquitetura para a segunda era da máquina: projeto, arte e experimentação nos anos sessenta, que desenvolvo no PROPAR/UFRGS com apoio do CNPq. Tem antecedentes em parte de minha Tese de Doutorado, Grupo Archigram, 1961-1974: uma fábula da técnica, Barcelona, ETSAB/UPC, 2002, sob orientação do Prof. Dr. Josep Maria Montaner, com bolsa CAPES.
2
SMITHSON, Robert Smithson, A Sedimentation of the Mind: Earth Projects, 1968, In: KASTNER, Jeffrey e WALLIS, Brian, Land and Environmental Art, Londres, Phaidon, 1998, pp. 211-212.
3
SCHUMACHER, E..F. Lo Pequeño es Hermoso. Por una sociedad y una técnica a la medida del hombre. Madrid, Hermann Blume, 1978. Publicado em 1973, conveverteu-se na bíblia do pensamento ecológico e alternativo durante os anos setenta.
4
BANHAM, Reyner. Megastructure. Urban futures of the recent past, Londres, Thames and Hudson, 1976.
5
SMITHSON, Alison e Peter, But Today We Collect Ads, Ark, n. 18, novembro de 1956.
6
COLQUHOUN, Alan. Frames to Frameworks em Essays in Architectural Criticism. Modern Architecture and Historical Change, Cambridge, The MIT Press, 1981, p. 122.
7
MAKI, Fumihiko Maki e OHTAKA, Masato. Some thoughts on collective form. In: KEPES, Gyorgy (ed.), Structure in Art and Science, Londres, Studio Vista, 1965, p. 118.
8
Idem, p. 116.
9
Idem, p. 117.
10
COLQUHOUN, op. cit., p. 120.
11
Idem, p. 125.
12
CABRAL, Cláudia Piantá Costa. Plug-in City: em algum lugar do passado, era uma vez um futuro. ARQTexto, n. 3-4, Porto Alegre, UFRGS, 2003.
13
Magazine Archigram, Metropolis, Londres, n. 5, outono de 1964.
14
“La question posée, la solution était indiquée”. Apud BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina, São Paulo, Perspectiva, 1975.
15
Pensemos, por exemplo, no acervo do Centre Pompidou, em Paris.
16
Discussions with Heizer, Oppenheim, Smithson (1970). In: FLAM, Jack (ed.), Robert Smithson: The Collected Writings, Berkeley, The University of California Press, 1996, p. 242.
17
KRAUSS, Rosalind. Sculpture in the Expanded Field, October, n. 8, Cambridge, Massachusetts, Spring 1979, pp. 38-41. In: KASTNER, Jeffrey, op. cit., pp. 233-234.
18
RAQUEJO, Tonia. Land Art, Madrid, Nerea, 1998, p. 15.
19
MORRIS, Robert. Notes on Sculpture, Part 4: Beyond Objects’, Artforum 7, New York, abril de 1969. Apud KASTNER, op. cit., p. 24.
20
KRAUSS, Rosalind. Caminhos da escultura moderna, São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 298; p. 300.
21
Idem, p. 293.
22
PORTOGHESI, Paolo. A humanist hospital, www.materia.it.
23
Tomamos o termo no sentido proposto por Boltanski e Chiapello, enquanto distinção entre critique artiste e critique sociale. BOLTANSKI, Luc e CHIAPELLO, Eve. Le nouvel esprit du capitalisme, Paris, Gallimard, 1999, p. 70.
sobre o autorCláudia Piantá Costa Cabral é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora do CNPq.